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Um salto na qualidade
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CAPÍTULO
Um salto na qualidade
MORELLI 40 ANOS – UMA HISTÓRIA DE SUCESSO
João Luiz Flório, engenheiro elétrico e consultor, fazia visitas técnicas regulares a empresas que
contratavam fornecedores representados por ele.
A fábrica da Morelli, em Sorocaba, era uma delas. Em uma pausa para o café, não conseguiria deixar de ouvir a conversa entre Oraci e Luiz Antônio de Vechi Broca, que na época era o diretor industrial da empresa. Falavam sobre o coquetel oferecido pelo Banco do Brasil, horas antes, anunciando com pompa sua presença destacada na Hannover Messe, a Feira Industrial de Hannover, na Alemanha.
Tratava-se de um dos eventos mais importantes do mundo, considerado uma vitrine das novas tendências e inovações tecnológicas no segmento da indústria. Os organizadores prometiam reunir mais de 7.500 expositores de 70 países. Os pavilhões de exposição somavam 380 mil m2, o que equivale a uma área dez vezes maior do que o Anhembi, em São Paulo.
Não foi difícil para João Flório entrar na conversa – estimulado ainda, evidentemente, pela tradicional receptividade de Oraci.
— Vocês estão falando em Hannover? Pois eu vou à feira. Vocês não querem vir comigo?
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Em um primeiro momento, Oraci torceu o nariz para o convite. Imaginou que teria dificuldades com o idioma e que ficaria deslocado sem conseguir se comunicar minimamente em uma feira de negócios. João Flório o tranquilizou: como havia trabalhado na Bosch, falava alemão e inglês. Prontificou-se a acompanhar Oraci durante a feira.
Poucos dias depois, já estavam providenciando passagem e hospedagem. Naquele momento do café, no entanto, a resposta ainda era em tom de brincadeira.
— Nem eu, nem o Luiz Antônio sabíamos falar inglês, mal falávamos português. – brincou Oraci – Quando o engenheiro João Flório se prontificou a nos acompanhar e nos auxiliar com a tradução, eu logo disse: então vamos! Eu carrego a sua mala, posso até carregar você, se for preciso. Só temos que ficar juntos.
O convite para uma viagem à Alemanha coincidia com o período em que a Morelli buscava o aperfeiçoamento de seus produtos e sua linha produtiva. A empresa vivia uma situação de mercado confortável: em toda sua história, nunca ficou abaixo dos 50% de market share. Por muito tempo, seus únicos concorrentes eram os produtos importados, que eram muito mais caros e relativamente difíceis de serem adquiridos. Em 1987, surgiu o primeiro concorrente nacional, a Tecnident, fundada pelo engenheiro José D'Amico Neto. Em seguida, veio a Aditek, dos cirurgiões-dentistas Alexandre Gallo Lopes e Dilza Nogueira Lopes, em 1990. Dois anos mais tarde, em São José do Rio Preto, o empresário Tufy Lemos Filho deu origem à Abzil, que se tornaria uma grande concorrente da Morelli na virada do milênio.
Paralelamente ao crescimento de outras marcas, um novo método de fabricação de micropeças metálicas estava em franco desenvolvimento: o Metal Injection Molding (MIM). Descoberta nos EUA no início dos anos 1980, a moldagem de injeção de pós de aço garantiria padronização e precisão, principalmente em peças mais complexas. Misturado a um ligante de polímero, o pó metálico é injetado em um molde com todos os detalhes e curvaturas desejados. Há ainda um processo de retirada do material ligante por meio de processos termoquímicos – o debinding – e o aquecimento das peças a altas temperaturas, provocando fusão e densificação sem derreter suas partículas – a sinterização.
No Brasil, a metalúrgica Steel Inject, de Caxias, no Rio Grande do Sul, foi a pioneira neste sistema. A Morelli começou a desenvolver um projeto-piloto de bráquete fabricado por injeção em uma parceria com eles. Usaram como base o projeto com mais alto potencial até então: o Tubo Duplo de Roth. Parecia que a iniciativa levaria muito tempo para crescer, como lembra Roger Morelli.
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— A gente já sabia da existência da injeção de metais. Fora do País, já existiam fabricantes muito bons, mas a gente ainda não tinha certeza se aquilo era para nós.
Tudo mudaria durante a viagem de Oraci a Hannover. Enquanto caminhava pela feira, encontrou bráquetes da Morelli produzidos pela Steel Inject no estande de sua controladora, a Lupatech. Não estavam em lugar de destaque: o carro-chefe eram outras peças, fabricadas por processos de fundição de precisão (microfusão). Encontrou o diretor da Lupatech, de quem ouviu uma lamentação sobre o mercado de injeção de metais: “ainda está mais ou menos, a gente precisa começar a ganhar dinheiro com isso.”
Mesmo antes daquele encontro, Oraci já não estava satisfeito com o processo de fabricação. Ao sentir o desânimo naquela conversa, como se faltasse confiança, reconheceu que a terceirização não teria futuro.
— Trabalhar com fornecedores terceirizados é difícil no Brasil. Eles olham para o preço final do produto e acreditam que estão em desvantagem. Não consideram o custo da embalagem, dos assuntos regulatórios, do desconto para revendedor, do risco do investimento etc. Além disso, é mais difícil deixar o produto do jeito que a gente quer, pois não temos controle sobre a produção.
Sem olhar para trás, deu mais alguns passos e encontrou o estande da Basf. Ele já sabia que a gigante química alemã era a principal fornecedora de matéria-prima para injeção de metais. Com a ajuda de João Flório, abordou um vendedor. Mostrou um bráquete e perguntou:
— Eu faço essa pecinha aqui. Vocês podem me ajudar? Indicam algum material?
Atencioso, o vendedor retransmitiu a Oraci todas as coordenadas que precisava para começar a desenvolver suas próprias peças. Indicou fabricantes de injetoras, estufas e fornos para debinding e sinterização em escala reduzida. Comprometeu-se a indicar pessoas qualificadas para estruturar as máquinas e habilitar profissionais técnicos.
Uma conversa casual no café, que rendeu uma viagem à maior feira industrial da Alemanha, fez com que as primeiras unidades do bráquete Roth Monobloc pudessem sair das máquinas instaladas no bairro sorocabano de Jardim Saira, já nos anos 2000. Roger Morelli vê, nesse momento, o começo da virada na qualidade.
— O ciclo de vida de um produto de Ortodontia é imenso e os processos de fabricação acompanham sua evolução. A gente ainda mantém um processo de usinagem muito
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94 similar ao que o Oraci utilizou no começo, para as peças antigas ou de baixo volume. A cauda é longa, o ortodontista é muito tradicional. Muitos só vão deixar de usar bráquete Edgewise quando pararem de fazer Ortodontia. Mas, as coisas modernas ou de alto volume foram migrando, a partir daquele projeto-piloto, para o processo de injeção, que é, disparado, o melhor em muitos aspectos.
Prestes a completar 20 anos, a Morelli chegou ao ano 2000 com
1.200 itens no catálogo, 400 funcionários e 125 distribuidores,
tanto no Brasil quanto em países da América Latina, Estados Unidos, Europa, Ásia e Austrália. Os pouco mais de cinco milhões de usuários conectados à internet, algo como 3% da população brasileira, já podiam acessar a home page da Morelli. Ainda estava hospedada no maior provedor de internet discada da cidade, o Cruzeiro Net, que ficou responsável ainda pelo primeiro projeto para viabilização de comércio eletrônico.
Esta, no entanto, era apenas a fresta da janela para o público externo. Internamente, houve uma forte gestão orientada por documentação de processos. Atuando em conjunto com setores administrativos, engenharias e tecnologia da informação, a diretoria e a equipe de Qualidade Assegurada se envolveram na documentação estruturada dos planos de qualidade, desenho de produtos, rastreabilidade de insumos, lista de componentes e instruções de trabalho. Chegaram a catalogar 70 processos de gestão, além de centenas de métodos e rotinas produtivas.
A busca pela qualidade passava ainda por outros setores. O setor jurídico aperfeiçoou a relação entre prestadores de serviços e fornecedores, além da proteção das marcas e patentes. Já a área de assuntos regulatórios cuidava dos registros de produtos em conformidade com as exigências dos órgãos responsáveis por seu controle. Nesse sentido, a clínica odontológica, criada em 1995, já exercia dupla função: prover tratamento a funcionários e, ao mesmo tempo, coletar dados que mostrassem a eficácia e a segurança dos produtos, lançando-os no mercado apenas após a análise e validação clínica.
Se as portas da empresa já estavam abertas para as sugestões nos primeiros 20 anos, a partir do programa de visitas, pode-se dizer que elas se escancararam. O evento envolvia revendedores, estudantes e ortodontistas. Depois de visitar os setores produtivos, os visitantes recebiam um formulário com o título “Morelli Agradece”, em que a síntese das conversas se transformava em sugestões e críticas.
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Já no primeiro ano do programa, em 2000, a empresa recebeu 300 convidados. Desde então, mais de 15 mil visitantes estiveram em Sorocaba para conhecer as instalações da Morelli. A relação entre cada um deles com os produtos e funcionários sempre foi considerada um excelente termômetro de qualidade. Algumas visitas a Oraci, inclusive, eram uma demonstração evidente de melhoria.
— O próprio Dr. Benvenga, que no passado proibia os alunos de usarem produtos da Morelli, foi muito bom para nós. Quando ele reconheceu a nossa seriedade e qualidade, passou a ser um divulgador.
A preocupação mais forte com documentação e controle de processos fez da Morelli a primeira do segmento a obter as certificações do Inmetro, seguindo as normas de qualidade ISO 9001, o que rendeu aos funcionários uma grande festa em 2001, definida pela coordenadora de vendas Rosemeire Guimarães como “inesquecível”.
— Foi uma festa linda. Todos se envolveram no mapeamento da empresa inteira e naquele momento estávamos celebrando a mudança de uma empresa, teoricamente caseira, para uma outra consciência, mais profissional, com processos a seguir não só na parte técnica, mas em todos os setores.
Outras certificações vieram com o tempo, como a ISO 13485 – norma específica para dispositivos médicos, e a de Boas Práticas da Anvisa. Também vieram as cobiçadas certificações da Food and Drug Administration (FDA) e Conformité Européenne (CE), que são essenciais para que qualquer empresa no mundo possa atuar no mercado internacional. Com as raízes da qualidade entrelaçadas e firmes no chão, a Morelli podia continuar crescendo. Só precisava de mais espaço.
— A ISO 9001 foi a mudança para uma consciência mais profissional."
O desenvolvimento gradual obrigou Oraci a realizar os
“puxadinhos” desde 1984, quando as instalações no Jardim Saira começaram a funcionar. A cada problema com espaço físico, mais um andar ou um prédio eram erguidos – o segundo prédio veio logo em 1986, no mesmo terreno do primeiro. Mais tarde, em 1992 e 1995, viriam novas ampliações, chegando ao terceiro prédio, onde hoje funcionam os setores de embalagem e o refeitório. Ainda viriam o prédio da clínica, academia, museu e estacionamento, em 2005.
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Mas, a fortaleza da empresa continuava nas decisões produtivas. A engenharia industrial estava prestes a se modernizar ao desenvolver robôs para automatização de processos. Outras unidades produtivas contavam com equipamentos importados, como os tornos alemães de comando numérico computadorizado (CNC) para usinagem de altíssima precisão.
Havia ainda uma elevada perspectiva com a injeção de metal, obrigando a Morelli a comprar máquinas e fornos para sinterização, bem como o desenvolvimento de métodos para a fabricação de moldes. Depois da experiência com a Steel Inject e antes de se especializar e adquirir uma máquina japonesa específica para tal, Oraci chegou a procurar a YKK, maior fabricante de zíperes do mundo, que se recusou a produzir os moldes.
A planta da YKK fica na Avenida Fernando Stecca, em Iporanga, bairro que surgiu com o desenvolvimento da zona industrial sorocabana naquela região. Naquela mesma via, no número 530, Oraci comprou mais um terreno. Desta vez, sem dar chance ao crescimento caótico: eram 22 mil m2. Outra área vizinha, de 25 mil m2, foi comprada anos mais tarde. Para efeito de comparação, os três terrenos no Jardim Saira totalizam 6 mil m2 .
Para erguer as novas instalações, Oraci precisava de alguém com experiência em fábricas. Pediu ajuda a seu irmão mais velho, Antonio José de Vechi Morelli. Em sua trajetória, seguiu o caminho do pai ao especializar-se na área de bebidas, mais especificamente na produção de vinhos. Estabeleceu empresas do ramo em São Roque e, praticamente aposentado em Sorocaba, trabalhou como chefe de manutenção da Momesso – a mesma empresa em que o patriarca José Morelli fez sua carreira.
— Eu já havia montado várias empresas. A diferença é que eu estava saindo do vinho e entrando na Ortodontia. O Oraci me disse: tem um terreno aqui, vamos fazer uma fábrica. Se vira!
Obviamente, o “se vira” era mais uma brincadeira de Oraci. Responsável por administrar a obra, Antônio levou a empreitada a sério. Desde os primeiros alicerces, em maio de 2002, foram 11 meses de trabalho com ferragens e concreto. Nada era pré-fabricado, orgulha-se. Em abril de 2003, estava inaugurada a maior consequência daquela despretensiosa viagem a Hannover: a Indústria, Comércio e Serviços Ltda. Ou melhor, a Inser.
A nova empresa viria atender a necessidade da Morelli com processos antes terceirizados, seria uma prestadora de serviços voltada principalmente para a injeção de materiais. Dessa vez, Oraci teria muito espaço para ampliar e organizar o crescimento da fábrica.
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— A diferença é muito grande. A Inser já nasceu dentro de um conceito de indústria. O pé direito é alto, a porta permite que um caminhão entre com uma máquina grande, o piso tem uma placa de metal com uma valeta com toda a rede de água, ar e eletricidade. Em cima, é só iluminação e movimentação de peso, por meio de uma ponte rolante. Todo esse planejamento favorece o processo, tornando-o mais eficiente.
Tanto as visitas técnicas realizadas na Morelli quanto o relacionamento com profissionais da Ortodontia em congressos
e feiras servem para identificar necessidades que podem representar novos produtos ou o aperfeiçoamento de outros. Além do potencial mercadológico e adequação no processo produtivo, a novidade precisa ser aprovada pelos órgãos que fiscalizam artigos de saúde. Mesmo assim, há chances desta lógica falhar.
Oraci acreditava que havia uma proximidade entre o que se fazia no Brasil e no México. Lá, um material estético dourado fazia sucesso. Outros fabricantes nacionais também tinham fios e bráquetes que lembravam ouro. Mesmo sem ter certeza da aceitação no mercado nacional, deram início ao desenvolvimento do que seria a linha Golden, que acabou sendo lançada em 2002.
A partir de uma avaliação preliminar de custos, optaram pela compra de um equipamento mínimo, usado, de origem russa. Basicamente, seria responsável por aplicar um banho químico, à base de nitreto de titânio, deixando a peça amarela e resultando no efeito dourado. Além da aquisição da máquina, solicitaram ainda a presença de um profissional no Brasil que fosse capaz de operá-la e de ensinar seu manuseio.
Foi assim que Oraci e a equipe da Morelli conheceram uma figura que se tornaria folclórica dentro da empresa, o engenheiro russo Yevgeny, ou simplesmente “Guena”, como era conhecido. O sujeito é lembrado até pelo relacionamento afável, inglês ruim e aspecto descuidado, como se não gostasse de tomar banho, arrumar os cabelos ou usar desodorante. A agitada vida boêmia do visitante também deixou várias memórias entre os funcionários, como lembra Oraci.
— Ele ficava em um apartamento nosso, no final da rua. Quando ele foi embora e devolveu o imóvel, só se viam dezenas de garrafas espalhadas pelo chão. Ouvia falar que ele saía pelos bares e envolvia-se em enrascadas. Eu mesmo cheguei a dizer: tenha cuidado ao sair pela rua, é perigoso. Mas, na verdade, o perigo era ele!
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Guena veio ao Brasil acompanhado de um segundo técnico russo, sendo os dois responsáveis por dar a partida no equipamento de banho químico. Eles tinham uma especialização pouco conhecida entre os profissionais da Morelli, a engenharia eletroquímica com ênfase em tratamento de superfície.
A Golden Line não prosperou e a fabricação (e a necessidade da máquina) pilotada pelos russos durou poucos meses. Roger, no entanto, celebra o legado de Yevgeny na história da fábrica.
— Ele sempre circulava, conversava com a gente, e percebeu que fazíamos bastante polimento nas peças. Disse que sabia como fazer uma máquina que nos ajudaria muito. No fim das contas, atiramos no que vimos e acertamos no que não vimos.
Guena começou a pedir os materiais. A maior parte eram peças usadas ou descartadas, já existentes na fábrica. O russo reaproveitava absolutamente tudo: se um cabo elétrico estivesse severamente rompido, ainda dava para emendar. Roger entende que o método de Yevgeny era bem diferente do “jeito Oraci” de fabricar as próprias máquinas. Enquanto o fundador da Morelli era cuidadoso no acabamento, Guena resolvia com improvisos e gambiarras que, no final das contas, também funcionavam.
— Nós já fazíamos o polimento eletroquímico, mas era demorado e usava um ácido de difícil descarte e segurança complicada. Ele propôs uma solução inovadora, com rendimento bom e um líquido inofensivo. Era o polimento a plasma. Para nos mostrar como funcionava, montou um sistema pequeno. Quando entendemos o funcionamento, fomos escalando, com a montagem de três máquinas iguais, maiores.
O processo de polimento a plasma permitia acabamento diferenciado nas peças após a usinagem. As altas temperaturas das máquinas produziam uma camada muito fina de vapor e plasma, retirando as partículas e rebarbas metálicas de forma mais eficiente do que os processos oriundos do trabalho de ourives.
Ironicamente, a herança tecnológica deixada pelos russos, presente na Morelli até hoje, seria responsável pelo mais grave acidente da empresa em seus 40 anos de história.
Para garantir a produtividade da unidade de polimento a plasma, as máquinas
precisavam ser acionadas com antecedência, por meio de um timer eletromecânico. Assim, ao chegar à fábrica, o funcionário responsável já encontraria o líquido usado na limpeza com a temperatura adequada para começar a trabalhar. Tratava-se de uma solução baseada em água e um sal próprio para polimento.
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Na madrugada do dia 3 de maio de 2004, uma segunda-feira, uma das máquinas foi ligada sem fluido algum. Construída em uma caixa grossa de polipropileno, material inflamável, a máquina incendiou-se rapidamente.
Logo as chamas alcançaram outros equipamentos que estavam naquele andar. O calor fez com que as janelas ficassem retorcidas, além de comprometer boa parte da estrutura da laje e deformar o forro plástico dos pavimentos superiores, onde funcionavam os escritórios e a diretoria. Felizmente, por conta do horário, ninguém estava na fábrica, propenso a ser intoxicado pela fumaça altamente tóxica.
O Corpo de Bombeiros foi acionado rapidamente. Eram seis da manhã, duas horas antes do começo de expediente, quando o vigia que estava na fábrica telefonou para Roger. Aos poucos, os funcionários que moravam nos arredores também se reuniram próximos à portaria, abalados e perplexos.
— Eu ainda estava na cama quando recebi uma ligação. “Roger, venha rápido para a fábrica. Pegou fogo. Mas, os bombeiros já estão aqui”. Quando disseram que já estavam apagando o incêndio, fiquei menos preocupado, mas ainda não sabia o tamanho do problema.
Oraci não estava no Brasil. Acompanhava o meeting da AAO (American Association of Orthodontists) em Orlando, Estados Unidos. Para a caçula Sonia e os demais irmãos, aquele final de semana não era dos melhores: sentindo um mal-estar, Dona Zenaide ficou alguns dias internada, em observação.
— Assim que chegou nos Estados Unidos, o Oraci telefonou para cá e perguntou se estava tudo bem. Eu disse: “não, a mãe está no hospital”. Dias depois, ele liga de novo, pergunta a mesma coisa e eu: “não, a empresa pegou fogo”.
O maior prejuízo foi no piso onde estavam as máquinas de plasma: todos os setores que funcionavam ao seu redor foram destruídos, inclusive o equipamento russo para dar banho químico dourado – neste caso específico, brinca Roger, não dá para dizer que foi uma perda sentida.
— Felizmente, o incêndio torrou a máquina. Aquilo era uma bomba, iria para o ferro velho. Mas, a parte mais importante da produção, da laminação à usinagem, foi comprometida. Você sabe como bombeiro apaga o fogo, ele não faz economia. Então tudo o que estava no andar imediatamente abaixo, se não foi afetado pela fumaça, ficou embaixo da água. Foi o caso do prédio de baixo, onde havia uma área de montagem e embalagem de peças. Em cima, muita coisa derreteu. Ainda devo ter algo chamuscado na minha gaveta.
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Sem Oraci, eram Roger, Sonia e Angela que deveriam tomar decisões e direcionar a equipe. Enquanto todos os funcionários eram orientados a se reunir no refeitório à espera de instruções, os três trataram de combinar o que seria conversado.
Não era preciso microfone. O silêncio das lágrimas foi substituído pelo discurso regrado à filosofia construída até ali: a Morelli não iria parar. Todos que tivessem condição de ocupar seus postos trabalhariam normalmente. Aqueles que foram afetados de alguma forma deveriam se organizar para ajudar a limpar tudo e avaliar o tamanho do problema. Era como se Oraci estivesse ali, dizendo: ergue a cabeça e vamos trabalhar. Sonia recorda como a reação dos funcionários foi importante para a retomada da empresa.
— Todos estavam abalados. Tinha gente que chorava só de olhar para a janela retorcida. Eu também vejo um lado que me sensibilizou bastante, já que todo mundo saiu daquela reunião disposto a reconstruir os setores atingidos. A emoção dos funcionários com vassoura, mangueira, detergente, lavando tudo... Aquilo foi comovente.
Foi montada uma “operação de guerra” na garagem. Os carros deram lugar às máquinas que deveriam ser reaproveitadas, desde a limpeza para minimizar o efeito oxidante da fumaça até a reconstrução do painel de comandos elétricos, consumido pelo fogo. O setor de patrimônio, onde eram alocados os operários responsáveis pelo futuro prédio da clínica e academia, foi deslocado para refazer a estrutura do pavimento com vigas de ferro reforçadas, além de revisar paredes, janelas e forros.
Mais uma vez, o sentimento de união falou mais alto e todos os colaboradores se empenharam para restaurar as áreas afetadas, como lembra o comprador Lino Moreira.
— Eu senti muito, muito mesmo. Cheguei à empresa e parecia que a minha própria casa tinha pegado fogo. Lembro que sentei na calçada e comecei a chorar, assim como muitos colegas. O Sr. Oraci estava viajando e eu fiquei imaginando o que ele iria pensar da gente, afinal ele tinha deixado a empresa para a gente cuidar.
Em uma semana, graças ao empenho de todos os colaboradores, já não havia mais sinais de incêndio no prédio atingido.
— Todo mundo fez o papel de serralheiro e pintor. A gente arregaçou as mangas e começou a trabalhar. Quando o Sr. Oraci voltou de viagem, até se assustou quando encontrou a empresa recuperada. Ele disse: “Não aconteceu nada aqui! Ficou até melhor do que estava”. Dos estragos provocados pelo incêndio, ele só viu as fotos.
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Após a restauração, o andar onde se localiza a unidade de polimento ganhou ainda uma porta corta-fogo. Métodos antigos de usinagem e polimento foram retomados temporariamente para manter a pronta-entrega e não deixar de entregar nada importante. Lembrando da enchente de 1983, a equipe de vendas, na figura de Nilton Redondo, atendia ao telefone como se nada tivesse acontecido. Afinal, se a disponibilidade dos produtos estava inalterada, não havia motivo para envolver os clientes no problema.
Antes do ano acabar, em setembro, os funcionários da engenharia industrial, projetos, elétrica, manutenção, instalações e ferramentaria trabalharam para desenvolver duas novas máquinas de polimento a plasma. Com o projeto e desenho em mãos, ficou mais fácil revisá-lo e ajustá-lo com novos sensores eletroeletrônicos, evitando seu aquecimento sem água. Não fossem os processos documentados, como nos primeiros anos da Morelli, talvez o recomeço seria mais complexo.
A Morelli começou sua relação com os ortodontistas a partir de uma única
peça, redesenhada e fabricada de forma engenhosa, capaz de atender a uma demanda crescente a custo justo. O apoio de boa parte da classe coincidia com uma visão pejorativa, que enxergava nos bráquetes, tubos, bandas e fios nacionais um “artefato de segunda categoria”, uma “cópia dos importados”. Os novos processos de fabricação, alicerçados em uma política de qualidade sem deixar de ouvir as demandas e novidades do setor, proporcionaram uma inversão: a empresa deixava de imitar as outras para, enfim, ser imitada.
Além disso, o fato da fábrica ter se recuperado do incêndio de forma rápida e empenhada, ficando até melhor do que estava antes, ressaltou o maior patrimônio da Morelli, seus funcionários. A preocupação com seus colaboradores é tão grande que, nos últimos anos, há gente sobrando. O quadro de funcionários, que chegou a um total de 800, vem se reduzindo nos últimos anos, aproximando-se de 600.
— Quando alguém sai, é só não repor a vaga. É isso que está acontecendo. Nossa equipe é muito boa, todos se envolvem como nesses momentos mais difíceis. Agora, imagine um funcionário bom, que participou de todas essas transformações e que contribuiu para melhorar um processo. Não posso, simplesmente, dar a conta para ele e trocá-lo pela automação.
Mesmo antes de se fortalecer internamente, a Morelli já era observada por grandes corporações, de olho em uma fusão ou aquisição. Dá para imaginar como isso se intensificou após a virada da qualidade. Também não é difícil adivinhar a resposta que os compradores interessados ouviriam de Oraci.
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A homenagem prestada pela Sociedade Paulista de Ortodontia (SPO), em 2000, marcou o período em que a Morelli aprimorava seu setor produtivo. Na foto, Oraci recebe das mãos de Jairo Corrêa, presidente da entidade, o diploma e medalha “Professor Doutor Arthur do Prado Dantas”.
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Funcionários comemoraram a conquista da certificação de qualidade ISO 9001, em 2001. Um marco de profissionalismo e rigor na documentação e controle de processos da empresa.
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Cenas do incêndio de 2004, provocado pelo superaquecimento da máquina de polimento a plasma. Assim como aconteceu em 1983, quando uma enchente atingiu a Morelli, os colaboradores se organizaram para recuperar a empresa rapidamente.
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No informativo da empresa, o último dos quatro prédios erguidos na Alameda Jundiaí, que ficou pronto em 2005. Além do estacionamento, da academia de ginástica, do auditório para conferências e do museu, a Morelli instalou ali quatro novos consultórios. Foi um marco rumo ao ciclo de qualidade total relacionado aos funcionários.
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