EXPEDIENTE
Diretor Geral Robson Ramos de Aguiar CONSAD – Conselho Superior de Administração Presidente: Valdecir Barreros Vice-Presidente: Aires Ademir Leal Clavel Secretária: Esther Lopes Titulares: Marcos Gomes Torres José Erasmo Alves de Melo Renato Wanderley de Souza Lima Jorge Pereira da Silva Andrea Rodrigues da Motta Sampaio Cassiano Kuchenbecker Rosing Luciana Campos de Oliveira Dias Suplentes: Eva Regina Pereira Ramão Josué Gonzaga de Menezes Reitor Norberto da Cunha Garin Coordenador de Pesquisa e Pós-Graduação Stricto Sensu Edgar Zanini Timm Conselho Editorial Presidente: Norberto da Cunha Garin Vice-Presidente: Edgar Zanini Timm Conselho: Alessandra Peres Caroline Dani Jose Clovis de Azevedo Maristela Padilha de Souza Marlis Morosini Polidori Assistente Editorial: Ágata Cristina Silveira Pamplona Editor Executivo: Sergio Marcus Nogueira Tavares Editora Universitária Metodista IPA Rua Cel. Joaquim Pedro Salgado, 80 Prédio A – Sala A001 – Rio Branco Inbox Revista elaborada pelos alunos do Curso de Jornalismo: Bruno Dornelles Lucas Marsiglia Douglas Webber Marco Antônio Moreira Guilherme Bernst Martha Dias Coordenador de Curso Prof. Dr. Fabio Berti Professoras Profª. Drª. Sandra Bitencourt Profª. Drª. Valéria Deluca Diagramação final Juliane Lucca Capa Mariana Branco Foto de Capa Prof. Me. Alex Ramirez Revisão Profª. Drª. Valéria Deluca Multiverso Comunicação Integrada Rua Coronel Joaquim Pedro Salgado, 80 Sala 13, Praça de Alimentação - Rio Branco multiverso@ipa.metodista.br multiversoipa.metodistadosul.edu.br
EDITORIAL
A
casa é o nosso primeiro lugar no mundo. Um conjunto de imagens que dão ao homem razões ou estabilidade. Mas será que eu sou o espaço onde eu estou? As vezes os espaços são agressivos. É o engenho e a resiliência humana que conseguem harmonizar ambientes inóspitos e conciliar histórias difíceis. Nesta edição, escolhemos mergulhar no Projeto idealizado pelo professor Alex Ramirez, o Casa sem CEP, articulado entre diferentes disciplinas e apoiado em diferentes linguagens, formatos e plataformas. A empreitada exigiu imersão no tema para buscar ângulos plurais, diferentes abordagens e múltiplos testemunhos, registrando fotos, áudios, vídeos e textos para contar histórias, aprofundar conceitos e gerar reflexão. Começamos convidando especialistas e protagonistas do tema moradia para nos ajudar a pensar nos enquadramentos, nas perguntas, nas fontes de pesquisa, nos personagens possíveis. Profissionais da Arquitetura e do Direito e militantes dos movimentos sociais vieram nas nossas aulas e nos auxiliaram a planejar “fora da Caixa”, a aprofundar conteúdos e a refrescar olhar e pensamento. Desse exercício surgiram as pautas que agora tomam forma e emoção nestas próximas páginas. A revista começa desvendando o conceito de casa, qual seu percurso histórico, que sentidos suscita, como define espaços de cidadania e desenvolvimento, mostrando ainda as vivências de quem encontrou na rua seu lugar de existência no mundo, com as dores e as alegrias possíveis. A reportagem seguinte mostra o trabalho voluntário de professores e alunos da graduação e da pós-graduação em Arquitetura da UFRGS com o propósito de melhorar o espaço urbano e sustentar tecnicamente as iniciativas coletivas por moradia digna. Esta imersão editorial segue abordando aspectos jurídicos e sociais do direito à moradia. Especialistas em Direito à habitação referem a Constituição Federal e o reconhecimento desse valor fundamental: “a gente não pode tratar outros seres humanos como se eles fossem lixo”. Todos esses textos são acompanhados de fotos, áudios e vídeos. São muitos relatos e são muitas questões em aberto. A edição se encerra com uma crônica forte e poética, acompanhada das fotos mais significativas, sobre a captura das imagens e das histórias do Casa sem CEP. Tudo isto envolvendo ainda a experimentação textual e estética conduzida pelos professores Leo Nunes e Valéria Deluca. Você é nosso convidado para visitar esta construção coletiva. Entre e mergulhe nestas páginas, a casa é sua! Profª. Drª. Sandra Bitencourt
SUMÁRIO SENTIDO
04 ARQUITETURA
11 CIDADANIA
14 POLÍTICA
17 DIÁRIO DE BORDO
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CASA: construção, cidadania e memória SENTIDO
MARTHA SCHOEN DIAS
A
(des)construção e manutenção da casa, somadas às mais calorosas lembranças são partes deste ser nostálgico que somos todos nós. Entender os sentidos e significados deste objeto na dimensão social, cidadã, jurídica, arquitetônica e, porque não, poética nos ajuda a olhar paredes e telhados, portas e janelas, esquinas e calçadas, ruas e avenidas de outro jeito.
Vamos olhar juntos?
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Nos significados básicos do morar, Dra. Ana Miriam Meireles Ferreira Cabrita, de Portugal, no artigo “O homem e a casa: definição individual e social da qualidade da habitação”, no ano de 1995, conceitua o habitar inicialmente como alojamento.
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A habitação significa, portanto, a delimitação de um espaço que proporciona ao homem: (a) a segurança (abrigo e proteção); (b) a privacidade, a intimidade, o isolamento, a independência, o espaço pessoal; (c) a inserção cosmogênica, o retorno a si; (d) o estabelecimento de uma relação dialética entre sujeito e objeto (“ser e ter”), de modo que a habitação funcione como objeto de uso funcional, de valor social e de símbolo; (e) a realização da imagem desejada (ideal) de si,
Ilustração de uma casa. / Por Martha Dias
no seu espaço territorial; (f) a expressão de uma territorialidade bem definida, física e psicologicamente delimitada; (g) a afirmação, a apropriação não só do território, mas dos objetos que coloca nele e do modo que os dispõe; (h) a garantia de uma libertação, parcial mas efetiva, embora temporária, da norma social, contribuindo para a afirmação da autonomia e exercício de liberdade e negação; (i) o estabelecimento de relações eficazes e criativas com a família; (j) a definição de uma interioridade; e (l) o desempenho das atividades com facilidade, flexibilidade e liberdade, individualmente ou em grupo familiar, ou seja, as tarefas quotidianas domésticas, no quadro das transformações individuais, familiares e sociais (incluindo aqui necessidades
sanitárias e de higiene, recuperação energética pessoal pela alimentação e repouso, estabelecimento de relações sociais seletivas e garantia do aprovisionamento de bens e seu consumo privado).
“Dirijo um apelo a nossos arquitetos modernos e aos homens e mulheres deste país: reajam contra a tirania da casa -objeto de comércio. Reservem espaço e ambiente para meninos e outros animaizinhos: salvem o lugar de nascer, viver e morrer -principalmente de viver.”
Carlos Drummond de Andrade (fevereiro de 1953)
A
Ilustração significado de moradia.
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Diferentes estilos de casa.
SENTIMENTO
Ph.D. Carole Despres, do Canadá, no artigo "The meaning of home: literature review and directions for future research and theoretical development", no ano de 1991, revisando a literatura sobre o significado de casa (lar), levantou uma série de estudos que tentavam definir modelos conceituais de habitação a partir de entrevistas com moradores, no período entre 1974 e 1989, sendo grande parte desse material relacionado à cultura norte-americana.
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SIGNIFICADO
O
sentido afetivo da palavra moradia, “a casa”, é o lugar destinado à construção de relações, vínculos, como um reservatório de lembranças que, a qualquer momento, um detalhe, um cheiro, um objeto, um olhar, são rapidamente evocadas e se apresentam da maneira como as ressignificamos. Através do curta-metragem "Tsumiki no ie" (A Casa em Pequenos Cubinhos) é feita uma reflexão sobre o significado afetivo daquilo que chamamos casa (lar, moradia). O filme apresenta questões percebidas como alicerce / base para a compreensão da importância deste “material de construção tão especial” feito de tijolos, cal e memória, cujo produto final denomina-se “casa”.
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“Tsumiki no ie”, direção de Kunio Kato, 2008, é uma pequena obra-prima do curta metragem, um trabalho artesanal da animação japonesa de grande competência estética e poética que, com extrema delicadeza, conta a história – sem diálogos – de um senhor com idade já avançada que mora em uma cidade ao nível do mar.
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Com o passar do tempo, o nível da água vai subindo, e, desta maneira, o idoso tem que erguer ainda mais sua casa, que é levantada tijolo por tijolo. Um dia ele acorda e percebe que precisa construir um novo pavimento acima, pois a água já alcançava a parte em que ele estava morando. Terminada a construção, recolocando seus pertences no novo pavimento ou casa, ele perde, acidentalmente, seu precioso cachimbo.
Ilustração do curta-metragem “Tsumiki no ie”.
Com roupa de mergulho ele decide procurar o objeto, quando, subitamente, vêm em sua mente as recordações do passado. A cada nível, a cada pavimento que ele vai descendo, diversas recordações lhe vêm à tona. Sua esposa, filha e genro aparecem em forma de velhas lembranças na medida em que ele vai passando pelas partes submersas e revendo velhos objetos. Onde antes ele vivera seus bons momentos ao lado das pessoas que amava, hoje tudo está submerso em água, perdido para sempre. Tudo retratado em um grande filme passado em apenas 12 minutos, com lembranças que se apresentam de forma lenta e nostálgica, uma magnífica viagem ao longo da própria vida, um mergulho em tudo que, hoje, já é passado. A casa em pequenos cubinhos é uma história repleta de encantos e encantamentos, exala poesia e verdade em cada cena, ao som da belíssima trilha sonora de Kenji Kondo. Pode ser vista como uma metáfora da vida, do
tempo, do amor e da solidão. A trajetória de um homem que tem uma linda história de vivências e relacionamentos familiares que não voltam mais. O quanto da trajetória deste velho, a construção e manutenção da sua casa, somadas as mais calorosas lembranças são partes da construção interna deste ser nostálgico que somos todos nós?
A valorização do objeto Casa se construiu gradativamente, com mudanças e acréscimos até chegar no que hoje percebemos como lar. Este vídeo dinâmico, intitulado Housing Through the Centuries (Habitação Através dos Séculos), mostra a evolução das casas nos últimos 27 mil anos. A temática representa a essência do seu campo específico, ou seja, a arquitetura e a habitação sempre trilharam o mesmo caminho, histórico e simbólico. E porque a casa foi um componente fundamental gerador de urbanidade, pois representou a transição do nomadismo para a vida sedentária, a criação de núcleos urbanos e da vida em sociedade.
“A casa, além de ter sido a primeira célula da cidade, foi também o primeiro recurso civilizacional que o homem soube construir. ” Manuel Barreras A subjetividade da casa se constitui a partir de vários elementos socioculturais, sendo um deles o modo de morar. Dentre outras dimensões utilizadas para a análise da “moradia”, a temporalidade se destaca, seja pela via da rotina, seja pela via da ordenação espacial da experiência que se estabelece entre os habitantes e sua casa.
O que dizem diferentes autores sobre este objeto chamado casa: Para Carol Werner, Irwin Altman e Diana Oxley, ambos do EUA, no artigo "Temporal aspects of homes: a transactional perspective", no ano de 1985; o tempo tem sido uma importante parte - embora usualmente apenas implícita - da pesquisa sobre relações interpessoais e uso da casa. Realizou, sob tal perspectiva, um estudo da casa em termos de tempo, considerado como linear e cíclico. Robert Lawrence, dos EUA, no artigo “What makes a house a home” do ano de 1987, descreve a moradia como uma unidade complexa que define e é definido por fatores culturais, sóciodemográficos, psicológicos, políticos e econômicos. Para este
autor, o projeto, significado e o uso do interior de uma casa só podem ser compreendidos a partir de dimensões culturais, sóciodemográficas e psicológicas, entendidas como tendo relações recíprocas em termos de uma perspectiva histórica dual. Esta perspectiva dual refere-se a questões temporais de longo termo - sócio-históricas, e de curto termo - a história particular dos indivíduos. Dentro desta perspectiva, este autor realizou um estudo arquitetônico, histórico e etnográfico de moradias australianas, comparandoas com o desenvolvimento de moradias inglesas. Já para David Saile, do EUA, no artigo “The ritual establishment of home” do ano de 1985, as moradias refletem o interjogo dialético entre indivíduo e sociedade, principalmente o interjogo temporal. Kimberly Dovey, dos EUA, no artigo “Home and homelessness” do ano de 1985, estrutura a questão da temporalidade ao interpretar como uma das propriedades da moradia a de ordenar a experiência espacialmente, socioculturalmente e temporalmente. Esta dinâmica dá-se dentro de um quadro dialético ordem/caos: o tempo seria responsável pelo sentido de familiaridade enraizado em rotinas corporais, nas coisas e na experiência de “interioridade”. O papel do ambiente físico seria o de uma espécie de âncora na educação da memória que estabelece quem somos através de onde viemos: uma identidade temporal não apenas ligada ao passado, mas também ao futuro.
A CASA
casa é onde a família deve estar, é o estabelecimento de lar fixo, atualmente. Na idade média surgiram os primeiros povoados e as moradias. A casa vivia em constante uso em seu anterior, as coisas eram feitas no mesmo espaço, comer e trabalhar e dormir. Várias pessoas, nem sempre consanguíneas, conviviam sem privacidade e sem pudor, a carga moral ainda estava em construção. No século 13, com a criação do vidro, a janela se tornou essencial nas casas, trazendo luz e claridade para um ambiente mais agradável, conta Manuel. Arquiteto formado pela politécnica de Catalunha em Barcelona- ESP, Manuel Barreras é docente da Ulbra e atualmente está fazendo mestrado na UFRGS e, também, dá aula lá.
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A casa (In) definida
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O LAR
O lar pode ser na rua, lugar de felicidade e gratidão?
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omo pensar uma “arquitetura de felicidade” para indivíduos em situação de rua, cuja “habitação” se limita ao lugar público? Existem bibliografias significativas, nacionais e internacionais, que discutem sobre o conceito “população de rua”. As características dessas bibliografias abrangem muito mais as políticas de assistência social, a migração, a falta de trabalho, sendo raras as que problematizam a questão dos processos de perdas de moradia e seus significados.
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Eneida Maria Ramos Bezerra, Maria Antonieta da Costa Vieira e Cleisa Moreno Maffei Rosa, do Brasil, no artigo “População de rua: quem é, como vive, como é vista”, do ano de 1994, debatem com outros autores o resultado de um encontro multidisciplinar sobre o tema.
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Analisam a situação social da população de rua como o retrato de uma sociedade que não garante trabalho e moradia. A vivência dos indivíduos nas ruas acontece de forma gradativa e processual, aos poucos vão substituindo os seus antigos hábitos por outros que os auxiliarão nessa nova fase. A rua quase sempre passa a ser considerada o único lugar possível de sobrevivência e de trabalho,
Loreni com sua cadela Diana no colo.
configurando-se nesse espaço, de um lado, um processo de perdas e, de outro, novas relações sociais em uma realidade social limite. Aqueles que estão há mais tempo nas ruas, separados quase totalmente dos vínculos anteriores, recriam novos laços de convivência e passam a ser identificados socialmente como “homens de rua”.
Esses homens de rua têm uma história, um modo de vida, de perceber o mundo e o seu próprio lar. Fomos buscar esses olhares.
O olhar de quem sempre viveu na rua
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Loreni conta que teve uma criação tranquila. Ele morava com os pais em uma reserva indígena quando seu pai faleceu. Um ano depois, foi abandonado pela mãe, vítima de uma picada de cobra. O menino foi parar em uma cidade chamada Cristo Redentor onde foi adotado temporariamente por uma senhora. Morou com ela por três anos, até ser abandonado na rodoviária, depois de ela informar que os dois viajariam para Brasília e abandonar o garoto na porta do ônibus. Atualmente, ele mora na Praça Isabel, a Católica, em Porto Alegre. Loreni conta que não
Loreni contando sobre seu carrinho de trabalho.
deve nada a ninguém e que a vida vai bem. “É difícil encontrar um morador de rua que nem eu que não deva nada à justiça e que não use drogas, que não bebe.” Seus únicos vícios, conta ele entre um sorriso e outro, são do refrigerante Coca-Cola, do cigarro e do café. Não gosta de bebidas alcoólicas nem outras drogas ilícitas.
Quando questionado sobre seus planos futuros, Loreni diz que pretende viajar. “Eu já estou enjoado de estar em Porto Alegre e aí, eu pretendo ir para o interior, e conseguir uma companheira no interior, porque é muito difícil encontrar uma aqui.” Ele menciona que seu último relacionamento amoroso durou cerca de dois anos, mas era
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“Meu sonho é viver tranquilo e em paz como estou vivendo.” Ele narra que procura não fazer nada que vá causar mal aos outros, como sinal de empatia, e adota isso para que sua rotina seja fluida. “A hora que eu levanto de manhã cedo, eu agradeço à Jeová pela noite que passou e pelo dia que vem, pelo alimento, pela saúde, pelos olhos.” O Sr. Loreni é analfabeto, mas é grato pelo conhecimento de vida que tem, ele não possui estudo porque cresceu nas ruas. Vive nas ruas desde seus 6 anos de idade.
A RUA
oreni Alves da Silvia nasceu em uma reserva indígena de Miraguai, no interior de Tenente Portela, município do Rio Grande do Sul, no ano de 1971. Hoje, aos 47 anos trabalha nas ruas de Porto Alegre juntando latinhas para reciclar.
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A RUA
conturbado. Pois ela consumia pedras de crack e o vício acabava por esgotar os recursos financeiros do companheiro. Com sua rotina diária de trabalho, em que recolhe as sucatas para reciclagem, ele recebe em torno de 100 reais semanais, que usa para comprar os suprimentos de casa. Loreni declara que nunca lhe falta comida, nem para ele e nem para sua cadelinha, Diana de 12 anos de idade. Quanto à sua saúde, ele diz que “minha doença só Deus pode curar, tirando ele, médico nenhum pode.” Fora isso, ele já foi roubado e ameaçado de morte por outros moradores em situação de rua e afirma que nesses casos procurou a justiça. Mas confessa que lhe causou traumas, físicos e psicológicos.
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No ano de 2001 ele estava entrando na Igreja Universal, que fica na Avenida Júlio de Castilhos e foi atingido por um tiro de arma de fogo, que atravessou seu corpo e o manteve internado por quatro meses no hospital de Pronto Socorro. O ataque Loreni atribui à inveja dos outros moradores de rua que tentariam lhe roubar e se aproveitar dele.
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Apesar das dificuldades, ele diz que nunca sofreu com discriminação por ser morador de rua, que conhece todos no bairro em que mora e sempre recebe ajuda, seja com lona para o telhado da casa, ou com uma boa conversa de fim de tarde. “Como eu vivo na rua desde criança, eu gosto de todo mundo, até das formigas.”
Cadelinha Diana, companheira de Loreni.
A profissão é levada a sério por Loreni. Ele conta que no início não tinha o carrinho de coleta, então levava a sucata nas costas. Com o dinheiro da reciclagem, conseguiu comprar uma bicicleta usada, tirou as rodas e recolheu alguns pedaços de ferro para confeccionar, com suas habilidades de carpinteiro, um “carrinho”. Com as partes que restaram da construção, ele ainda fez a própria casa. É a casa que ele conhece, que ele construiu.
Casa de Loreni, na praça “Isabel, a Católica”.
Um papo filosófico com Fernando Fuão e seus projetos comunitários na arquitetura.
ARQUITETURA
O sentido da desconstrução é buscar a essência das coisas
F
ernando Freitas Fuão é Professor Doutor na pós graduação de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ele, que também é formado em filosofia, estuda as questões de urbanismo e inclusão social e é coordenador de um voluntariado e uma revista. Nesta entrevista, ele fala sobre os projetos que desenvolveu e participou. “Aprendi muito com esses projetos.”. Com pósgraduação em filosofia pela UERJ, Fernando se diz adepto da filosofia da desconstrução. “O sentido da desconstrução é buscar a essência das coisas.” Fuão também diz que a arquitetura não atua na inclusão social, mas deveria. “Por uma questão ética”, salienta.
O professor também comentou sobre seu trabalho nos galpões de reciclagem e nos leva a uma viagem filosófica sobre o que é o conceito de casa. “É muito relativo. O sentido de casa é quase indefinível.” INBOX - Como a arquitetura está atuando na inclusão social? Fernando Fuão - Não atua. Dentro da academia temos três campos: a graduação, a pesquisa e a extensão. Dentro da graduação é muito pouco o trabalho da inclusão, se trabalham vários projetos, mas nenhum na questão social. Na pesquisa, há alguns trabalhos que tratam da questão habitacional, mas se pensar nos campos de exclusão, como a grande parte da população
que não tem financiamento. Na extensão, encontramos muitos trabalhos vinculados a exclusão social. Diria que 60 por cento dos trabalhos da extensão são voltados para estes temas, porém na UFRGS não são encontrados trabalhos que tenham como objetivo sanear o problema da má habitação. A arquitetura não trata a questão da inclusão social, porém deveria, por uma questão ética. “O principal conceito de casa é o acolhimento. Já a essência, é a questão da hospitalidade.” INBOX - Comente sobre a sua concepção de filosofia da desconstrução. FF - Eu comecei a me interessar
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MARCO ANTÔNIO MOREIRA
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pela desconstrução já faz um bom tempo e tenho tentado levar isso para pós-graduação e também para a graduação. A desconstrução dentro da filosofia ajuda na desconstrução dos nossos valores. É uma filosofia que te desconstrói com a relação de mundo. E como ela afeta a questão da moradia? Começamos pensando na impossibilidade da moradia. Quem não tem onde morar? Os moradores de rua! Observando a eles, tu busca a essência da casa. Eles vivem como a gente, mas com algumas diferenças e a principal delas é a falta de dinheiro. A questão da casa material não importa. O sentido da desconstrução é buscar a essência das coisas. Ela te mostra isso pouco a pouco. INBOX - Qual o motivo de as pessoas em situação de rua terem a necessidade de reproduzir a estrutura de uma casa nas ruas e avenidas? FF - Teríamos que ver o conceito e a definição de casa, pois é muito relativo. O sentido de casa é quase indefinível. Aí quando falamos estrutura, parece que é uma coisa imutável, que sofre uma série de alterações mas tem uma essência. A casa é um acolhimento. Algumas coisas básicas que as pessoas em situação de rua usam é uma certa proteção, tem também papelão, colchão. Olhando essas pessoas, nós vemos o quanto elas são fortes. É uma coisa muito dura e eu não consigo imaginar a dor de como é dormir todos os dias em uma laje. Essa estrutura de casa, é de acolhimento. Esse é o principal conceito, Se tem uma essência, seria a questão da hospitalidade de um para o outro, embora essa hospitalidade possa virar hostilidade de uma hora
para a outra. “O tema ambiental virou lema até de empresas. O capitalismo exige que as empresas tenham mais consciência nesta questão.” INBOX - O senhor atua como voluntário e técnico com Galpões de reciclagem. Que valor você atribui a essas iniciativas? FF - A importância tem dois viéses: A questão ambiental, e a questão social. E nem sempre elas caminham juntas. O tema ambiental virou lema até de empresas. O capitalismo atualmente anda exigindo empresas que tenham mais consciência nesta questão, mas essa relação da qualidade ambiental, nem sempre tem a ver com recicladores. Então estas empresas não chegam nos galpões de reciclagem para ver de que forma o produto que elas produzem e chega nos galpões, afeta a vida dos recicladores. O reciclador infelizmente vive da
Projeto Ksa Rosa
porcaria do capitalismo, juntando embalagens. Ele precisa disso para gerar renda para sustentar a família. Essa é a importância: eles ajudam a reciclar o mundo (questão ambiental) e geram renda (social). “Aprendi muito com os recicladores e com os moradores de rua. Eles te fazem olhar por um ponto de vista distinto.” INBOX - Quais os projetos que o senhor mais gostou de trabalhar até hoje? FF - Com os recicladores. Aprendi muito com eles. E também os moradores de rua, que te ensinam muitas coisas que a filosofia ensina e te fazem olhar por um ponto de vista distinto, te abrindo outras possibilidades de entendimento em diversas áreas. “A desconstrução dentro da filosofia nos ajuda a desconstruir nossos valores. Te desconstrói com relação ao mundo.”
INBOX - Como você e seus alunos buscam recursos para manter todos estes trabalhos? FF - Muitos dos recursos são provenientes de rifas vendidas por eles. Também tem as vendas de cachorro-quente e bolos. Também recebemos contribuições de pais e parentes de alunos. É um trabalho lento, não entra quase nada de recurso.
INBOX - Achas que algum dia a sociedade chegará a um nível em que toda a população mundial terá direito a uma residência própria? FF - Sim e não. Sim se for tomada uma decisão comum de cada país ou globalização e não se o sistema capitalista continuar determinando nossas vidas. Acredito na democracia como um sistema mais justo que o que temos hoje, no qual moradia será um direito universal assegurado. Ou ainda pela via ecológica se aceitarmos que a terra é quem nos possui e não nós que somos proprietários da terra. Essas duas posições estão para além do comunismo ou do socialismo.
INBOX - Os trabalhos realizados por você e seus alunos já teve algum resultado obtido? FF - Tudo é muito lento, não temos resultados quantificáveis. A Ksa Rosa tem dois anos e o trabalho da EPA, apenas um. Pelo fato de ter pouco tempo, não achamos resultados tão grandes além das melhorias do trabalho feito pelos meus alunos. INBOX - Como o senhor acha que o urbanismo pode colaborar com as pessoas mais carentes?
ARQUITETURA
FF - Teria de haver melhores políticas públicas de habitação. Teria de haver locais de trabalho e postos de saúdeperto dos locais de moradia para que a pessoa consiga sustentar o seu lar.
Para saber mais sobre o projeto Ksa Rosa, assista ao vídeo de Carolina Simões (estudante de Artes Visuais - UFSM) e Letícia Durlo (Arquitetura e Urbanismo UFRGS).
Maristoni Moura, coordenadora do Projeto Ksa Rosa.
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INBOX- Quantos projetos ao todo o senhor desenvolve? FF- Desenvolvo ao todo 2 projetos de extensão e uma da pós-graduação, que é o projeto da Ksa Rosa. A Ksa Rosa é uma ocupação e ajudamos na melhorias tanto da parte interna quanto externa, e tem o objetivo de realizar a execução das práticas aprendidas no curso. Trabalhamos nas fachadas, fazemos trabalho de reabilitação de piso, etc. Grande parte do material que usamos é proveniente da reciclagem. Também temos a nível de extensão na escola EPA, com os moradores de rua onde realizamos melhorias no local. São dois trabalhos de extensão e um da pós. Tem também a nível de pesquisa o meu trabalho com recicladores e catadores que gerou um manual.
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CIDADANIA
“A gente não pode tratar outros seres humanos como se eles fossem lixo” Especialistas em Direito à habitação garantem que a inexistência de uma política de assistência social é uma abordagem bastante desastrada. BRUNO DORNELLES DOUGLAS WEBBER
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iversos são os fatores que levam as pessoas a tornarem-se moradores de rua. Os motivos sãos os mais variados, indo de problemas com bebidas alcoólicas e drogas até desilusões amorosas e desavenças familiares. Dentro desse cenário acrescenta-se a falta de oportunidade de trabalho dado a quem praticamente não tem endereço fixo. A importância do lar na vida das pessoas é tanta que está inscrita na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), artigo
17. Em seus primeiros incisos sustenta que “todo ser humano tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros” e que “ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade”. Seguindo princípios próximos ao do estabelecido na DUDH, a Constituição Federal brasileira prevê em seu artigo 1º, inciso III que, busca-se a todo o momento atender a todas as necessidades para que se efetive a todos o princípio da dignidade da pessoa humana. Através deste princípio estabelece-se que o Estado tem
o dever de garantir que todo cidadão tenha os seus direitos respeitados. A advogada Betânia Alfonsin, especialista em Direito à habitação, refere que “a primeira questão já é bastante geral, que é da dignidade da pessoa humana. Onde esta, na verdade, é um valor fundamental, um princípio fundamental da nossa Constituição Federal”. E complementa dizendo que “a gente não pode tratar outros seres humanos como se eles fossem lixo. Essa é uma visão que
Betânia relembra que na última década existiu um importante programa de incentivo à moradia, o “Minha Casa, Minha Vida”. Tal programa foi responsável por construir mais de três milhões de moradias no país. Entretanto, em 2016 foi aprovada uma Emenda Constitucional congelando os gastos em políticas sociais por 20 anos. “Então, assim como a saúde e a educação foram atingidas, as verbas para moradia e habitações melhores também foram cortadas e isso tem um impacto muito grande para essas populações de baixa renda. Pois essa população é incapaz de comprar moradia no mercado formal de moradias”, explica. Betânia defende que deva existir um monitoramento e até mesmo um cadastro das famílias afetadas pela situação de rua. Sustenta que “essas famílias têm que ser conhecidas, com seus perfis traçados. Essas pessoas têm que ser tratadas como seres humanos, afinal, o
De acordo com a advogada, há um excesso de prédios abandonados no centro da capital gaúcha, sem a devida função social da propriedade. “No Brasil, se garante o direito de propriedade, no entanto a Constituição diz que essa propriedade deve atender a função social. E isso é sim um dever que este proprietário tem. E quem deve fiscalizar o atendimento desse cumprimento da função social é o poder publico. São os municípios que têm que fazer esse monitoramento”, defende. Para ela, seria muito interessante o desenvolvimento de programas que monitorassem o atendimento da função social da propriedade e que destinassem esses imóveis não utilizados no centro da cidade
para uma política habitacional destinada à população de baixa renda que precisa de habitação de interesse social. Neste ano, a Prefeitura de Porto Alegre estabeleceu um plano de remoção de moradores de rua. Nesse contexto está o casal Bruna Nascimento (34) e Cleiton Rodrigues (28), que ficou famoso por “montar seu barraco” em um canteiro central da Avenida Goethe, área nobre e de grande movimento na capital. O casal tratou de construir sua casa com material fornecido por um restaurante próximo do local. Beneficiados pelo projeto municipal, Bruna e Cleiton passaram a morar no andar de cima de uma casa na Vila Cruzeiro, sob aluguel social.
CIDADANIA
valor fundamental do sistema jurídico brasileiro é a proteção da dignidade da pessoa humana”. E conclui dizendo que “nós temos que melhorar as políticas de assistência social, sobretudo a de construção de albergues para essa população”.
O que parece pouco, os 500 reais de aluguel em imóveis cadastrados e sujeitos a freqüente fiscalização, foi o suficiente para tirar Cleiton e Bruna da rua. Eles
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remonta à política higienizadora do inicio do século XX, virada do XIX para o XX, ou seja, trata-se de um atraso completo”. Em um segundo momento, a especialista assegura que é preciso detectar quais são as razões pelas quais as pessoas estão dormindo na rua. Para ela, há total omissão do poder público no Brasil, tanto dos Estados, quanto dos Municípios e da União, no desenvolvimento de políticas habitacionais e na melhoria das condições das habitações existentes. A advogada reitera que “pela Constituição Federal os três entes da federação têm responsabilidades e competências comuns. O artigo 23 da nossa Carta diz isso de forma bastante clara, e nenhum dos três entes tem se ocupado disso”, relata.
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estão acostumados a recomeçar de novo já que a cada mudança forçada, perdiam tudo. Desta vez, conseguiram uma geladeira e uma cama nova.
“Todo ser humano tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros”, ressalta a advogada Betânia Afonsin. Foram anos de rua, mas a limpeza e o cuidado que o casal tinha com os lugares que adotavam como lar era o que chamava a atenção de quem passava pelos locais. Na casa nova não é diferente, A cama arrumada, o banheiro e quarto limpos. “Hoje a gente toma banho quente todo dia”, comemora Cleiton. Porém, o drama agora é outro: emprego, “a prefeitura
ajuda por seis meses, se a gente não tiver renda eles aumentam mais seis”, relata Cleiton. O caminho ainda é longo e incerto, mas a sensação de
pertencimento, cidadania e respeito permite otimismo. O que para muitos é natural, para os dois tem ares de grande novidade, o direito a um abrigo para chamar de lar.
O Plano Municipal de Assistência Social de Porto Alegre (2018-2021) apresentou um diagnóstico de vulnerabilidades, entre elas a situação de rua.
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Em 2016 a equipe da Área de Vigilância Socioassistencial/ASSEPLA coordenou a Pesquisa Quantiqualitativa sobre a População Adulta e de Crianças e Adolescentes em situação de rua no municípiotravés de contrato com a UFRGS/FAURGS.
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A pesquisa foi realizada com a UFRGS pelo Programa de Pós Graduação em Antropologia Social e Sociologia, por meio de grupos focais, observações participativas, estudo etnográfico e censo e mundo da população em situação de rua na cidade. O estudo resultou em um total de 2115 adultos e 27 crianças e adolescentes em situação de rua no ano de 2016 na cidade e foi co-financiada com recursos oriundo de saldos de reprogramação do FNAS. Foram pesquisadas todas as regiões da cidade nos turnos manhã, tarde e noite. O número de adultos em situação de rua sofreu um acréscimo de 57% em relação ao número encontrado no censo realizado pela FASC em 2011.
Rodovia do Parque produz uma Casa sem CEP POLÍTICA
Luciandro de Menezes Rolim, de 37 anos, integra uma estatística preocupante do país
Luciandro Menezes de Rolim, morador de rua do centro de Porto Alegre./ Foto: Alex Ramirez
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país inteiro sofre com um grave problema. A quantidade de moradores que se encontram em situação de rua. Em trabalho realizado pelo instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) em 2017, mais de 100 mil pessoas vivem nas ruas. Sem saber o que fazer, o que vão comer, nem onde vão dormir e nem sequer podendo realizar a higiene pessoal de forma digna. Essa é a situação de Luciandro de Menezes Rolim, de 37 anos. Há dois anos, ele mora na rua com a esposa Clarice Aro da Silva,
de 50 anos. O casal atualmente vive em barracas na Esplanada Correio do Povo, que fica entre o túnel da Conceição e a Avenida Osvaldo Aranha, em Porto Alegre.
A vida antes das ruas
Tudo mudou na vida de Luciandro quando ocorreu a construção da Rodovia do Parque (BR-448) em Canoas. Ele morava na área dao Dique, na beirada do Rio Gravataí. O que parecia ser bom para a população em geral, principalmente por desafogar o trânsito da BR-116, foi uma tragédia para famílias que
residiam no local. Além disso, ele teve que lidar com a perda do emprego. Luciandro trabalhava sem carteira assinada descarregando caminhões na Ceasa em Canoas. O salário era suficiente para manter moradia e as despesas. Luciandro conta que ficou ainda mais desesperado quando perdeu o emprego ‘‘ Eu saí de lá com uma mão na frente e outra atrás, foi desesperador’’, contou o morador de rua. Luciandro tentou encontrar a solução na prefeitura de Canoas, mas recebeu negativa em todas
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LUCAS MARSIGLIA GUILHERME BERNST
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as vezes que procurou ajuda. Além disso, a prefeitura falou que ele deveria morar com os seus familiares, já que eles possuiam moradia. Luciandro conta que já passou muito tempo com os pais, e que o relacionamento entre eles era complicado. ‘‘ Se a pessoa trabalha e consegue ajudar é bem vinda mas desempregado ninguém vai querer, ninguém vai sustentar um casal nestas condições. Então o casal teve que procurar um local para morar na rua. Tiveram que vender todos os pertences, já que não tinham onde deixar. O primeiro local que encontraram na rua foi próximo à Ceasa, onde Luciandro trabalhou por mais de 15 anos. Ele lembra que chegou a ser espancado após negar a saír de lá. Triste, depois resolveram tentar a sorte em Porto Alegre. Passaram pela Praça XV, mas ficaram apenas alguns meses, pois lá não era um local sossegado. Então, foram atrás de um novo espaço e fizeram da esplanada Correio do Povo sua moradia.
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Casa e Rotina
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Não importa o clima. A chuva, o sol, o granizo. Quem vive em situação de rua é obrigado a conviver não somente com todos os riscos que a rua oferece, mas também, com as intempéries do clima. Uma coisa é certa, todos os dias Luciandro e Clarice, após almoçarem o que conseguem comprar com o dinheiro arrecadado na tarde anterior, rumam a mais uma jornada extenuante de trabalho. A busca é por materiais de reciclagem. Munidos de um carrinho de supermercado, a dupla entra no labirinto de ruas de Porto Alegre, na busca de sobrevivência. O esforço físico é recompensado
com algo em torno de 10 a 12 reais. É o que conseguem arrecadar nas jornadas que podem chegar a 12 horas em busca de materiais de reciclagem. Assim, seguem um ciclo duro, mas necessário para a sobrevivência. As refeições variam. Com o que conseguem juntar por dia, normalmente compram guisado, pão, às vezes macarrão instantâneo. ‘’ Com o dinheirinho que a gente junta à gente compra uma carne moída, pão, alguma coisa assim. Que é para nós podermos nos alimentar‘’, comenta Luciandro. As boas ações de moradores e trabalhadores da vizinhança da esplanada Correio do Povo ajudam de alguma maneira. No decorrer do tempo em que estavam concedendo entrevista a equipe, Luciandro e Clarice receberam doação de um funcionário da Santa Casa. Olhando de fora, o que se vê são lonas cobrindo o que pare cem ser três ambientes cuidadosamente delimitados, separados por estacas fixas de madeira presas, junto a um muro. Um saco de açúcar e algumas bolachas. Era a sobra do lanche
da tarde de funcionários do complexo hospitalar. ‘’Eu acho que no que a gente puder ajudar, a gente tem que fazer. Não adianta ficar em casa, esperando que as pessoas façam, que o governo faça, ou achando que alguém vai fazer. Se cada um de nós fizer alguma coisa, um abraço, um sorriso, um bom dia, entregar alguma coisa que a pessoa possa comer, que possa se agasalhar, eu acho que somando esforços a gente consegue amenizar isso, né? Comenta Edmilson Querino, 52 anos, funcionário da Santa Casa. No tempo que não estão na rua em busca de recicláveis, Luciandro e Clarice se abrigam da melhor forma que podem. É em uma, das muitas casas sem CEP de Porto Alegre que o casal busca privacidade e descanso. Com o ventou ou a chuva, não foram poucas as vezes que o casal teve que reconstruir a casa, ou espantar os bichos que chegam com a chuva.’ Tem que ir lutando, lutando, lutando. Às vezes, quando dá essas chuvas, começam a aparecer bichos’’, comenta Luciandro.
Clarice torce um pano na ‘‘cozinha’’ da casa./ Foto: Lucas Marsiglia
‘’Eu acho que no que a gente puder ajudar, a gente tem que fazer. Não adianta ficar em casa, esperando que as pessoas façam’’, comenta Edmilson Querino, que doou alimentos ao casal.
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‘‘ Tem que ir lutando, lutando, lutando. Às vezes, quando dá essas chuvas, aparecem bichos ‘‘, comenta o morador de rua Luciandro de Menezes Rolim, de 37 anos, que vive com a esposa Clarice Aro da Silva, de 50, na esplanada Correio do Povo em Porto Alegre.
Doação de açucar para o casal./ Foto: Lucas Marsiglia
O sorriso em meio à dificuldade./ Foto: Lucas Marsiglia
Luciandro no interior da sua Casa sem CEP./ Foto: Lucas Marsiglia
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No interior, a organização mostra que dentro do possível, o casal busca manter a higiene e uma estrutura digna de moradia. A ‘’ porta’’ de entrada dá a cesso ao que se pode chamar de sala de estar. Um pedaço de piso laminado mostra o capricho com que o casal busca viver e decorar o seu lar. Prateleiras sustentam itens básicos que eles necessitam. No chão, alguns pares de sapato e caixas de papelão onde guaram itens como copos e pratos. Lençóis fazem as divisórias que separam o quarto do casal da ‘’ sala ‘’, e de uma peça que faz o papel de cozinha, onde as refeições são preparadas no fogão improvisado. A casa mostra que mesmo em situação de rua, o cuidado e o senso de organização não foram abandonados. Não é somente em Porto Alegre que pessoas vivem assim. O descaso de autoridades e da maioria da população em geral, fazem com que dia após dia, cada vez mais estas pessoas sintam-se excluídas do convívio social. É um problema grave, mas que com a ajuda de pessoas dispostas a doar o que quer que seja, a dar um cumprimento, um abraço ou mesmo contar as histórias destes moradores de rua, talvez possa ser amenizado. Quem sabe em um futuro não muito distante, diminuam não só em Porto Alegre, mas no mundo todo, as Casas sem CEP.
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Interior da casa de Loreni. Foto: Alex Ramirez
Vivendo um dia após o outro Prof. Ms. Alex Ramirez
Direção Criativa e mentor do Projeto “A Casa Sem CEP” Curso de Jornalismo e Publicidade e Propaganda Centro Universitário Metodista IPA
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ocê já se imaginou sem nada? Vivendo com um mínimo de coisas? Sem conforto algum no calor ou no frio, numa situação onde a efemeridade e a impermanência ditam as regras? Não estou falando aqui daquela máxima do desapego ou de uma opção conceitual de vida minimalista, mas sim me referindo a um grave problema social que atinge as grandes metrópoles do mundo todo, não restrita a nossa cidade de Porto Alegre. As condições em que (sobre)vivem os moradores de rua é uma luta diária pelo mínimo de dignidade e cidadania, vivendo um dia após o outro. O que os levou para as ruas, como
sobrevivem em meio a essa problemática situação e como configuraram as suas “casas” é o que tentamos descobrir através dos seus depoimentos. Nas histórias contadas pelo moradores “que estão em situação” de rua – marginalizados sem serem marginais - e que foram os grandes protagonistas enunciadores do projeto “A Casa Sem CEP” essa condição aparece para todos eles, desde o desemprego, o abandono, as rupturas familiares, as desistências, as perdas, os fracassos, a falência, a falta de perspectivas e como um remédio anestésico para alguns, o esquecimento do passado. Em
todos há um grito desesperado de que a vida pode ser melhor do que se apresenta, mas no momento, é dessa forma que eles tentam (sobre)viver nas ruas, nos cantos, meio escondidos, ocupando espaços públicos, onde normalmente ninguém jamais pensaria em residir. É como viver o tempo das cavernas em plena Hipermodernidade. De acordo com os últimos levantamentos da Prefeitura Municipal, Porto Alegre conta com cerca de 4.000 moradores de rua espalhados pela cidade, hipervisibilizados pela imprensa e pela sociedade. A sistemática retirada dos moradores esconde a falta efetiva de políticas públicas
Casa de Cleiton. Foto: Alex Ramirez
que para eles estar nas ruas tem a ver com a busca da liberdade. Fuga ou não, viver nas ruas significa viver em liberdade. Tendo em mente que a Universidade deve atuar como formadora de profissionais críticos, éticos e atentos às questões sociais, o projeto foi pensado para convergir a provocação à discussão (imagética, crítica e narrativa) dessa questão na formação dos alunos, buscando, através desse projeto acadêmico e social engajar os estudantes de Jornalismo e Publicidade e Propaganda do IPA, na perspectiva desafiadora de narrar as histórias de cada morador a partir dos encontros com eles, nas suas “casas”, tentando entender o universo de cada caso. A intenção principal e norteadora desse projeto foi permitir e instigar os moradores das “Casas Sem CEP” a serem enunciadores da própria história, cabendo aos agentes do projeto o papel de mediadores e formadores para as produções. Também provocar
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vivos diante da triste realidade que os empurra para isso e os mantém presos nessa situação caótica. Para entendermos tudo isso, muitas perguntas foram feitas e as respostas foram quase sempre as mesmas, pois os motivos que os levaram para as ruas são praticamente os mesmos: a drogadição, o álcool, as relações familiares destrutivas, a falta de afeto e uma certa insanidade evidenciada em todos os moradores. Emprego? Como poderiam conseguir um emprego se não tem um CEP? Afinal, um CEP aparentemente nunca teve importância, mas para essas pessoas tem sim. As “Casas Sem CEP”, são casas informais, sem referência e pertencimento; são residências ocupando espaços públicos, sejam eles quais forem, embaixo de pontes e viadutos, muros, calçadas, embaixo de marquises, terrenos baldios, canteiros de avenidas, parques, etc. Entretanto, todos os entrevistados prezam uma condição, a da liberdade. Conceito que até podemos questionar, mas
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e sociais de moradia, assim como propostas mais contundentes e a falta de ideias criativas do poder público para tentar mudar essa situação. O que temos são políticas paliativas que não solucionam este grave problema e apenas retiram os moradores dos locais onde se encontram, apreendem seus pertences e desinstalam as “casas”, quase como em um processo de higienização dos lugares onde habitavam. E o pior, eles permanecem nas ruas sem nada tendo que se reconstruir a cada dia. A “casa” foi o nosso objeto, o nosso viés de investigação onde se buscou o entendimento de cada dimensão do imaginário dos moradores, desde a concepção criativa de casa e suas configurações, nos mais diversos formatos e materiais, procurando entender como resolvem os mínimos hábitos diários como: tomar banho, a higiene, as necessidades fisiológicas, lavar as roupas, cozinhar, dormir. Em cada casa um universo, uma identidade, uma tentativa de se manterem
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A casa de Linda. Foto: Alex Ramirez
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nos alunos a reflexão sobre a relação e o comprometimento entre comunicação e cidadania, propondo o engajamento entre os processos comunicacionais abordados pelas disciplinas para desvelar e abordar as questões sociais e refletir sobre a própria ação em relação a essa questão, mas sobretudo, abordar essas “casas” como espaços de afeto e de busca por cidadania. O que fotografamos, gravamos, escrevemos e testemunhamos através das produções textuais, fotográficas e audiovisuais foram depoimentos sensíveis que demostram a dureza da vida desses protagonistas, não por uma clara opção de vida, mas como uma consequência de falta de opções, de incertezas e contingências que os levaram a viver nas ruas das grandes cidades. Os resultados do projeto “A Casa Sem CEP” mostram um pouco dessas histórias;
um recorte de tempo, pois a maioria das “casas” não existe mais, pois foram retiradas e desmontadas pelo poder público. Os resultados e conteúdos gerados pelo trabalho de campo foram os episódios da websérie dedicados a cada morador, assim como uma exposição fotográfica na instituição, o lançamento da revista Inbox e a confecção de cartões postais, bem como a discussão do problema habitacional, assunto de suma importância na formação de profissionais da comunicação comprometidos com a ética, cidadania e preocupação social. Por fim, o projeto pretendeu instigar os alunos a tornaremse mediadores de enunciados em relação a sua condição de enunciadores dos outros, capazes de escutar e perceber o outro de maneira ética e sem preconceitos capazes de dar espaço a manifestação
e representatividade das alteridades – algo tão difícil na contemporaneidade. Nesse sentido, foi importante promover a atuação dos alunos como formadores responsáveis em auxiliar os sujeitos, provocando a reflexão e discussão dessa grave situação e promovendo a integração entre o fazer comunicacional e a cidadania de maneira transversal, uma vez que o projeto se expandiu em diferentes disciplinas e mídias, sendo abordado de maneira transmidiática e transdisciplinar. Fica a certeza da contribuição, ainda que pequena e embrionária, tanto para os alunos da Comunicação do IPA quanto para os moradores, e de que o projeto terá continuidade e está apenas começando.
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