9 minute read
A Formação de um Protestantismo Rural no Brasil
Entre os séculos XIX e XX, formou-se no Brasil uma modalidade diferenciada de protestantismo: o protestantismo rural. Isto ocorreu nas regiões onde não houve conflito com a teologia católica previamente implantada, permi tindo que a mensagem protestante fosse reinterpretada, reinventada e moldada à cultura caipira e nordestina. Lidice Meyer Pinto Ribeiro 1
Advertisement
1 Pós Doutora em Antropologia e História e Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo. Docente do Programa de Pós Graduação em Ciências da Religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pesquisadora Líder do Núcleo de Estudos do protestantismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie (NEP). e-mail: lidice.ribeiro@mackenzie.br
A evangelização protestante no interior do Brasil O catolicismo brasileiro em seus primórdios dividiu- -se em dois tipos básicos: um catolicismo ortodoxo presente nas cidades e um catolicismo popular ou rústico, desenvolvido nas áreas mais internas do país. O catolicismo rústico criou fortes laços com a cultura brasileira, chegando mesmo a formar uma relação simbiótica com ela. Dentre as características mais relevantes desta forma especial de catolicismo podemos citar a familiaridade com o sagrado, traduzida numa religiosidade difusa, santorial, politeísta, mágica e messiânica, e o caráter lúdico. Um catolicismo que se desenvolveu ao redor de santos de devoção particular, regado de práticas mágico-supersticiosas e crenças messiânicas alicerçadas no sebastianismo português, mas também social com seus mutirões, relações de compadrio e compadresco, festas de santos, quermesses e procissões.
Assim como ocorreu o desenvolvimento deste tipo peculiar de catolicismo, observamos também o surgimento de um protestantismo diferenciado em certas regiões do chamado cinturão caipira e no Nordeste, com características muito próximas ao catolicismo rústico, embora também nitidamente diverso deste. O protestantismo histórico, representado pelas igrejas presbiteriana, metodista, batista e congregacional, implantou-se definitivamente no Brasil no século XIX, encontrando já profundamente enraizado o catolicismo trazido pelo colonizador português. Apesar de sua entrada inicial ter ocorrido em cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador e Porto Alegre, o protestantismo não se desenvolveu satisfatoriamente nos centros urbanos. A mensagem religiosa protestante não conseguiu atingir a classe dominante, fortemente imersa no catolicismo. Mesmo tendo a pregação protestante conquistado a admiração e simpatia de membros da alta sociedade e até mesmo de dentro do clero, as conversões nos primeiros anos de implantação do protestantismo foram pouco relevantes. Por encontrar resistência ao seu crescimento nos centros urbanos, onde o catolicismo assumia uma postura dominante pela presença física tanto das igrejas como dos párocos, o protestantismo buscou terreno no ambiente rural. Seguindo o caminho da expansão cafeeira, os missionários protestantes investiram na evangelização dos interiores, penetrando pelas zonas rurais da província de São Paulo e Minas Gerais, dali se encaminhando até Mato Grosso e Goiás. O desenvolvimento do protestantismo no meio rural: Ao penetrar na zona rural, os missionários protestantes depararam-se com uma religiosidade que trazia em si elementos do catolicismo oficial moldados segundo a cultura caipira. Não houve inicialmente um confronto no sentido de uma opção radical entre duas mensagens religiosas. O evangelho protestante chegou ao meio rural brasileiro como uma proposta alternativa plausível tanto no plano das crenças como no das condições de existência. Devido às desigualdades sociais e religiosas encontradas em cada bairro rural a que o protestantismo chegava, apesar da aceitação da mensagem, a forma como esta foi trabalhada dentro do sistema sócio-religioso não foi a mesma em todos os locais.
Nos bairros onde o catolicismo oficial era mais presente, o evangelho protestante chegou como uma nova religião contrastante à religião anteriormente estabelecida, onde a identidade do “crente” protestante se formava em oposição a do católico. Já quando o missionário protestante encontrou bairros onde os elementos oficiais do catolicismo eram extremamente escassos, se não ausentes, não houve confrontos e a mensagem protestante recebida foi filtrada, reinterpretada e reinventada. Foi então que se desenvolveu o protestantismo rural.
O desenvolvimento do protestantismo rural: Por situarem-se em regiões de difícil acesso, alguns bairros rurais raramente tinham contato com um padre, passando alguns por um descrédito do catolicismo mesmo antes da chegada do protestantismo. Como não havia uma religião oficial pré-estabelecida contra a qual necessitasse de contrapor-se, o protestantismo teve espaço para reinventar-se, dando origem a uma nova forma religiosa: o protestantismo rural. Nesta forma de protestantismo, observa-se a inexistência de rupturas com o catolicismo de raiz pré-existente no lençol de cultura caipira brasileiro. A mensagem racional do protestante se adaptou às crenças e práticas culturais, inserindo-as dentro de suas explicações lógicas do universo circundante.
Familiaridade com o sagrado Muitos dos símbolos e ritos do protestantismo oficial receberam uma nova roupagem, assumindo características até renegadas pela igreja oficial. A água, o pão
e o vinho da eucaristia apontam no protestantismo rural para um poder regenerativo e purificador sendo muito mais que apenas um sinal visível da ação de Deus. O batismo assume uma conotação muito particular por remeter-se à herança, não à “herança da terra”, tão importante para o grupo social agrário como um todo, mas a “herança da terra celestial”, que garante a sua participação no Reino de Deus e a sua entrada no céu. A profissão de fé reinventada pelo protestantismo rural é uma cerimônia que marca o ingresso do adolescente de ambos os sexos na idade adulta. No plano religioso, é vista como um ato de confirmação da dedicação feita pelos pais por ocasião do batismo e no plano social, habilita o morador a realizar duas participações na sociedade: casar-se e batizar os filhos. A eucaristia é um ritual de consagração e uma transposição transcendente para a dimensão celestial, onde Jesus habita. Para a participação, necessita-se de uma purificação das relações sociais, através do restabelecimento de laços de amizade porventura rompidos. Por fim, na conversão, rito essencial na vida de um crente protestante, ocorre, na concepção dos fiéis, o retorno à perfeição estabelecida por Deus para a manutenção da ordem no bairro. Crêem que Deus é o criador e o mantenedor da ordem e da estabilidade natural e social, logo, o afastamento de um dos elementos sociais da comunhão da igreja é uma ruptura na organização, necessitando ser restaurada. Daí a necessidade da prática da evangelização, pois é através dela que os moradores crentes vão recuperar o equilíbrio perdido com o afastamento de um de seus “filhos”.
Todo o universo é sagrado, pois Deus, o criador e mantenedor da vida, age na criação através da natureza que é o veículo da força divina e também o seu meio de comunicação com os homens. O caipira protestante “lê” nos eventos meteorológicos e nas manifestações de animais as mensagens de Deus para os seus problemas cotidianos, como quando plantar, colher, castrar a criação. A relação do lavrador é diretamente com Deus, que para o caipira habita o céu, mas se manifesta na vida dos homens na terra através da natureza. Cabe ao homem conhecer a linguagem de Deus na natureza. Da mesma forma, o uso de ervas curativas e mágicas é comum, pois faz parte dos dons de Deus ao homem. Em oposição ao protestantismo oficial, a relação com Deus é próxima e humanizada, dispensando muitas vezes um mediador, papel de Cristo no cristianismo reformado e dos santos no catolicismo. Não que Jesus não exista ou que perca a sua importância, mas seu nome não é frequente nos discursos e nas orações. Apesar disso, o caipira necessita de um constante religar a Cristo através da participação mensal na eucaristia. A figura do Espírito Santo tão reverenciada nas igrejas pentecostais, também não é constante. Nos relatos sobre milagres, a autoria dos mesmos é sempre atribuída a Deus. A presença do Espírito Santo restringe-se à transformação efetuada pelo mesmo por ocasião da conversão. O diabo, por sua vez, torna- -se um tentador medíocre com o poder limitado por Deus, estando suas ações submetidas muitas vezes à concordância humana. Os anjos da guarda, tão presentes no catolicismo popular, se mostram totalmente ausentes. Já os seres fantásticos mágico-sobrenaturais como saci, lobisomem, boitatá e outros, ignorados pelo protestantismo oficial, surgem esporadicamente, com finalidades morais e de controle social, podendo ser investidas da autoridade como agentes de Deus ou do diabo.
O caráter lúdico do protestantismo rural A segunda característica da religiosidade caipira, o caráter lúdico, se mantém no protestantismo rural, sendo percebida através das festas, mutirões e laços de compadresco, que transcendem o âmbito familiar, encontrando no bairro a sua unidade básica de manifestação. Estes três eventos sociais censurados pelo protestantismo histórico são re-significados dentro do protestantismo rural.
Não há a tradicional festa do santo padroeiro com a procissão, mas ocorrem festas diversas, marcando datas anuais como natal, ano novo e o aniversário da igreja, bem como festas que celebram o ritmo da vida comunitária: batismos, casamentos, velórios. Os moradores dos bairros católicos vizinhos participam livremente das festas, estabelecendo relacionamentos inter-religiosos. A principal festa sempre é a do aniversário da igreja. À semelhança da festa do santo padroeiro, é nesta data que se relembra a gênese do bairro, pois na compreensão dos moradores a religião protestante é que legitima a organização social diferenciada do bairro onde residem. Pode ser estranho
que um velório seja considerado uma festa, mas na concepção do protestante rural, festa é uma ocasião para reunião de muitos “parentes”, reforçando a noção de pertencimento a um bairro rural. Logo, um culto especial ou um enterro podem ser considerados uma festa, uma vez que atendem às suas duas condições necessárias: reunir muita gente e fortalecer a noção de identidade como bairro rural protestante. Ainda dentro da ideia lúdica de festa, ocorrem os mutirões voluntários, sem a tradicional comemoração que ocorre nos bairros rurais católicos, em seu término, pois o próprio trabalho em si já é uma festa. Também não há o consumo de bebidas alcoólicas frequente nos mutirões dos bairros católicos.
Apesar do protestantismo histórico não considerar os laços do compadrio, as relações inter-pessoais nos bairros rurais não permitem que um indivíduo sozinho se sinta solitário. Através das relações de parentesco, biológico e social, todos os moradores são parentes, numa relação análoga ao compadresco católico. Numa lógica de trocas, de reciprocidades e relações, crêem que da mesma forma que Deus vive em união na Trindade com Jesus e o Espírito Santo, assim também aqueles que o seguem devem viver em união. Não ocorre, portanto, a substituição do compadresco pela fraternidade, mas há uma reorganização simbólica da relação, com o parentesco espiritual complementando o parentesco biológico e social.
Como uma grande liturgia cósmica, a vida cotidiana do camponês se desenvolve num universo que transpira a presença divina numa constante eucaristia. O sagrado permeia as relações sociais, as relações com a natureza, com os seres sobrenaturais e com Deus. O protestantismo apenas se deixou invadir pela beleza e pela simplicidade das práticas e da sabedoria do homem do campo para tornar-se um protestantismo rural. A religiosidade popular presente nos bairros rurais protestantes em muitas maneiras se assemelha ao catolicismo popular, mas também em muitas maneiras se distancia deste, originando um universo de crenças e práticas único e diferenciado. Enfim, em meio às dificuldades da labuta no campo, não serão os dogmas da religião oficializada que trarão força e consolo, mas sim a fé que traz a esperança da chuva e dos frutos, e que abre espaço para a ação do homem em cooperação com o mover de Deus.
Referências bibliográficas:
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Memória do sagrado – estudos de religião e ritual. São Paulo, de Paulinas, 1985. MENDONÇA, Antônio Gouvêa. O celeste porvir – A inserção do protestantismo no Brasil.São Paulo, ASTE, 1995. RIBEIRO, Lidice Meyer Pinto. “Protestantismo Rural: um protestantismo genuinamente brasileiro”. In: FERREIRA, João Cesário Leonel (org). Novas perspectivas sobre o protestantismo brasileiro. São Paulo: Paulinas /Fonte Editorial, 2009. RIBEIRO, Lidice Meyer Pinto. Protestantismo rural – magia e religião convivendo pela fé. São Paulo: Editora Reflexão, 2013.
Saci.
Igreja na década 40.
Igreja na década 90.