12 minute read
Misticismo no Heavy Metal
A espiritualidade presente nas canções desse gênero, para além da imagem diabólica que se lhe costuma atribuir, revela um imaginário complexo que desvela as fontes das tradições da cultura ocidental. Luciana Amendola Imbriani Kreidel 1
Advertisement
Ilustração interna do livreto do álbum “Seventh Son of a Seventh Son” (Iron Maiden), de 1988. O heavy metal é um gênero musical nascido no rock’n’roll e que exponencia os desejos de rebeldia e de não conformidade típicos do rock. Em sua origem, nas décadas de 1970 e 1980, foi rapidamente rotulado de “satanista”, especialmente em razão de seus temas, do visual sombrio adotado pelas bandas em seus shows e vestimentas e de sua atitude.
Apesar de algumas bandas, tais como Morbid Angel, Cannibal Corpse, Brujería, Mayhem e Sepultura terem sua trajetória marcada pelos temas de morte e destruição, ou de bandas como AC/DC, Guns N’ Roses e Samson concentrarem sua temática na afamada fórmula “sexo, drogas e rock’n’roll”, uma análise mais detalhada das letras das músicas das bandas mais representativas do movimento evidencia uma riqueza de temas tão profunda que fica claro que o alegado “satanismo” trata apenas de um recurso alegórico para ilustrar as ideias retratadas e para chamar a atenção do público.
Por outro lado, em bandas como Rainbow, Black Sabbath, Iron Maiden, Dio, Rush, Megadeth, Metallica, Tierra Santa, Amon Amarth, Manowar, Rhapsody, Stratovarius, Bruce Dickinson e Blaze Bailey sobressai-se uma variedade rica de temas, tais como literatura, mitologia (egípcia, grega, celta, nórdica e maia), história, guerras, destruição nuclear, meio ambiente, ciência, ficção científica, busca pelo sentido do “eu”, da vida e da morte, espiritualidade, religião, misticismo e o sobrenatural.
A banda inglesa Iron Maiden, fundada em 1975 e que segue lotando estádios em shows mundo afora, valeu- -se dos temas indicados acima para compor as quase 170 canções presentes em seus 16 álbuns de estúdio, sendo que a precisão dos feitos históricos descritos nas letras de “Alexander the Great” (1986), “Montségur” (2003) e“Empire of the Clouds” (2015) e a poesia contida em “Rime of the Ancient Mariner” (1984), “Lord of the Flies” (1995) e “Isle of Avalon” (2010), citando apenas algumas, seriam de grande valia como instrumento didático para o ensino de História e de Literatura nas escolas.
Tendo em vista que o Iron Maiden foi uma das primeiras bandas de heavy metal e que continua ativa até hoje, mais de quarenta anos depois, tomaremos as letras dessa banda como base para a presente análise acerca do misticismo no heavy metal, dada a representatividade da banda em toda a história do gênero.
Rituais sobrenaturais O misticismo, a espiritualidade, o sobrenatural e a tentativa de compreender a morte são muito presentes nas letras da banda Iron Maiden e se expressam de formas diversas. Abordaremos, na sequência, algumas dessas manifestações.
O álbum “The Number of the Beast”, de 1982, ficou conhecido por sua capa chamativa, em que o diabo é retratado como uma marionete manipulada pela mascote da banda, Eddie.
À época, o nome do disco e o visual de sua capa levaram extremistas religiosos a incitarem as rádios a banirem as músicas da banda e os fieis a queimarem seus discos. Contudo, uma análise da letra da música “The Number of theBeast”, contida no mesmo álbum e inspirada no filme “A Profecia II”, de 1978, mostra que a histeria gerada à época não tinha razão de ser. Na canção, o protagonista caminha, à noite, e se apavora ao se deparar com um grupo de pessoas realizando um ritual à luz de tochas, gritando, entoando cantos e invocando os céus com as mãos. O protagonista, assustado, conclui se tratar de um ritual de sacrifício satânico. Seu ímpeto é o de fugir e chamar a polícia, mas, ao mesmo tempo, fica hipnotizado pelo que vê. Ele se sente atraído, dividido e chega a duvidar de seus olhos.
“This can't go on I must inform the law Can this still be real or just some crazy dream But I feel drawn towards the evil chanting hordes They seem to mesmerise me ... can't avoid their eyes 666 the number of the beast 666 the one for you and me” (trecho da canção “The Number of the Beast” (Iron Maiden), do álbum de mesmo nome, 1982.)
Esse é um dos primeiros encontros com ritos sobrenaturais retratados nas letras da banda. Anos mais tarde, um rito semelhante seria descrito na letra da canção “Dance of Death”, do álbum de mesmo nome, de 2003, inspirada no filme O sétimo selo, de Ingmar Bergman (1956).
O guitarrista Janick Gers conta que “bem no fim do filme, quando todos os atores tinham acabado de filmar e ido embora, Ingmar Bergman editou uma sequência sem que ninguém soubesse, em que a câmera se afasta em direção ao horizonte e, à distância, nas montanhas, algumas pessoas dançavam – a chamada ‘dança da morte’.” Apesar de a canção se inspirar na dança da morte medieval, tão retratada em obras de arte do período, a letra, na realidade, narra um ritual sobrenatural um pouco diferente.
Em “Dance of Death”, diferentemente de “The Number of the Beast”, o protagonista é posto em tran- se e obrigado a participar do ritual realizado pelos mortos. Seu espírito, separado do corpo, paira sobre ele e o vê dançar, cantar e entoar com os mortos. Entretanto, assim como em “The Number of the Beast”, apesar de estar apavorado, o protagonista fica hipnotizado pelo rito e sem ação durante alguns minutos, até que seu espírito se reúne novamente com seu corpo, momento em que ele corre loucamente e foge do grupo macabro.
O sentido que a letra tenta atribuir para esse encontro inusitado é o de que devemos desfrutar da vida sempre, pois a morte pode nos encontrar na próxima esquina – um tópico recorrente na temática da banda.
“When you know that your time has come around You know you'll be prepared for it Say your last goodbyes to everyone Drink and say a prayer for it” (trecho da canção “Dance of Death” (Iron Maiden), do álbum de mesmo nome, 2003.)
O destino da alma
A separação entre o corpo e a alma e o destino subsequente da alma são temas de cunho místico, espiritual e sobrenatural também presentes em outras canções da banda, como “Twilight Zone” (do álbum “Killers”, 1981), em que o espírito de um homem morto há três anos, preso entre o mundo dos vivos e o dos mortos, visita sua amada e tenta avisá-la de que ela nunca estará sozinha; e na canção “Heaven Can Wait” (do álbum “Somewhere in Time”, 1986), em que o espírito do protagonista paira sobre seu corpo e, enquanto avista o famoso túnel iluminado ao fim do qual diversas outras almas o aguardam, reflete sobre a brevidade da vida, sobre o quanto ainda gostaria de realizar na Terra e sobre qual seria seu destino (Céu, Inferno ou Purgatório). Nesse momento, ele sente seu espírito retornar à Terra, mas não sabe se apenas acordará de um sonho ou se, de fato, reencarnará.
Na canção “The Apparition” (do álbum “Fear of the Dark”, 1992), as ponderações da banda sobre a brevidade da vida, sobre a necessidade de usufruir dela ao máximo e sobre o destino da alma ficam mais profundas. Na letra, a alma do protagonista recém-falecido
“A Ascensão dos Abençoados”, de Hieronymus Bosch. Parte do painel “Visões do Além” (1505-15), óleo em painel de carvalho, 88,8 x 39,9 cm, Museo di Palazzo Grimani, Veneza. Foto de Rik Klein Gotink para o Bosch Research and Conservation Project, via Wikimedia Commons. visita os vivos e provoca uma queda perceptível na temperatura, enquanto reflete sobre a necessidade de ter amigos verdadeiros em vida, de viver a vida com paixão, de fazer seu próprio destino (livre-arbítrio) e de acreditar no que se faz. Também pondera que o fato de algumas pessoas serem muito ingênuas en-
quanto outras são muito sábias leva a crer que estas últimas já viveram mais de uma vida. Pergunta-se, também, sobre o destino da alma e se ela pode viajar no tempo e no espaço. Ele, agora, está para descobrir as respostas a todas essas perguntas.
As preocupações com o destino da alma também estão presentes em outras canções da banda, como “Infinite Dreams” (do álbum “Seventh Son of a Seventh Son”, 1988), em que o protagonista se tortura tentando descobrir se irá para o Céu ou para o Inferno (“But wouldn’t you like to know the truth / Or what’s out there to have the proof / And find out just which side you’re on /Where would you end in Heave nor in Hell?”) e na letra de “The Thin Line Between Love And Hate” (do álbum “Brave New World”, 2000), em que o protagonista está tranquilo, pois tem certeza de que sua alma viverá para sempre depois de sua morte (“I will hope, my soul willfly, so I will live forever / Heart will die, my soul will fly, and I will live forever”).
Todavia, é na canção “Hallowed be Thy Name” (“Santificado seja o vosso nome”, do álbum “The Number of the Beast”) que tais indagações atingem seu clímax na poesia do Iron Maiden. Essa canção, considerada pelos fãs até hoje, a melhor música do grupo e, segundo a banda, ambientada na Idade Média (e, provavelmente, no contexto da Inquisição), descreve os pensamentos e emoções de um condenado em seu caminho para a forca. Diante da morte iminente, ele sente primeiramente angústia; depois, terror; e, finalmente, esperança na continuidade de sua alma, expressa na última frase que apropriadamente abre a oração “Pai Nosso”.
O suspense, a confusão, a angústia e a imagética presentes na narrativa são tão intensos e convincentes que, de acordo com o escritor Stephen King, essa música o inspirou a escrever o livro À espera de um milagre (que deu origem ao filme homônimo). Note-se que justamente o álbum que levou religiosos extremistas a fazerem fogueiras com discos na década de 1980 é, ironicamente, o mesmo que contém uma canção com imagética e crença fortemente influenciadas pelo imaginário judaico-cristão e pelo necessário antagonismo presente nas ideias de Bem e Mal, pas-
I'm waiting in my cold cell When the bell begins to chime Reflecting on my past life and it doesn't have much time 'Cause at 5 o'clock they take me to the gallows pole The sands of time for me are running low Running low
When the priest comes to read me the last rites I take a look through the bars at the last sights Of a world that has gone very wrong for me
Can it be that there's some sort of error Hard to stop the surmounting terror Is it really the end, not some crazy dream?
Somebody please tell me that I'm dreaming It's not so easy to stop from screaming But words escape me when I try to speak
Tears flow but why am I crying After all I'm not afraid of dying Don't I believe that there never is an end
As the guards march me out to the courtyard Somebody cries from a cell: God be with you If there's a God then why has he let me go?
As I walk all my life drifts before me Though the end is near I'm still not sorry Catch my soul, it's willing to fly away
Mark my words please believe my soul lives on Please don't worry now that I have gone I've gone beyond to see the truth
When you know that your time is close at hand Maybe then you'll begin to understand Life down here is just a strange illusion
Hallowed be thy name Hallowed be thy name
Estou esperando em minha cela gelada Quando o sino começa a tocar Refletindo sobre minha vida, que não tem mais muito tempo Porque às cinco em ponto eles me levarão para a forca As areias do tempo, para mim, estão se esgotando Se esgotando
Quando o padre vem ler para mim os ritos finais Eu dou uma última olhada pelas barras Em um mundo que deu muito errado para mim
Será possível haver algum tipo de erro? É difícil superar o terror que me toma Esse é realmente o fim, não algum sonho maluco?
Alguém, por favor, diga que estou sonhando Não é fácil parar de gritar As palavras me escapam quando eu tento falar
Lágrimas correm, mas por que eu estou chorando? Afinal eu não tenho medo da morte Não acredito que nunca haverá um fim?
Enquanto os guardas me conduzem ao pátio Alguém grita de uma cela: "Deus esteja contigo" Se existe um Deus, por que ele me deixou morrer?
Conforme caminho, toda minha vida passa diante de mim E apesar de o fim estar próximo, não me arrependo Agarre minha alma, ela está pronta para voar
Marque minhas palavras, acredite, minha alma continua viva Não se preocupe agora que eu parti Eu fui além para ver a verdade
Quando você sabe que sua hora está chegando Talvez então você comece a entender Que a vida aqui em baixo é apenas uma estranha ilusão
Santificado seja o vosso nome Santificado seja o vosso nome
À guisa de conclusão
Por meio desta breve análise de algumas letras da banda Iron Maiden, mostramos que o misticismo, a espiritualidade, o sobrenatural e a pós-vida, fortemente permeados pelo imaginário judaico-cristão, estão presentes também no heavy metal, domínio erroneamente considerado “satanista” por observadores desavisados, que se deixam influenciar apenas pelas capas dos discos e pelo visual de algumas bandas. Além disso, indicamos que o percurso místico percorrido pela banda alterna momentos em que predomina a noção de destino inescapável com outros em que o homem e seu livre-arbítrio desempenham um papel ativo e decisivo em sua fortuna, o que pode ser percebido nas canções indicadas acima e em diversas outras.
A leitura de tais letras nos dá uma ideia da poesia presente nas canções da banda, mas é claro que a apreciação completa de sua beleza somente acontece ouvindo-se as músicas, ficando aqui um convite ao leitor.
Bibliografia
DICKINSON, Bruce. An Autobiography. London: Harper Collins Publishers, 2018. MAIDEN, Iron.Death on the Road Tour Book, 2003 – 2004. MELLER, Lauro. Iron Maiden – a journey through History. Curitiba: Appris Editora, 2018. SHOOMAN, Joe. Maiden Voyage. London: Music Press Books, 2016. WALL, Mick.Run to the Hills.London: Sanctuary Publishing Limited, 2004. Website “The Iron Maiden Commentary”: www. ironmaidecommentary.com .