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Essa Figura, O Diabo
O diabo não é uma figura uniforme no imaginário do cristianismo. No correr dos séculos sua personalidade e aparência se alteraram, com traços dominantes que não substituem totalmente os anteriores, mas muitas vezes, convivem coetaneamente, desenhando uma identidade complexa, nem sempre coerente e que revela muito do momento vivido pela sociedade que o configura. José Luís Landeira 1
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Ao longo da história do cristianismo, o diabo passou por diversas representações que vão de um irônico e rústico bufão da corte a uma complexa figura necessária à manutenção da ordem no mundo; de príncipe das trevas, arqui-inimigo de Deus e organizador das hostes do mal à representação simbólica da maldade humana. Assim, parece ser sempre adequado, ao falar dele, explicar de que diabo estamos tratando. Ele pode não ser tão feio como o pintam... ou pode ser até mesmo pior. O diabo não é um, são vários.
O cristianismo popular dos primeiros séculos construiu uma figura do diabo como um ser ignorante, rude, vaidoso, que está sempre em oposição aos cristãos, mas é também medroso e escravo de suas paixões e cobiças.. Embora deseje afastar as pessoas do Cristo, falta-lhe, com frequência, a astúcia e a inteligência presentes no Novo Testamento. O diabo, na maior parte da Idade Média, tem curta inteligência: vive no caos e na escuridão. Alia-se aos demônios, mas não os domina. É um entre eles. Por estar tão desorganizado e ser tão ignorante, ele é muito fácil de espantar: assusta-se com um grito, com certas ervas, com uma figa ou com água benta. É como se ignorância fosse sinônimo do mal. Onde há conhecimento, apenas Deus pode vigorar.
Nos primeiros mil anos da sociedade ocidental, o mundo era o espaço do maravilhoso, habitado por seres como fadas e gnomos, inexplicáveis ao pensamento humano, mas aceitos como parte da natureza. Entre esses, encontramos o diabo. Traumatizada ainda pelas invasões germânicas, por povos cujo modo de pensar violento assustava e fazia com que se perdessem noções claras de estabilidade, a civilização cristã europeia valorizava a ideia de civilização e organização. Esses conceitos são tidos como sinônimos do bem. Daí também o valor que a sociedade medieval dará a hierarquia: é nela que descansa o equilíbrio. Onde houvesse organização e hierarquia, ali haveria conhecimento e civilização e, desse modo, a presença de Deus. O oposto do bem que a sociedade medieval desejava, naquele momento, alcançar, era representado por esse diabo bufo.
O diabo era, com frequência, uma imagem paródica, até cômica, facilmente ludibriado pelos seres humanos. Essa imagem diabólica chega aos nossos dias nas muitas lendas que narram homens e mulheres espertos que enganaram o “Tinhoso”. Não faltam, no folclore brasileiro, histórias como aquela em que Pedro Malasartes enganou o diabo.
Esse diabo rústico não tinha um corpo definido pelos teólogos, mas foi ganhando um com o passar do tempo. Usualmente, ele era representado como um humano com as características do que, na altura, se considerasse uma pessoa feia. Por vezes, se metamorfoseava em uma mulher ou homem com beleza excepcional para melhor poder enganar. Aos poucos, se começam a incorporar os atributos físicos dos deuses pagãos, como os pelos faciais do deus egípcio Bes e as patas de cabra e os chifres e rabo de Pã.
Será, principalmente, a partir do ano mil, que a aparência grotesca e monstruosa do diabo, entre o humano e o animal, se tornará comum. Umberto Eco, em História da Feiúra, explica que é a partir dessa época que o diabo se torna “um monstro dotado de cauda, orelhas animalescas, barbicha caprina, artelhos, patas e chifres, adquirindo também asas de morcego”.
A partir do ano mil, mais especificamente do século XII, o diabo assume uma nova imagem, mas muda-se também a compreensão sobre ele. Os seres do mundo maravilhoso que antes concorriam com o diabo, são agora vistos como subordinados a ele, que eleva a sua posição sobre todos, constituindo-se em príncipe do mal, em oposição perfeita a Jesus. Neste momento, o conceito de organização em si mesmo não é mais sinônimo de bem, porque o indivíduo descobriu a possibilidade de se organizar para o mal. Assim, não basta estar organizado e hierarquizado, mas estar sujeito à hierarquia adequada. O diabo passa a sujeitar sobre si os demônios, mas também os outros seres do maravilhoso, como as fadas, as almas desencarnadas, as bruxas etc. Vai definitivamente morar no inferno que se torna o seu domínio. O seu novo corpo é acompanhado de novos traços de personalidade: a astúcia e a inteligência superiores que apareciam no Novo Testamento retornam.
Gradativamente sua imagem e a de seus seguidores aparecem no exterior das catedrais, como gárgula ou associado a outros animais fantásticos. Representa o mal que deve ficar fora do templo sagrado, espaço
que faz o humano ter uma experiência antecipada do Céu. É assim e com essa função que aparece na Catedral de Notre Dame de Paris, obra iniciada em 1163. Essa astúcia diabólica atende a interesses políticos e religiosos da época, que conseguem, pondo a culpa no diabo, afastar de si qualquer responsabilidade pelas más decisões. Explica também doenças e calamidades, como a peste negra. Contudo, aparece associada a pessoas e outros seres, reais ou imaginários, como gatos, mulheres, duendes ou gigantes, sobre os quais o diabo exerceria a sua influência. Ainda que fortalecido pela discussão erudita, essa concepção do diabo não faz desaparecer a outra imagem, a do bufo rústico. Os dois convivem e chegam ao Brasil, espalhando-se e misturando-se às místicas locais.
Com o passar do tempo, outras imagens do diabo se tornaram comuns. Essas diferentes imagens coexistem nem sempre de modo solidário. Assim, encontramos, entre outras, um Satã grosseiro e rústico, facilmente espantável com vassouras, óleos, águas, sabonetes e outros objetos magicamente bentos por pessoas divinamente autorizadas, como padres ou pastores. Mas encontramos também a um diabo astuto, sutilmente enganador, responsável pelo mal e pelo atraso destas terras tropicais. Há o diabo sedutor, cheio de charme e de uma exótica beleza. Temos também o diabo como a manifestação da maldade humana, um símbolo do mal presente em cada um de nós.
Essas imagens diabólicas alimentam produções artísticas e literárias e traduzem um estar no mundo que, de algum modo, interpreta a si mesmo na figura do maligno. Discute em Satanás suas próprias preocupações e temores, consturindo posicionamentos e realidades diversas. Ao desenhar o diabo, a sociedade desenha-se a si mesma. Como nos diz Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas, que tem como uma de suas preocupações discutir discutir a existência ou não do diabo:
O senhor... Mire e veja: o mais importante e bonito do mundo, é isso: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso me alegra, montão. E, outra coisa: o diabo, é às brutas; mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro – dá gosto! A força dele, quando quer – moço! – me dá o medo pavor! Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho – assim é o milagre.
Referências
ECO, Umberto. (org.) História da feiura. São Paulo; Rio de Janeiro: Record, 2007. MINOIS, G. O Diabo: origem e evolução histórica. Lisboa: Terramar, 2003. NOGUEIRA, C. R. F. O diabo no imaginário cristão. Bauru: Edusc, 2000.