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Arte porque Sim

Sobre as vissicitudes do valor e da procura de arte. Hugo J. Allen 1

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1 Hugo J. Allen é licenciado em Economia pela Universidade de Coimbra, Portugal e pós-graduado em Economia Europeia pela mesma Universidade. Presentemente reside no Sudoeste do Reino Unido onde trabalha como Financial Accountant.

Aroad to Damascus experience. Sempre apreciei o requinte com que os anglo-saxónicos se dedicam a repescar expressões dasentranhasdo cânone bíblico para as integrarna trivialidade das rotinas diárias.Não posso afiançar que tenha sido esteo exactoaforismo que me aflorou à mente na manhã de domingo há quatro ou cinco anos em que dei comigo aos círculos em redor da My Bed da Tracey Emin na Tate Modern em Londres, mas a não ser esteterá sido outro de significado similar. E aos círculos porque ao contrário das limitações que um quadro impõe, não obstante a genialidade do autor e dos prodígios que ali são reproduzidos, uma cama por fazer oferece uma gama de possibilidade de apreensão estética e de perspectivas de exegese que poucas obras de arte arriscam. O meu momento damasceno foi constatar naquele preciso instante o quão ao alcance do mais vulgar dos mortais a criação artística se pode encontrar, no meu caso concreto às quartas-feiras em que trabalho a partir de casa e mantenho em exibição o meu parcocontributo ao culto das musas. Já a minha esposa entender a cama por fazer ao fim da tarde ao chegar cansada após um dia de trabalho é um momento damasceno que ainda está para acontecer.

Tenho para mim que o ser humano é empreendedor por necessidade e preguiçoso por natureza. E por ser preguiçoso, dado a categorizações e nomenclaturas. E fronteiras. Confesso que nunca me revi muito como apologista de fronteiras e tenho uma certa dificuldade em enumerar alguns préstimos que estas tenham acrescido à marcha da civilização humana. Mas também não é de espantar que o universo artístico, caótico, desconexo, babélico as atraia como o mel às moscas. E às categorizações. E às nomenclaturas. Talvez o urinol, perdão, fountain, que Duchamp levou para o Grand Central Palace em Nova Iorque a fazer de obra de arte visasse precisamente essas convenções. Talvez também as variações em preto de Rothko. Embora por maior que se revelea tentação, o simples acto de desenhar a linha de demarcação não surge isento de riscos. Na Alemanha dos anos trinta tentou-se um enfoque maniqueísta que escudava a candura da boa arte (racialmente pura, de bom sangue e promotora de valores que se recomendavam muito, com a obediência cega à cabeça) da Entartete Kunst(arte degenerada), a outra, a menos pura, tendo o exercício de pedagogia sido levado ao ponto de se organizar uma exposição itinerante de exemplares desta última não fosse a ignorânciadas massas revelar-se incapaz de destrinçar o trigo do joio.Se bem que no que toca a aprender as massas são obstinadas,oque por vezes é positivo.Não que esses alemães de má memória tenham sido os primeiros a dedicar-se ao encargo de querer arquitectar uma matriz simplificadora que permitisse domesticar a selva da criação artística. E certamente não terão sido eles a fechar a porta. Pelo correr da história ficaram espalhados fragmentos de abordagens de todas as cores e feitios – estéticas, formais, históricas, institucionais, hermenêuticas. Foi nesse caldeirão que também no final do século XIX Tolstoy quis ir meter a sua colher. Para Tolstoy arte discernir-se-ia comoalgocom o potencial de estabelecer uma ponte civilizacional entre culturas e gerações, uma senda para a imortalidade.Mas mais interessante que isso,seria por inerência de natureza viral – a aptidão do produtor artístico para infectar o receptor. Não me atrevo a negar este efeito contaminador,apenas não creio que se esgote aqui.

Se existiram alguns proveitos em ter estudado teoria económica durante vários anos às custas do contribuinte português, o pendor para formatar a realidade em termos de mercados e de curvas de oferta e procura é um deles. A preguiça é genética e mais epidémica doque a arte. Mas sentado no meu jardim a escutar distraído as dicas do meu bom amigo Jerry sobre como fazer do meu relvado a inveja dos vizinhos não me consigo abstrair do Zimbabuéda infância dele onde há uma década os seus compatriotas passaram pela peculiaridade de se encontrarem ao mesmo tempo pobres e milionários. Milionários porque por lá circulavam em abundância as notas de cem triliões de dólares (que não valiam o papel em que eram impressas) e pobres porque alguns erros são demasiado tentadores para cessarem de ser cometidos. O fenómeno passou, hoje tornaram à certeza de se verem apenas pobres. Na mesma linha certifico- -me se ainda estarão disponíveis no eBay carteiras, malas e porta-moedas feitos de bolívares venezuelanos – e estão.Uma das verdades que se apreendem depressa num curso de economia é que o valor do papel-moeda é pouco elástico à qualidade do artista que o desenhaou à maior ou menor habilidade de infectar

o seu utilizador. Oferta e procura que é a explicação de quase tudo o que existe debaixo do sol.

A minha procura de libras esterlinas é determinada por factores distintos da minha procura por Miche- langelos ou Banksys, mas o fenómeno não é de todo independente.O Louvre é possuidorduma tela dos idos do século XVI que se supõe retratar uma tal Lisa Gherardini, tela que embora sem ser de todo em todo obscura entre o meio artístico,nunca, até ao início do século XX, logrou captivar simpatias de monta entre o grande público. Em 1911 quis, porém, a Providên- cia que a dita tela tivesse a bem-aventurança de ver furtada e envolvida num enredo rocambolesco ali- mentado pelos jornais da época.Depois disso foi uma questão de tempo até que as epifanias redescobris- sem um sorriso que ao consta sempre lá esteve.Leio também no website do National Museum Cardiff que se encontra agoraem exibição um Botticelli na Gale- ria 2. Encontra agora porque nos setenta anos ante- riores à semana passada esteve confinado ao repou- so no armazém e rotulado como pobre imitação do reverenciado mestre. Julgo não me equivocar muito se afirmar que o estatuto deste quadro incrementou exponencialmente da noite para o dia ao ser ben- zido como genuíno Botticelli. Isto sem que tenham mudado a tela, os traços, as cores, os pigmentos, a Madonna ou o menino. Talvez a moldura. O que mu- dou, sim, e invariavelmente, foi a procura associada a esta obra. Uma infecção de procura. Regressando ao velho Tolstoy, soa-me mais que o vírus artístico se tenda a propagar com maior intensidade lateralmente do que da obra ou do artista para o receptor.

São multíplices as determinantes da procura de maté- ria-prima artística. Uma manhã às voltas numa galeria de arte, sobretudo numa das mais conceituadas, é um encontro com espécimes de todas as castas – a do que pretende absorver-se na metafísica da obra, do que faz por se cultivar, do que colecciona nomes de artistas so- nantes, do que diz que vai a galerias, do que tira selfies – este último detentor duma abordagem ímpar que é a de apreciar a obra de costas voltadas. É neste caldo de motivações, de estímulos, de propósitos, de impulsos contraditórios e irreconciliáveis que fervilha a procu- rapor aquilo que alguém de quem a história não apon- tou o nome convencionou chamar arte. Mas então é isso? É arte porque sim? Talvez. E porque não?

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