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Violência e Poder: A Lição dos Antigos Persas

O uso da violência como propaganda política é invenção antiga. Egípcios, assírios e babilônicos orgulhavam- -se de ostentar o rastro de destruição deixado por seus exércitos. Os persas, em contrapartida, criaram um conceito inovador de poder. Ao invés da força bruta, sua arte e seu cerimonial colocavam ênfase na ideia de harmonia e de respeito recíproco entre vencidos e vencedores. Não por acaso, a hegemonia que exerceram sobre o mundo antigo se traduziu na admirável experi ência de um império multiétnico. Plinio Freire Gomes 1

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Duas denominações confundem muitas pessoas – Irã e Pérsia. A primeira invoca religiosos carrancudos, mulheres sob véus, guerras do petróleo e multidões raivosas queimando bandeiras aos gritos de “morte a... (sabe-se lá o quê)”. Já a segunda veicula ideias de natureza distinta: tendas, tapetes, bazares, jardins, pavilhões, antigas realezas e relevos com figuras enfileiradas. O fato é que Irã e Pérsia designam a mesma nação. Estamos falando de um povo hoje associado a complicados impasses geopolíticos e que carrega consigo o patrimônio de ao menos vinte e cinco séculos de civilização.

Por volta de 559 a.C., um líder tribal chamado Ciro (ou Kurosh, na sua língua nativa) prevaleceu sobre as demais tribos da região e iniciou um ciclo de conquistas destinado a redesenhar o mapa do mundo. Sua primeira meta foi subjugar o reino da Lídia, na Turquia atual, tomando em possesso o legendário tesouro de Creso. Abarcou também a Fenícia, a Judeia e a Mesopotâmia, criando uma enorme entidade política que se estendia desde as cidades gregas do mar Egeu às margens do rio Indo – o maior império já visto até então.

Esta nova potência era herdeira de outras que a precederam, o Egito, a Assíria, a Babilônia. Dos impérios de outrora, a Pérsia importara a escrita, a estrutura burocrática, o gosto pela monumentalidade. O próprio cerimonial de corte seguia convenções perfeitamente consolidadas, como o gesto de colocar a mão diante da boca na presença do imperador. Ainda assim, tudo leva a crer que Ciro aspirava governar de forma inovadora.

Antes de sua entrada em cena, os monarcas costumavam celebrar as próprias glórias militares com a máxima crueza. Era um mundo, aquele, governado por terríveis deuses guerreiros; e seus protegidos na terra, os reis, tinham o direito (melhor, o dever) de aniquilar os próprios inimigos. Por volta de 690 a.C., um bloco de argila com seis lados foi grafado em cuneiforme com as seguintes palavras:

“Senaqueribe, grande rei, rei da Assíria, rei dos quatro cantos do mundo, pastor prudente, favorito dos grandes deuses [...] fogo que consome aqueles que não se submetem, raio que fulmina os perversos. O deus Assur [...] tornou minhas armas poderosas, submeteu todos os reis a meus pés; e reis potentes temem minha guerra.”

O documento, conhecido como “Prisma de Senaqueribe”, prossegue descrevendo o castigo infringido às cidades que ousaram resistir ao rei dos assírios: “eu as assediei, eu as conquistei, eu me apossei de seus despojos”. O caso mais famoso é o de Lakhish, importante centro urbano do Reino de Judá cuja destruição foi registrada numa série de relevos esculpidos no palácio de Nínive. Não é difícil imaginar que o artista tenha participado em primeira pessoa do massacre. Porque as cenas, hoje expostas no British Museum, são surpreendentemente detalhadas e violentas. Em determinado ponto, reconhecemos três prisioneiros nus sofrendo empalamento; em outro, testemunhamos uma degola no exato instante em que a lâmina rompe os ligamentos do pescoço e a cabeça da vítima pende horrendamente para lado. Enquanto isso, a população civil era submetida ao degredo, como sugere a imagem de um grupo familiar, a mais comovente do conjunto: o pai se afasta carregando os pertences nas costas; os filhos, aterrorizados, tentam se agarrar como podem às pernas daquele homem para não se perderem na multidão.

Não era diversa a fórmula adotada entre os egípcios para denotar o poder dos faraós. A imagem mais re

presentativa da realeza – o “retrato oficial”, por assim dizer – consistia no agenciamento entre duas figuras: o faraó de pé subjugando um inimigo derrotado de joelhos. O monarca segura com uma mão a vítima pelos cabelos, enquanto a outra ergue um porrete na iminência de desferir o golpe mortal.

Violência ostentada, celebrada, legitimada: eis o que Ciro deixou para trás.

Cento e cinquenta anos se passaram desde o “Prisma de Senaqueribe” e outro objeto de argila, desta vez de forma cilíndrica, também foi coberto de caracteres cuneiformes. O texto, escrito em nome de Ciro, se dirigia aos habitantes da Babilônia que ele acabara de conquistar. O preâmbulo é bastante familiar: “Eu sou Ciro, grande rei, rei legítimo, rei da Babilônia, rei da Suméria e da Acádia, rei dos quatro cantos do mundo”. Na sequência, porém, lemos algo completamente inesperado:

“Meu grande exército marchou em paz [...] Não permiti que pessoas maléficas atemorizassem parte alguma da Suméria e da Acádia. Almejei o bem-estar da cidade e de todos seus centros de culto. Aos cidadãos da Babilônia, ao invés de impor um jugo não apropriado aos olhos de Deus, dei alívio a seu cansaço, fiz soltar suas correntes.”

O que estas linhas consagram não são garantias aos vencedores, e sim aos vencidos. Quais garantias? Seria anacrônico pensar que o “Cilindro de Ciro”, como ficou conhecido, representasse uma espécie de carta magna, de constituição. Todavia, ao invés da violência, o documento reiterava o primado da paz; e com ela a do bem-estar geral dos súditos, sua integridade física, suas posses, sua religião.

Tal como as orgulhosas declarações de Senaqueribe, isto também era propaganda. Mas uma propaganda visionária, que predicava outra ordem de valores. Quem sabe as coisas teriam ocorrido de forma distinta caso os babilônicos oferecessem resistência e os persas os derrotassem pelas armas. A realidade, porém, é que a doutrina de Ciro prevaleceu. O destino da Babilônia não foi a ruína e sim a elevação ao status de capital de um poder emergente. Beneficiados também foram os hebreus, que os babilônicos haviam submetido à escravidão. Além do direito de retornar à pátria, eles contaram com o financiamento para a reconstrução de seu templo, em Jerusalém. São informações que nos chegam não através da propaganda oficial, e sim de uma fonte alternativa – a Bíblia.

Óbvio que nosso homem era ambicioso e determinado: ninguém passa de chefe errante a conquistador do mundo sem personificar tais características no mais alto grau. Ocorre que Ciro era guiado por um originalíssimo projeto político. Ao conceder direitos aos vencidos, fossem babilônios, hebreus ou gregos, ele almejava ampliar sua rede de aliados, sua esfera de influência. A ideia era transformar um quebra-cabeça de reinos beligerantes num organismo multiétnico coerente e pacificado. Neste arranjo imperial, os interesses do trono persa vêm em primeiro lugar. Mas supõe-se que, cedo ou tarde, eles se traduzirão em benefícios onde quer que recaia sua autoridade.

A utopia de um poder sem violência não se extingue com Ciro. Durante os próximos dois séculos, ela restará como a mais consistente marca daquela antiga civilização. Eis o que nos evidencia o complexo de Persépolis. Erguida por Dario e Xerxes sobre uma plataforma artificial, a obra se destinava a uma fascinante celebração política. Todos os anos, na época do nowruz (o ano novo iraniano), o imperador, seus ministros e sua guarda pretoriana se dispunham a receber tributos trazidos dos mais diversos povos que compunham o império. Eram ao todo 28, espalhados em três continentes (Ásia, África, Europa).

Não devemos subestimar a importância simbólica e prática da cerimônia. Ao convocar emissários para o mesmo lugar (Persépolis), e na mesma data (o nowruz), o imperador restaurava o vínculo com os próprios súditos. Vínculo que acionava uma complicada operação de transporte por centenas, às vezes milhares de quilômetros. Era como se, ano após ano, o império se transformasse numa gigantesca engrenagem em movimento.

Os persas, já vimos, não se orgulhavam de exibir a própria força. A velha prática de saquear e destruir foi substituída pelo esforço de criar um território comum de intercâmbio e de interlocução – de trocas. Evidentemente, este princípio foi violado muitas vezes. Ainda assim, é significativo que os relevos de Persépolis nos apresentem uma multidão de raças distintas; e que entre elas não se veja sequer uma cena de arbítrio ou de violência. Talvez exista aqui, na história desta nação (persa ou iraniana que seja), uma lição que o mundo atual não deveria ignorar.

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