“Ninguém”
ACTO I Cena I – Madalena, só, sentada num canto da sua cama, com um livro entre as pernas, deixa descair a cabeça como que de pesada.
Madalena (lendo e relendo uma única passagem) – “Naquele ingano d’alma ledo e cego, que a fortuna não deixa durar muito…” – Nunca saberei. Nunca saberei dele. Jamais saberei de mim. Ser uma mera existência em sombra que não conheceu quem a torna escura. O penoso desdobrar do pensamento em mim de possíveis eus que agora já não poderão perecer. Mas que poderia eu ter feito… Que vida esta que me deixaram ver perder. E eu que fui? Que fui eu? Uma espera apenas… (torna a descair em profunda meditação)
Cena II – Madalena, Telmo Pais Telmo (aproximando-se de Madalena sem que esta se aperceba) – Porque se fecha aqui, sozinha? Madalena: A solidão não se ausenta se do outro lado da porta estiver. Telmo: Não diga tal, que pareço não lhe valer. Madalena: Desculpa Telmo, é que tenho pensado… Telmo: Pensa demais, senhora. Madalena: Não consigo evitar. Telmo: O que a atormenta com vida tão calma? Madalena: É essa mesma calmaria. Esse nada acontecer que desde que os olhos deixaram de tocar em D. João me não larga. Telmo: Foram sete longos anos de meticulosa e desgastada procura…
Madalena: Foram vinte e um anos que meticulosa e desgastada procura… Telmo: Tontinha! Madalena: Assim que se esqueceram dele, esqueceram-se de mim também. Eu que me vagueio nesta casa há tempo demais… Telmo: As suas dores são as minhas, senhora. Porquê contestar o fado se ele assim se fez? Nunca lhe faltou nada… Madalena: Faltou-me a falta. Telmo: Acompanhe-me num passeio pelo jardim. Madalena: Prefiro ficar. Telmo: Se aguentámos os longos tempos com todas as suas infelicidades, iremos ver este dia passar também. Madalena: Como nunca em nenhum dia nos cansámos de ver os dias somente passar? Telmo: Senhora... Ousados muito nós fomos e assim teremos que o ser. Madalena: Estou cansada Telmo. Nada do que vejo em mim alguma vez imaginei pertencer-me… Se é que ainda algo vejo. Telmo: Todos falam de si como uma lutadora. Madalena: Eles não sabem. Tu não sabes. Nenhuma batalha foi minha, nenhuma ousou ver-me lutar. Telmo: Sei sim, senhora. Desde a grande desgraça que aqui fiquei para nunca mais me ausentar. Madalena: Fiel Telmo, mas e que fomos nós? Nos jardins, as flores crescem apressadas pela nossa ânsia de as ver coloridas e simples. O sol é infeliz ironia. No palácio as vozes são de curta fala e nem um compasso de melodia estes corredores esperam ouvir. Até D. Sebastião se parece esbater nos óleos… A minha tão desejada criança nunca este ventre sentiu! Essa mesma de que te falo. Pressinto que teria sido uma menina. Chamar-se-ia Maria… Achavas um bonito nome? Telmo: Era sim, senhora. Madalena: De certo seria uma menina inteligente… Iam gostar um do outro, meu Telmo. Tê-la-ias ensinado a ler e escrever.
Telmo: (interrompendo) Assim se quis que acontecesse. Não pensemos mais no que teria sido. D. João não lhe deixou essa criança, assim Deus quis que fosse. Madalena: Por tudo o que me faltou, não deixarei que me falte o lamento. Telmo: Que inquieta a encontro hoje. O dito já da sua voz ecoou. Por agora continuemos o dia, que chegará ao fim e será o último dia dos primeiros que se fala em tal. Madalena: O último.
Cena III – Madalena, só, à varanda. Madalena: (Observa com bastante atenção todos os pormenores do jardim, esboça um ligeiro sorriso sincero) – Não me teria enfadado contigo nunca, filha; e nunca me afligirias, querida. O que teria era o cuidado que me davas, era o receio de que… (Breve pausa) Tinhas, filha… se Deus tivesse querido, haverias de ter; e haverias de viver muitos anos para a consolação e amparo de teus pais que tanto te queriam. (Pausa, apoderando-se de si um pensamento inoportuno) Que dizes filha? Que desvarios! Uma menina do teu juízo, temente a Deus… não te quero ouvir falar assim. Ora vamos: anda cá, Maria, conta-me do teu jardim, das tuas flores. Que flores tens tu agora? O que são estas? (contemplando algumas papoulas próximas à varanda, sorrindo desfaz uma longa reflexão interior, depois apressa-se a falar) Deus pôs-nos neste mundo para velar e trabalhar, com o pensamento sempre nele, sim, mas sem nos estranharmos a estas cousas da vida que nos cercam, a estas necessidades que nos impõe o estado, a condição em que nascemos! (desfaz o tom glorioso, tornando-se novamente frágil ) Mas tu, minha Maria… (abraça-se a si e chora) Oh, filha, filha! Porque não foi vontade de Deus, tinha de ser doutro modo…
ACTO II Cena I – Madalena, Jorge Jorge: Ora seja Deus nesta casa! (Madalena beija-lhe o escapulário.) Madalena: Bem-vindo, meu irmão. Jorge: Telmo falou me de vossa inquietação. Madalena: Também vai tentar calar esta voz aflita com que hoje falo? Jorge: Não senhora, de modo algum, mas perceberá que isso nada bem lhe faz.. Madalena: Vejo… Jorge: Recorda-se de Manuel de Sousa Coutinho? Madalena: (despertando a sua atenção) - Vagamente. Jorge: Ao serviço de Filipe II, tornou-se agora fidalgo escudeiro. Madalena: Que bem… Jorge: Não lhe parece interessar, desculpe se lhe falo de cousas sem sentido. É que me veio aos pensamentos… mas talvez tenha agora mais em que pensar senhora. Então como tem passado? Madalena: Não, fale-me desse fidalgo. Jorge: Pouco sei. Por estes dias creio que tenha visitado Lisboa. Madalena: Sim? Até quando? Jorge: Não sei senhora, creio que me falaram na sua estada de uma semana. Madalena: Como está ele? Jorge: Casou há pouco tempo. Estranhei não ter ido... Madalena: Aqui em casa não fomos convidados…
Jorge: Talvez algum engano, lá perguntaram por D. Madalena. Madalena: Quem? Jorge: (pensa ligeiramente) Não me ocorre quem… Madalena: Quem? Jorge: Manuel de Sousa Coutinho perguntou, recordo-me bem… Oh Senhora, perdeu uma bela festa! Madalena: Vejo que sim… mas as festas são para quem tem que festejar. Jorge: Oh! Tontinha! As festas são para toda a gente! Madalena: Jorge, estou um pouco cansada. Creio que me irei retirar para um descanso. (Sai apressada)
Cena II – Madalena, caminha pelo corredor, dá passos acelerados para se acercar da porta, fecha-a com violência tal que cai e desata em choro.
Madalena: (Chorando, fala só e em tom baixo, como que sussurrando) – Não, meu Manuel não! (breve pausa) Pára! Não…Deixa esse homem... (longa pausa) Eu que sempre fui fiel a D. João de Portugal, porquê a infelicidade de te ter avistado? Que Deus sabe o que penso… E como quis eu casar contigo! Mas o medo de ele estar vivo era maior… Terias sido um adorado esposo, és um adorado esposo… Mas que infelicidade a de não ser eu a adorar-te. Se agora soubesse, depois de todo o tempo que passou, nunca te teria perdido no olhar. Esse que recordo tão bem em todas as noites… Se agora soubesse… Poderia ter tido um marido comigo, talvez até uma filha! Oh! Dor de alma, que me fazes beijar o pecado com tão pouco medo a Deus sentir. O pecado esteve-me no coração... Mas foi apenas imagem. E agora que sei do tempo que passou… Arrependo-me de não estar contigo, meu Manuel.
Cena III – Frei Jorge, D. Madalena, Miranda, Frei Jorge chama D. Madalena à porta do quarto.
Frei Jorge: D. Madalena! Telmo Pais diz não gostar de a ver tanto tempo sozinha no seu quarto. Saia, venha dar um passeio connosco. Este dia é difícil para todos nós… Madalena: (abre a porta lentamente, espreita) Entre, irmão. Frei Jorge: Se assim deseja! Madalena: (cai sobre os braços de Frei Jorge a chorar) Que este dia não chega ao fim... Frei Jorge: D. Madalena! Não chore senhora! Já todos sabemos que dia nos é este… Madalena: Dia em que casei com D. João de Portugal… Dia em que se perdeu D. Sebastião… mas dia em que… vi pela primeira vez Manuel de Sousa Coutinho. Frei Jorge: Pois conta entre essas as infelicidades da vossa vida? Madalena: Conto sim. Frei Jorge: (sussurrando) Ouvi o que falou quando estava no quarto a chorar… Madalena: Meu Frei Jorge, que posso eu fazer com esta vida tão pouco minha… Que nem marido, nem filha! Somente uma viúva infeliz aqui, nesta casa, há vinte e um anos. Que nunca me regressou o marido, esse que lhe vejo a cara todos os dias no retrato tentando pensar que cá está, sei-lhe agora, mais do que antes, todos os traços da face e todas as suas feições. Se passeava pela cidade qualquer homem se parecia assemelhar a ele, os sustos eram tais que preferi por casa ir ficando. E depois o meu Manuel, essa paixão como nenhuma, e os pensamentos que tive… Que nosso Senhor me perdoe… Frei Jorge: Porque não procurou Manuel de Sousa Coutinho? Madalena: Por medo. D. João deixou tais palavras, palavras que me amarravam. Meras palavras que ouvia cada vez que em Manuel ou em Maria pensava. – “Vivo ou morto, Madalena, hei de ver-vos pelo menos ainda uma vez neste mundo”- Morto não voltou e vivo também não…
Miranda: (interrompendo com palavras ofegantes): Senhores… meus senhores! Frei Jorge: Que aconteceu, Miranda? Miranda: É um pobre velho peregrino, um destes romeiros que aqui estão sempre a passar, que vem das bandas de Espanha… Madalena: Um cativo…um remido? Miranda: Não, senhora, não traz cruz, nem é; é um romeiro, algum destes que vão para Sant’Iago. É que ele diz que vem da Terra-Santa, e … Madalena: E porque não virá? Ide, ide, e fazei-o acomodar já. Miranda: Diz ele que vos traz um recado. Madalena: A mim?! Miranda: A vós, e será escusado ir Frei Jorge; diz que a outrem não dará senão a vós, e que muito vos importa sabê-lo. Madalena: Frei Jorge acompanhe-me, traga-me o romeiro, traga Miranda.
Cena IV – Madalena, Jorge e Romeiro Jorge: D. Madalena se prepara…Sois português? Romeiro: Como os melhores, espero em Deus. Jorge: Visitaste todos os Santos-Lugares? Romeiro: Morei neles. Jorge: Visitará agora sua família? Romeiro: Sim, visitarei… Depois de tão longo tempo só quero ser o tudo que antes era. O quanto me custou cá chegar… Só me ocorriam os dias calmos da memória, das simples papoulas que de tão pequenas não as via e deste cheiro a Lisboa. A minha mulher, pensava muito no cheiro da minha mulher. Jorge: De onde são? Romeiro: Daqui… Jorge: Esperam-no?
(entra D. Madalena) Romeiro: Sim. Esperam-me há tempo demais. (Observa D. Madalena atentamente.) Madalena… (aparte, recupera o folgo perdido) Hoje vinte anos cumpridos! Madalena: Vinte anos… É um longo tempo. Romeiro: (volta a olhar com um ligeiro sorriso D. Madalena) É sim… Madalena: Qual a mensagem que nos trazia? Romeiro: Antes gostava de a conhecer, fale-me um pouco de si. Madalena: Eu sou vinte anos de espera. Metade de procura. Ainda agora não sossego. É este permanente estado louco de procura em que me encontro. Romeiro: Como o imagina agora? Madalena: Não imagino… Romeiro: Nunca irá encontrar. Madalena: Porque diz isso, bom romeiro? Romeiro: Porque em mais nenhum lugar lhe resta procurar, não é verdade? Madalena: Verdade sim… Jorge: Quando visitará a sua família? Romeiro: Não tenho família. Jorge: Mas, que é da família de Lisboa, das papoulas, da mulher? Romeiro: Nada disso existe, era somente bonito no meu pensamento. Jorge: Quem és tu? Romeiro: Ninguém.
– Resposta criativa à obra Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett por Laura Carreira, turma N, n.º 10 2010.2011