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As vozes de alguns de seus militantes

Capítulo II

AS ORIGENS DA VPR, POR ALGUNS DE SEUS MILITANTES

Neste capítulo vamos mostrar as versões que alguns dos militantes iniciais da VPR registraram sobre sua organização em seus livros biográficos e autobiográficos. Não é intenção aqui discutir os problemas historiográficos relativos à memória. Em seguida, buscaremos traçar um quadro mais amplo de uma linha cronológica que nos ajude a entender a história dessa organização, e algumas das questões que permearão a análise.

As vozes de alguns de seus militantes

“Quando se é revolucionário deve-se esconder tudo que o faça parecer um fraco”1

As formas como as organizações aparecem na memória daqueles militantes que desejaram e alcançaram registrar suas lembranças produzem visões sobre o grupo, trazem alguns elementos e deixam de lado outros. Enfatizamos aqui textos produzidos posteriormente, não aqueles inseridos no calor dos acontecimentos. Desta forma, pretendemos visualizar minimamente a forma como a memória se cristaliza. João Roberto Laque produziu a biografia de Pedro Lobo, um longo livro em que traz muitas histórias, com muitos detalhes, sobre vários momentos da VPR. Em 2010 ele produziu o livro em que narra a história de Lobo. Relata sua participação na fundação da VPR:

Disposto a ir pro pau de qualquer jeito, depois de decidir seu rompimento com a proposta pacifista do Partidão, Pedro Lobo trata de ir arregimentando gente disposta a um enfrentamento físico e imediato com o regime. - Começamos a discutir com todos os companheiros que, como eu, tinham sido exonerados das Forças Armadas ou das policias militares estaduais. O objetivo era já a criação de uma nova organização de

1 VIEIRA, Liszt. A busca: memórias da resistência. São Paulo, Hucitec, 2008, p. 46.

resistência armada. Mas, naquele momento, não se pensava em uma guerrilha rural, e sim, urbana.2

Portanto, há um forte viés militar e nacionalista nesse grupo que inicia a organização de uma vanguarda para a revolução. Ele data do dia 15/7/1967 uma reunião ocorrida na casa de Dulce Maria:

Ali estão seu compadre, o ex-sargento do Exército, Onofre Pinto, o sargento do Exército, José Araújo da Nóbrega, vários ex-marinheiros punidos em abril de 64. Foi nessa reunião que nós anunciamos o rompimento com Leonel Brizola e decidimos fundar nosso próprio movimento.3

A ruptura com Brizola teria se dado pela falta de apoio ao movimento que tentara organizar uma guerrilha em Caparaó. Sabemos que já em 1965 houvera uma tentativa de levante contra o governo militar e os seus protagonistas se sentiram também abandonados por Brizola, no que se constituiu a chamada Operação Três Passos4. Apesar de ter sido o grande líder do movimento da Legalidade em 1961 e de haver organizado os Grupos dos Onze nos anos que sucederam ao golpe e pregavam a resistência armada, a opção de Brizola na resistência após o Golpe ainda requer mais estudos. A relação da VPR com Brizola e seu legado histórico nunca foi rompida por completo ou abandonada. Inclusive alguns membros da VPR na clandestinidade foram ao seu encontro dentro de um suposto esquema de retorno de luta armada no Brasil. Naquele 1967 a organização requeria um trabalho de dedicação e investimentos, ainda segundo Pedro Lobo:

Provisoriamente, o grupo se chamará Organização. E, mesmo sem qualquer apoio financeiro externo, a trupe revolucionária se estrutura rapidamente. - Conforme o pessoal foi engrossando as nossas fileiras, passamos a montar os aparelhos. O dinheiro se conseguia com os que estavam

2 LAQUE, João Roberto. Pedro e os lobos. Os anos de chumbo na trajetória de um guerrilheiro urbano. São Paulo, AVA, 2013, P. 141. 3 Idem. 4 RIPPEL, Leomar. Operação Três Passos (1965): movimento de insurreição e resistência contra a ditadura militar brasileira. 2020. Tese (Doutorado em História) - Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Marechal Cândido Rondon, 2020.

na legalidade e ainda trabalhavam normalmente. Só algumas armas –incluindo os fuzis M-2 – vieram diretamente de Cuba.5

Além disso, relata que conseguiram uma área para treinar tiros em Cotia, no interior de São Paulo. Com uma “estrutura rígida e extremamente disciplinada”, a origem militar seria ampliada com a experiência de brizolistas que voltavam de Cuba em seus treinamentos. Os militantes seriam cuidadosamente selecionados para compor o quadro que se buscava. Segundo ele, a estrutura interna

Obedece a um modelo hierarquizado herdado dos partidos comunistas. Na base da pirâmide ficam os simpatizantes, aqueles que concordam com a linha de atuação da sigla, mas não mantem um contato mais estreito com ela. Ali também está o apoio, militante que contribui com algum dinheiro, cede locais para esconderijo, consegue documentos falsos ou cuida de ajudar o transporte de pessoas ou coisas. O meio do triângulo é ocupado por quadros, guerrilheiros que, de arma em punho, se dedicam ao enfrentamento direto com os militares e as polícias políticas estaduais. No topo se instala a direção, pessoas que, por sua formação, qualidades pessoais ou história dentro das esquerdas, se qualificam ao comando.6

O relato de Diógenes Oliveira, realizado em um livro biográfico não difere muito deste de Pedro Lobo. Ele é um dos militantes que procurou Brizola no Uruguai, como ponto de referência para a sequência da luta:

Nós fazíamos parte de um grupo de combate da VPR, o comando ficava em São Paulo. Nós já éramos uma organização, mas não tínhamos nome ainda, e a seguir, nos reunimos e fizemos um manifesto. Essa reunião foi, em primeiro lugar, uma reunião de enterro do MNR, que estava morto, mas ainda era um cadáver insepulto. Com o abandono da luta armada pelo Brizola, havia necessidade de reaglutinar os diversos grupos dispersos no antigo MNR e os grupos operários que existiam ou estavam se criando em São Paulo. Uma das nossas preocupações era não ser vistos como um grupo só de militares, ex-sargentos e ex-marinheiros. Em determinado momento houve a reunião de fundação; o Onofre Pinto,

5 LAQUE, p. 141. 6 Idem, p. 144.

o José Nóbrega, José Ronaldo Tavares de Lira e Silva (Roberto Gordo), o Pedro Lobo, eu, vários outros companheiros. (...) não fomos dissidência do PC. A VPR não era uma organização comunista, nunca foi. Havia comunistas lá, eu, por exemplo, mas a organização nunca foi comunista. Nós éramos herdeiros do MNR – nosso DNA era o Rio Grande do Sul, a Legalidade, o Brizola, os sargentos e marinheiros –estes tiveram uma importância fundamental.7

Esses elementos elencados por Diógenes não são compartidos por todos da mesma forma. Mas demarcam uma posição importante, a daqueles que se identificavam com Brizola, e esses elementos reapareceriam em outros momentos. Vários dos problemas teóricos que provinham das visões políticas desses distintos sujeitos demarcariam os conflitos internos que vivenciariam mais adiante. Diógenes lembra que antes de ir receber treinamento em Cuba, pelo MNR: “tive uma longa conversa com o Brizola. Recomendações sobre como se comportar, estas coisas. O Brizola era o comandante em chefe da organização e tínhamos um enorme respeito por ele”8. Ele traz dados sobre como foi esse treinamento, “muita ênfase na montanha”, que permitiram que ele se tornasse “um especialista em explosivos”9. Quando voltou do treinamento, foi como pode para o Uruguai encontrar Brizola, mas não foi recebido, era um sinal de como o caudilho trataria a luta depois dos episódios fracassados de Caparaó e Três Passos. Assim, Diógenes voltou com seu companheiro Claudio Souza Ribeiro a São Paulo, e juntos dariam outra forma à luta, embora Claudio fosse se manter, por pouco tempo. Afinal, como se relacionaria um treinamento militar de cunho foquista com um grupo que propunha ação de massas? Como interagir com um forte movimento que fazia a resistência e que tinha como base o movimento estudantil? Como se relacionar com as teses do popular Carlos Marighella, que afinal era ainda identificado com o Partido Comunista? Quem seriam seus líderes? O debate teórico seria acirrado dentro da VPR, como veremos a seguir. Nas memórias registradas por Maria do Carmo Brito, também em um livro biográfico escrito por uma jornalista, encontramos um dos poucos livros de mulheres que lutaram na VPR. Advinda do Colina, Maria do Carmo

7 FUKUDA, Hatsuo. Diógenes, o guerrilheiro. Ousar lutar, ousar vencer! Porto Alegre, Evangraf, 2014, P. 75. 8 Idem, p. 63. 9 Idem, p. 65.

fez parte do grupo que racharia no Congresso formando a “nova VPR”. Na sua lembrança, enquanto a VAR-Palmares “era a favor de uma atividade a ser desenvolvida a mais longo prazo, com infiltrações nos sindicatos e voltada basicamente para a luta nos grandes centros urbanos, onde estava o operariado nacional”, de outro lado, a VPR “queria partir para a luta política urbana e rural, apoiando as reivindicações populares com a luta armada”10, esse era o dilema que teria levado à divisão entre eles. Nesse embate Maria deixaria o Colina e iria para a VPR, onde seria uma de suas dirigentes. No relato que José Espinosa produziu no livro de Marcelo Ridenti, ele busca esclarecer as razões da escolha da VPR. Ali ele partia do pressuposto da necessidade de radicalizar a ação, embora não houvesse clareza:

Aliás, a própria VPR não tinha uma visão clara; uma das razões pelas quais a VPR nos ganhou é que ela também não tinha uma política para o movimento operário, enquanto outras organizações tinham essa política, que nós considerávamos estreita, incapaz de acionar a classe operária – era o caso da AP, do que havia sobrado da POLOP, que viria a dar no POC. Já a VPR estava com a luta armada, com Fidel e a Revolução Cubana. Não tinha uma orientação burocrática de cima para baixo, dizendo como é que era a saída possível para desencadear a luta armada. Poderia ter sido também a ALN, mas considerávamos a VPR mais séria [...] Algumas organizações chegaram a travestir estudantes de operários, todas mandaram três, quatro quadros para fazer ligações. É claro que tínhamos contato com todos elas, que queriam nos ‘ganhar’. No caso da VPR – que ainda não tinha esse nome, recebido só no final de 1968 – a organização mandou dois caras que, diferentemente dos outros, não vieram para nos catequizar. Eles se juntaram aos trabalhadores todos que nós tínhamos, aceitavam aquilo que a gente fazia e se juntavam conosco em cima disso – não vinham apenas buscar quadros, nem impor uma visão.11

Ou seja, a política para as massas era um grande definidor da aproximação de militantes. E buscavam ações de aproximação com a classe

10 VIANNA, Martha. Uma tempestade como a sua memória. A história de Lia, Maria do Carmo Brito. RJ, SP, Record, 2003, P. 54. 11 Espinosa citado por: Ridenti, 2010. p. 183.

trabalhadora, pois o proletariado seria o sujeito da revolução, na acepção clássica do marxismo disponível. Esse dilema seguiria até o final. O relato de José Ibrahim foi produzido sobre as atividades de Osasco, publicado no livro de Antonio Caso, ainda em 1976, que buscava ser um incentivo à luta daqueles que estavam fora do Brasil, especialmente no contexto da Revolução dos Cravos em Portugal. Nesse livro as expectativas mostradas não correspondiam à realidade brasileira, mas o registro faz parte de sua tarefa de militante exilado na Europa. Ele se apresenta como dirigente operário e analisa o contexto das lutas e acúmulo de forças que levaram às greves de Osasco, nas quais ele e Zequinha tiveram papel relevante. Relata que para ele, a negação das políticas do PCB e a criação de estratégias de conselhos de fábrica que através de assembleias decidiam sobre a luta iam, sistematicamente, deslegitimando a diretoria pelega do sindicato. Ibrahim nos mostra um pouco da base inicial da VPR. Ele próprio começou sua formação com o PCB, “lendo alguma coisa de Lenin”. Como trabalhador, diante de uma direção sindical reformista, optou pelo trabalho de fábrica, com um “comitê sindical clandestino”. Pequenas ações, como cinco minutos de paralização na hora do enterro de um companheiro eram seguidas de grandes ações que viriam ser construídas na sequência, gerando inclusive um duplo poder no movimento, suas ações de agitação começavam relacionadas a problemas de higiene, sanitários e congelamento salarial. Um dos recursos que usavam eram as operações tartaruga, quando conscientemente os trabalhadores passavam a “produzir pouco e com má qualidade”.12 O programa, compartido com “os cristãos e uma fração do PCB”, era, em síntese: “organizar comitês sindicais em todas as fábricas, realizar uma campanha massiva de sindicalização, preparar e organizar os trabalhadores para a luta contra o congelamento dos salários, considerar a greve como uma forma de luta, etc”. 13 O mais interessante, na sua análise, é a visualização de que estavam produzindo um “programa de esquerda que a massa aceitou porque ia de [ao] encontro com seus interesses”. Eram questões corporativas mas que transcendiam em algumas medidas e iam abrindo espaço para o trabalho político de mais longo alcance, e isso se passava pelos idos de 1967, quando ele acabaria indo para a presidência do sindicato.

12 CASO, Antonio. (org) A esquerda armada no Brasil. 1967-1971. Lisboa, Moraes, 1976, p. 53. 13 Idem, p. 55.

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