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Imprensa e prisões

Os aspectos básicos que unem a tortura e a Justiça Militar podem ser entendidos da seguinte forma: por meio dos inquéritos, formalizavam-se os processos baseados na primeira, e assim eram obtidas confissões para o Ministério Público oferecer a denúncia e, por último, as provas para a condenação.4

A Justiça Militar dava legitimidade para as práticas de tortura, mas também abria espaço para novas: os inquéritos com base na LSN “sofriam torturas, as confissões eram obtidas, os inquéritos ‘legalizados’ e finalmente as prisões comunicadas à Justiça”, prazos não eram cumpridos, direitos básicos também não, como mostra o estudo dos processos contra Lamarca feitos por Wilma Maciel5. No caso de Lamarca ele foi citado em todos os processos que envolviam a VPR e em nenhum deles teve direito a defesa. Para que tudo isso ocorresse, era importante a conivência da grande imprensa que contribuía com a divulgação das ações repressoras.

Imprensa e prisões

Em 31/1/69 o Correio da Manhã anunciava, na capa, que “Exército prende terroristas” em São Paulo. A matéria diz que o comando do II Exército distribui “notas oficiais”. Segundo o jornal estariam “Explicando diligências que levaram à captura de responsáveis pelos atentados terroristas e assaltos em todo o Estado”. E completa que “a nota do II Exército adianta que elementos já detidos tem ligações com o capitão Carlos Lamarca, que desapareceu levando armas e munições”. E a informação a seguir é de que “Segundo as notas, a captura dos acusados foi possível quando eles foram surpreendidos, num sítio do interior, pintando um caminhão com as cores e insígnias do Exército”. Na sequência, ainda na capa, o jornal passa a reproduzir as notas do Exército, que indica indiscriminadamente os crimes dos terroristas. Portanto, o jornal está servindo de correia de transmissão daquilo que o próprio exército queria divulgar. O jornal passa a divulgar e a esconder tudo aquilo que as “notas oficiais” mandavam. A nota informa que “foram detidos novos elementos e apurado que estavam implicados em assaltos a bancos, em roubo de armas

4 MACIEL, Wilma Antunes. O capitão Lamarca e a VPR. Repressão Antunes Maciel. SP, Alameda, 2006. 5 Idem, p. 39 e 108.

e dinamite e, no assassínio de sentinelas e outras pessoas, conforme confissão minuciosa dos seguintes crimes”:

1) Atentado com bomba no jornal O Estado de São Paulo; 2) Atentado com bomba no Consulado norte-americano; 3) Atentado com bomba no Quartel-General do II Exército e morte de sentinela; 3) Morte de sentinela da Força Pública e roubo de metralhadora; 5) Morte do capitão norte-americano Charles Chandler; 6) Roubo de armas no Hospital Militar; 7) Roubo de armas na Casa Diana; 8) Roubo de dinamite na Pedreira de Cajamar; 11) Assalto ao Banco do Estado, Agência Iguatemi; 13) Assalto a Banco na Av. São Gabriel; 14) Assalto a Banco na av. Rudge; 15) assalto a Banco na Av. Angélica; 16) Assalto ao carro-pagador da firma Massey Fergson; 17) Assalto ao trem pagador da EP Santos-Jundiaí.6

Esses dados são sistematizados com as prisões, mas são divulgados conforme o Exército indica, não por esforço jornalístico. As prisões no sítio aconteceram antes da saída do Quartel, elas aceleraram a saída de Lamarca, como já vimos. A imprensa estava fazendo o trabalho que a repressão queria, pois se sabia das datas, mentiu sobre elas. Falar na prisão não era privilégio dos militantes com menos importância na organização. A própria ideia de tortura já exercia um poder torturante sobre os presos. Encontramos o relatório do II Exército sobre as prisões. Nele, são citados os presos, os objetos apreendidos e informações colhidas. Evidentemente, a forma como as informações foram adquiridas não é noticiada. Não interessa aqui saber quem abriu cada informação, mas visualizar como a repressão montava seu próprio banco de dados:

GILBERTO. Trata-se de José Raimundo da Costa, ex-marinheiro de 1ª Classe. Integrava a VPR uma das Bases do setor de logística. SILVIA. É Marise Farri, estudante de Filosofia. Setor de imprensa. Material recuperado: um carregador FAL, com os respectivos cartuchos.7

O terceiro nome é o de Antônio Expedito Carvalho Pereira, preso em 3/3/1969:

6 Correio da Manhã, 31/1/1969, capa. 7 Atividades subversivas. 2º DI, REI 16, Informação 25/69 (data ilegível). Outros pormenores são indicados como endereços, acondicionamento, etc.

disse que vem defendendo, como advogado, estudantes e operários nesta capital e de Osasco, envolvidos em movimentos de esquerda. Diz-se socialista de esquerda. O cap. CARLOS LAMARCA esteve homiziado em sua residência. Conheceu-o por intermédio de ONOFRE PINTO. Este foi-lhe apresentado por WILSON FAVA. Em seu apartamento reuniam-se Onofre Pinto, Valdir Carlos Sarapu e Ladislas Dowbor, além de LAMARCA.8

A informação diz que no dia 2 Dowbor foi à sua casa para informar que Onofre havia sido preso, “e que todos precisavam fugir”. Expedito e Lamarca o fizeram, no carro de Renata Guerra de Andrade (Cecilia), dirigindo-se para a residência de Firmino Fernandes Pereira, pai de Expedito.

É que Onofre Pinto (Augusto) só indicou aquele endereço após algumas horas de interrogatório, visando ganhar tempo para proporcionar a fuga de seus companheiros. Essa conduta tem sido adotada pela quase totalidade dos elementos da VPR que já foram presos.9

Ou seja, os próprios repressores já conheciam a tática da VPR, o que levaria a serem ainda mais brutais logo que as prisões ocorriam. Eles se irritavam quando os militantes “atrasavam” qualquer informação:

Nazareth Oliveira Pereira, interrogada na madrugada de 3 de mar, também gastou algumas horas para fornecer uma pista que conduzisse ao local onde estava LAMARCA e EXPEDITO. Por fim, forneceu o endereço do sogro (...) quando os elementos do DOPS lá chegaram, o apartamento estava vazio.10

Este era o esquema perfeito, resistir as primeiras horas, confiar que os demais se dariam conta de que haviam caído, ou que alguém conseguiria avisá-los. Assim, “Por volta das 10:00 chegou um indivíduo que se identificou como José Carlos. LAMARCA e JOSÉ CARLOS deixaram tal local dez minutos antes da chegada dos elementos do DOPS”. Expedito, preso, diz que não sabia o paradeiro de Lamarca, mas que o mesmo “ficou

8 Idem. 9 Idem, p. 2. 10 Idem.

visivelmente apreensivo, desesperado mesmo, quando soube da prisão de Onofre Pinto. E como forma de despiste, diz que tinha um ponto com Lamarca às 17h30, no seu escritório. Um militante “declarou que conhece a localização de um sítio na Serra do Mar, onde estão homiziados Yoshitane Fujimori e Monteiro”, contra os quais “está sendo montada uma diligência, visando a captura daqueles dois integrantes da VPR”11. No local foi encontrado ainda

Grande quantidade de material destinado à propaganda do movimento subversivo, destacando-se mimeógrafo, livros de doutrinação comunista e grande quantidade de exemplares do jornal “luta de classes”, que é elaborado pela VPR.12

O documento relata a prisão de Affonso Claudio de Figueiredo, que teria cedido sua casa para os fugitivos Lamarca e Onofre. Diz que ele

Disse que LAMARCA contou-lhe que vai fazer uma revolução no Brasil e que adotou a posição a que denominou de esquerda radical, isto é, a da luta armada como único caminho para a implantação do socialismo no país. Lamarca confidenciou-lhe que sua família estava em segurança, porque a tinha mandado para Cuba via Roma.13

O documento diz ainda que, convidado para participar da organização, o depoente recusou porque “está convencido de que nenhuma revolução de esquerda triunfará no Brasil, devido à intervenção que os Estados Unidos da América do Norte certamente farão para que não se repita na América Latina o caso de Cuba”. Os depoimentos eram espaço de coragem, como estamos vendo, pois Figueiredo afirma que tem posição política, “é de esquerda”. Nesse mesmo documento encontramos o depoimento de Onofre Pinto. Ele fez uma série de declarações, e é uma das únicas falas atribuídas a ele que localizamos. Sempre é possível que os repressores juntassem dados que já possuíam e atribuíssem a autoria a um depoente. Segundo o documento

11 Idem, p.3. 12 Idem. Infelizmente, não localizamos nenhum exemplar deste jornal. 13 Idem.

1. A organização da VPR é flexível. De acordo com esse conceito, o Setor Urbano é reserva do Setor de Logística. Quando o ocorre a perda de um elemento do Setor de Logística, é feito o recomplemento respectivo, com a transferência de um integrante do Setor Urbano. 2. Em face do grande número de perda da VPR ultimamente, particularmente no Setor de Logística, foram criados Grupamentos Táticos de Ação – GTA – com a finalidade de manter a continuidade das ações, aproveitando-se de elementos do Setor Urbano para substituir os do Setor de Logística presos.14

Ademais, ele teria dito os nomes e codinomes dos componentes do GTA: Claudio de Souza Ribeiro (Sílvio), José Araújo da Nóbrega (Zé), Eduardo Leite (Bacuri), Antônio Roberto Espinosa (Hélio), Yoshitame Fujimore, não identificado (Jorge). E teria dito também que havia mais dois GTAs em formação, quase prontos para atuarem. Além de tudo isso, indica que

Presumo que a liderança da VPR venha a ser empolgada daqui para frente, pelo Cap. CARLOS LAMARCA (JOAO). Acredita que Lamarca, até recentemente não tinha tido melhor posição na VPR pela sua falta de vivência com os elementos e problemas da ‘organização’. Agora, no entanto, desfruta da excelente situação, em virtude de ter estreitado os contatos com os integrantes da VPR.15

Segue ainda trazendo outras informações como o interesse em juntar esforços com Marighella e locais onde poderiam fazer as zonas de guerrilhas. Fala ainda de seus encontros com Ricardo Zarattini (do PCBR). O depoimento de Onofre foi encerrado com essa informação:

VPR surgiu com elementos cassados, tendo por isso uma estrutura militarizada. Depois expandiu-se, com o ingresso de civis na organização. São fundadores da VPR ONOFRE PINTO (Sgto cassado do Exército), PEDRO LOBO DE OLIVEIRA (Sgto Cassado da FPESP) e JOSÉ REINALDO TAVARES DE LIRA E SILVA (Sgto Cassado do Exército).16

14 Idem, p. 4. 15 Idem, p. 5. 16 Idem.

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