8 minute read

Críticas do racha da companheira Iara

“os dez preparados para entrar num GTA”, e os demais devem seguir outros caminhos, pois a organização não teria como garantir sua atuação, muito em sintonia com o documento de orientação ao ME que já analisamos. Ficava patente a necessidade de uma vanguarda revolucionária que não poderia ser interrompida pelas massas, e sim servir a elas. O próprio relato de Syrkis corrobora com esse sentido quando enfatiza que muitos de seus companheiros do movimento estudantil “Desbundavam”, deixavam de ser úteis, saiam fora na hora de tomar as armas, embora seguissem sendo apoiadores condicionais. Entretanto, a realidade seria cada vez menos guerra revolucionária, cada vez mais terrorismo de Estado, onde a possibilidade de incitar as massas à ação não teria respaldo na realidade. É uma tese que seria mais tarde posta em prática pelos militantes que buscaram a Guerrilha na Araguaia39. Naquele 1970, Jamil acreditava que haveria fases da revolução e quando a repressão aumentasse, as massas se militarizariam e se tornariam revolucionárias.

Críticas do racha da companheira Iara

Há outro problema adicional. Os apoiadores da tese de Jamil alegam que no Congresso de fusão sua tese não pode ser apresentada. O documento faz uma apurada análise, um estudo aprofundado sobre a realidade brasileira e as formas de luta, mas se alega que houve uma manobra da direção que teria impedido a mesma de ser discutida e apreciada. O documento “Esclarecendo a ‘conferência’ regional de São Paulo” traz uma autocrítica de Claudia (Rita). Trata-se de Iara Lavelberg, em um de seus raros textos encontrados. Ao apresentar a crítica, traz desentendimen tos dos distintos setores da Organização, “essas atitudes não constituem nada de inédito, a história conhece desde o período stalinista”. Ela segue criticando “por rotulá-los de neo-foquistas e anti-leninistas, antes mesmo de se ter discutido a estratégia e os companheiros disseram o que pensavam”. A conferência deveria ter aprofundado “discussão sobre tática”, pois “não se chegou a discutir, ou melhor, comentar, porque na verdade nada foi discutido”:

39 MECHI, Patrícia. Os protagonistas do Araguaia: trajetórias, representações e práticas de camponeses, militantes e militares na Guerrilha. RJ, Arquivo Nacional, 2015.

Os comentários sobre estratégia, um dos companheiros do CLC expôs um resumo de texto seu, em torno do qual se pediu apartes. Isto feito, outro elemento do CLC em atitude de Inquisição que as pessoas se definissem (“visto a organização passava por momento importante em que não poderia haver dúvidas”) sobre três posições, reunidas em documentos (que não foram discutidos nas reuniões) totalmente antagônicos, Teses sobre Tática e o “documento de Jamil” (que nem havia sido lido pelos participantes), o primeiro marxista-leninista e o outro repleto de desvios, [...] companheiros do CLC, a terceira posição seria a que foi retirada na conferência [...] exposta por um dos elementos do CLC num prazo record de três minutos.40

Iara seguia apontando as críticas, que ajudam a entender a ruptura. O texto de Jamil fora criticado a luz de uma suposta interpretação correta de Lenin. São acusações de método contra Lino (Espinosa), e consolidam a ruptura com a VAR-Palmares41. Certamente havia muita coisa envolvida, e Iara falava já muito próxima à posição de Lamarca. Isso não indica que a ruptura com seus ex-parceiros/as tenha sido fácil. O texto conclui alfinetando com Lenin: “o dever de todo revolucionário é fazer a revolução”. O documento inicial dos militantes que “racham”, do dia 8/10/1969 conta com 6 assinaturas: Fernando, Ary, Mota, Maciel, Joana e Claudia. No dia 30/9 já havia sido apresentado outro documento, assinado já por 12 militantes, intitulado “Cerrar fileiras por uma luta revolucionária”. Este é o do cumento que comunica ao Congresso a ruptura: “temos responsabilidades assumidas para com o proletariado brasileiro e sabemos que não podemos cumprir nosso dever revolucionário permanecendo dentro de uma O. na qual temos irreconciliáveis divergências teóricas, políticas, ideológicas”. “Idealismo como teoria, oportunismo como política e stalinismo interno como substituto do centralismo democrático” são as acusações iniciais. O documento de seis páginas especifica cada um desses pontos. Este documento é assinado por Juvenal (Julio), Lira (Justino), Lia (Sara), Daniel (Olimpio), Olga (GB-Tania), Bruno (RGS), Dino e Claudia (SP-Rita). A partir daí teremos uma nova fase da VPR. Registre-se ainda que o debate com a VAR-Palmares seguiu, foi uma estressante questão, a divisão do patrimônio do grupo e os novos

40 Esclarecendo a “conferência” regional de São Paulo. Rita, BNM 41 Repare-se que haveria uma outra ruptura com VAR-Palmares, a Dissidência da VARPalmares, encabeçada por Apolo Heringer Lisboa.

rachas que se somariam àqueles sete companheiros iniciais, mas nos focaremos na VPR. Ainda em 1969 Lamarca produziu o documento “uma autocrítica”. Ali, demonstra uma preocupação com sua formação teórica, e critica seu idealismo, que considera inclusive oportunismo, no contexto da fusão com a VAR-Palmares, em que se recusa a assumir o Comando:

[critica] a falta de capacidade teórica e política, o idealismo, o oportunismo, e o golpismo, peço irrevogavelmente demissão do CRE e o deslocamento para uma base de campo. Deixo bem clara a firme intenção de recusar qualquer cargo de comando. Fugir à responsabilidade é querer desconhecer a realidade. VOLTAR ÀS BASES PARA RENOVAR E FAZER A REVOLUÇÃO.42

As ações tomariam outro caminho. Mas outras fissuras se colocavam. Uma síntese desses problemas aparece no documento “aos companheiros da esquerda revolucionária”, em que são apontados os pontos fracos:

A ausência de uma visão justa que integrasse corretamente os aspectos políticos e militares da prática; a superestimação da ação de vanguarda; a subestimação do trabalho de organização das parcelas mais avançadas das classes revolucionárias; a divisão mecânica campo/cidade; a extrema burocratização da prática; uma visão intelectual da prática.43

O documento, sobre o qual não identificamos autoria, coloca a necessidade de “superar os desvios de 1969” e conjugar forças para a Revolução Socialista no Brasil. Esse era o tema que os moviam. A epígrafe desse capítulo traz um texto deixado por Eduardo Collen Leite, o BacurI. O texto mostra sua preocupação com a forma que a organização estava, apontava problemas de segurança e dava sua interpretação. Apresentava seu desligamento, mas ele não estava abandonando a luta, ele criaria outra organização, a REDE, que seguiria tendo ações com a VPR e pairava como opção pra aqueles que quisessem sair.

42 Uma autocrítica. 14/10/1969, CID. BNMD, 42. 43 Aos companheiros da esquerda revolucionária. BNM, 42.

Partia do pressuposto de que a ditadura estava manipulando muito bem a população através das medidas econômicas. Fazia críticas sobre a falta de estudos que balizassem a ação, e propunha por fim um grupo de P/o (Política Operária?), “com autonomia suficiente para iniciar a desenvolver este trabalho; teria que ser estanque totalmente da O com condições para esta etapa. Seria mais ou menos um grupo autônomo que agiria em nome da O, “mas com autonomia”. Ele visualizava que deveria haver um trabalho de um ou dois anos para aprofundar o método da ação, e só então voltar, pois os efeitos da política econômica colocavam outras condições: “podemos permitir que camadas da população sejam compradas? A partir disso teremos que voltar a lutar nos moldes do partido” 44. Ele seria barbaramente torturado e assassinado para evitar que fosse um dos militantes trocados pelo Embaixador suíço, em dezembro de 1970. A partir desse momento a VPR toma um novo caminho, promove um reajuste da linha teórica. Na lembrança de Celso Lungaretti, ele, no Setor de Inteligência, foi um dos responsáveis por fazer uma leitura do texto de Jamil. O choque entre interpretação e realidade não podem ser apagados, mas eles buscavam uma forma de adaptação. Assim registrou sua lembrança:

O acaso nos forneceu a peça que faltava no quebra-cabeças: li o documento escrito por um militante que voltara da Europa depois de fazer cursos acadêmicos por lá e estava mais ou menos encostado, sem designação. Ninguém dera bola, os massistas por não concordarem com ele e os militaristas por mal compreendê-lo. Era, no entanto, exatamente aquilo de que o Moisés e eu carecíamos, então lancei um documento explicando direito aquela proposta e a defendendo entusiasticamente. Com isto, chamei a atenção para um texto pelo qual quase todos estavam passando batidos (embora eu não tivesse prestígio nem tradição na VPR, pertencia ao segundo escalão da organização, abaixo apenas do Comando Nacional, então não se tratava mais de uma proposta que pudesse ser ignorada como vinha sendo).

44 Razões que determinam meu desligamento da O. São Paulo, 157569. Basílio (Bacuri). BNM42

Esse documento eram as famosas Teses do Jamil. Elas mudariam os destinos da VAR-Palmares e da VPR. 45

Este post recente em seu blog foi criado depois de termos enviado a ele estes documentos que pareciam deslocados na documentação, pois eram uma elaboração importante: “nossas perspectivas revolucionárias”. Nas suas próprias palavras, seu texto é uma tentativa de resumir as ideias presentes no texto do Jamil46. Ademais, Celso reconhece que era bastante jovem ao escrever esse texto, e que não tinha formação ainda que permitisse tal elaboração. O fato é que há um conjunto de textos, de leituras sobre movimento de massas, tática, estratégia e guerra revolucionária. A ruptura de Bacuri, a formação da REDE atrairia esses militantes, inclusive o comando João Lucas Alves, atuante em São Paulo. Tanto Rede como MRT teriam ações mais vanguardistas do que a VPR. Todos tomam o texto de Jamil como referência e defendem, no contexto do racha com a VAR-Palmares, a posição que sairia com a VPR. Os conflitos estariam, nas cidades, na forma de concretizar a política de movimento de massas e estratégia. Propostas do movimento estudantil seriam criticadas e abortadas. O Comado Político de São Paulo teria que se posicionar diante desses embates. Por outro lado, a vigilância contra o “aburguesamento” dos companheiros aumentaria.

45 CURIOSIDADE: UM ARTIGO QUE ESCREVI PARA CIRCULAÇÃO INTERNA NA VPR VOLTA ÀS MINHAS MÃOS MEIO SÉCULO DEPOIS – 3. https://naufrago-da-utopia.blogspot.com/2020/07/curiosidade-um-artigo-que-escrevipara_11.html 46 Em entrevista, Ladislau registrou que “há influência de vários nestes documentos que circularam”. (Entrevista a Carla Silva, 21/7/2020)

This article is from: