5 minute read

Síntese do temperamento nativo

Next Article
ÍNDICE DE LUGARES

ÍNDICE DE LUGARES

A unidade do Brasil é tal que não se cogita de separatismo, mas as diferenças regionais existem e se afirmam sob a forma de qualidades e de defeitos. Meu pai era pernambucano. Minha mãe bem paulista. O pernambucano tem uma forma de inteligência muito rasgada, muito aberta. Numa porção de campos, de temas, pega as coisas num olhar só e estabelece correlações. Flanar, quando a flanação é feita com arte, é um modo de contemplar. E meu pai, inteligente, era um flanador como todo senhor de engenho do tempo dele. A vastidão de temas nos quais ele flanava era enorme. Era um flanador por excelência e que tinha inteligência rasgada, que estava entre a contemplação e a ação neste ponto: subia de bom grado às coisas mais altas, sobretudo jurídicas. De largos horizontes doutrinários, portanto. A doutrina jurídica ele pegava muito bem. Por outro lado, espectador da realidade e divertido. Gostava de se divertir vendo a realidade. Quando a realidade não o divertia, acabrunhava-o. Mas daí a pouco se esquecia daquilo e estava de novo se divertindo e observando o fatinho miúdo. Era entusiasta do fatinho. Minha mãe já era paulista. E o paulista, sem ser o mais inteligente dos brasileiros, tem o senso de organizar a vida. Arquitetura da vida, como se vive, como se estrutura a vida, como se faz o ambiente, como se tocam as coisas. E isto o paulista do café tinha. Hoje em dia não é mais assim. Essas qualidades, em mim, coabitam muito harmonicamente. Noto que tenho inteligência voltada para grande quantidade de temas. Noto que sou observador muito atento, gosto muito da observação. E vejo que tudo isto se conjuga muito bem, sem afirmar que se casam de modo esplêndido, faustosamente. Há uma harmonia38 .

Síntese do temperamento nativo

Meu temperamento eu classificaria nativamente da seguinte maneira: Ao mesmo tempo muito calmo, calmo até a indolência; muito equilibrado, equilibrado até o incrível, até o inconcebível. Muito rijo em uma coisa: naquilo que me convém, deito-me com todo o peso. Mas muito mole também, detestando luta, detestando briga, detestando qualquer coisa assim39 .

38 CSN 28/5/83 39 Conferência 6/8/1954

Mas essa moleza era para movimentos físicos, para jogos, enfim, para tudo o que as crianças fazem. Não era uma moleza de espírito. Quer dizer, se tivesse que sustentar uma briga, ser-me-ia muito desagradável brigar. Eu era muito cordato. Em parte, por ser muito afetivo. Em parte, por achar que briga era uma trabalheira, uma coisa desagradável. Em parte, também porque, do ponto de vista temperamental, não do ponto de vista doutrinário, as questões ditas de honra sempre me picaram muito pouco. Por exemplo, o sujeito dizer de mim que ele é mais inteligente do que eu, deixo dizer. Quem sabe se é? Isto, de si, se eu fosse só assim, produziria para quem trata comigo a impressão de uma pessoa numa posição incompreensível, mas a partir da qual eu seria muito lógico. De outro lado, eu causaria a impressão de insipidez. Isto porque a falta de qualquer reação temperamental nessa displicência em olhar coisas que habitualmente tocam os nervos dos outros, redunda em insipidez, em “sem-gracês”. Tinha bem a ideia de que, por alguns aspectos, por causa de meu temperamento, eu era sem graça. Daí também a minha aversão ao exercício físico, porque supunha uma disposição temperamental que habitualmente eu não tinha. Aversão a tal ponto que, em pequeno, vendo uma pessoa sendo conduzida em cadeira de rodas, tinha inveja – não sabia do futuro que me aguardava... – e dizia: “Quem sabe se poderia me sentar nessa cadeira e pagar uma pessoa para me conduzir, para não ter que me mover?”40 Era, entretanto, um temperamento que, dentro da moleza e de outros defeitos assim, poderia se chamar, para um homem concebido com pecado original e, portanto, com todas as reservas que a palavra comporta, um temperamento fundamentalmente temperante41 . *

Nasci com um temperamento o mais oposto ao que minhas condições exigiam, porque me sentia como um homem que, no berço, nasce no rebordo do lado de fora de uma janela, com o risco de cair e tendo que me agarrar nos ornatos do prédio para não me escarrapachar. De um lado, por causa de uma situação cheia de incertezas que descreverei daqui a pouco. De outro lado, por uma espécie de bipartição dentro da alma, que me lanhava debaixo dos seguintes pontos de vista.

40 CSN 13/10/91 41 Conferência 6/8/1954

Primeiro, um feitio de compreensão extremamente categórico: o que eu via, via, e não era por turrice ou obstinação, mas porque era mesmo! Quer dizer, uma confiança na própria compreensão, que não era megalomania, mas era a própria objetividade: é! E um consequente não querer o que não queria, quer dizer, um desagradar-me do modo mais violento e mais truculento caso acontecesse o que eu não queria. Depois, uma falta completa de coragem para escorar a luta e uma falta completa de resistência temperamental e nervosa para essa luta. Poderíamos até figurar, enchendo a armadura de metal de um guerreiro, um homem de pirão de batata. Um homem com o olhar inteiramente lógico e que quer de modo inteiramente deliberado fazer a guerra, mas que paradoxalmente se sente um pirão de batata que não quer deixar de guerrear, mas não encontra meios para guerrear42 . *

Nisso tudo creio que entrou uma graça da Providência que me veio em quantidade – se é que se pode falar em quantidade em matéria de graça – e em qualidade especial, mas abundante, intensa, rica, e que Nossa Senhora concedia-me com ordem a uma vocação. Essa graça veio para que não parecesse que, obedecendo aos meus impulsos, obedecia ao meu temperamento e seria um homem de maus bofes, que gostava de fazer sofrer os outros. Então, para não parecer isto, Nossa Senhora me deu um temperamento muito cordato e sem explosões de raiva. Não tenho explosões de raiva, tenho julgamentos. Aquilo precisa ser combatido, é um dever combater. Nunca se terá ouvido dizer: “Dr. Plinio hoje amanheceu irritadiço e por isso está brigando com todo o mundo”, porque graças a Deus não sou assim43 .

Eu não era um menino vivaz, lampeiro e que dizia coisas, mas tinha muita vida. E notava que se achava que eu era um menino engraçadinho. Algumas pessoas gostavam de brincar, de gracejar um pouco comigo44 .

42 MNF 16/10/79 43 Jantar EANS 4/5/92 44 CSN 29/10/94

This article is from: