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A formação de um primeiro filtro interior, católico e contra-revolucionário, anti-“heresia branca”
from Meu Itinerário Espiritual - Compilação de relatos autobiográficos de Plinio Corrêa de Oliveira vol 1
by Nestor
A formação de um primeiro filtro interior, católico e contra-revolucionário, anti-“heresia branca”
Na praia de Santos, sentia a contradição daquele aspecto do mar, e do mar em si, com toda a vida hollywoodiana que se ia desenvolvendo. Sentia as afinidades do ambiente dessa praia com o passado, mas percebia que algo no passado também não conduzia à Igreja Católica como Ela era, não conduzia a Nosso Senhor Jesus Cristo nem a Nossa Senhora, mas afastava d’Eles. Via, portanto, nessa bandeira movida a ventilador, que nem tudo era bom odor. Havia uma espécie de pré-maconha puramente psicológica, e não química, que era o romantismo abrindo a alma para esse passado em que apareciam juntos, se quiserem, os heróis da Contra-Reforma misturados, séculos depois, aos românticos como Chopin, e tudo apresentado junto. O que era o passado? Seria uma sereia a mais para cantar o cântico da perdição, ou trazia verdades consigo? No coro angélico do passado cantavam más sereias?444
Nas bombonières, as balas eram francesas; nas papelarias, os caderninhos, as lapiseiras, as borrachas, a caneta-tinteiro, essas coisas de que a criança gosta tanto, eram europeias: ora eram alemãs, ora francesas. Vinha de lá o que podia, como podia, até o momento em que o Brasil declarou guerra à Alemanha e cortou o comércio com ela. Músicas europeias: éramos por todo lado penetrados pela substância europeia, quando simultaneamente começou a soprar o vento hollywoodiano. Nessa contradição, tomando contato com a res francesa, eu me maravilhava, mas de outro lado dizia: “Em todo esse mimo, em toda essa graça falta algo: falta seriedade. Vejo que essa nação descende de cruzados, mas não vejo que cruzados descenderiam dessa nação”. Santa Joana d’Arc, que admiração! Godofredo de Bouillon, nem sei o que dizer. A convocação da I Cruzada por Urbano II, o “Deus o quer”; São Luís IX, a catedral de Notre-Dame, Reims: entusiasmos! Olhava para Versailles, cujas carruagens me tinham entusiasmado tanto; olhava para o Trianon; olhava para o Petit-Trianon, para Fontainebleau, para as florestas! Como tudo ria e sorria de modo encantador! E daí para fora, quantas e quantas coisas eu admirava!
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Mas de mim para comigo pensava: “Isto é o sorriso. Quero ver agora a carranca, quero ver o ataque, quero ver a força”. Houve o heroísmo francês durante a I Guerra Mundial, é verdade. Foi muito grande, mas era o heroísmo de algo que quase arrebentou. E arrebentou por quê? Por imprevidência. Isto porque, na paz, os franceses não gostavam de se preparar para a guerra. Ora, ou o homem na paz gosta de pensar que talvez ele tenha a guerra, ou esse homem não será capaz de vencer a guerra. A indecência, a imoralidade, os lugares de perdição, a corrupção, tudo junto era a França daquele tempo. Então, para mim era preciso selecionar, era preciso tamisar; não era só dizer “não” à influência hollywoodiana, mas era voltar-me, sim, para a influência europeia, mas nela estabelecer uma distinção. Segundo que critério? Como empurrar de lado o que era empurrável? Como conservar o que era conservável, mas desde logo tendo mais empenho em rejeitar o que era rejeitável do que conservar o que era conservável? Uma coisa conservável que eu perdesse, enfim, seria próprio à falibilidade humana; mas, uma coisa censurável que eu aceitasse, envenenaria tudo por inteiro, trincaria a minha fidelidade, a qual eu queria conservar adamantina. Então, qual era o critério? A Santa Igreja Católica Apostólica Romana! Mas como fazer a aplicação desse critério, quando em torno de mim via grande número dos que representavam a Igreja pactuar indolentemente com a influência hollywoodiana que entrava, e olhar, como coisa que não deixava saudades, a influência europeia que recuava para a noite dos tempos? Como podia inspirar-me n’Ela? Era preciso utilizar um critério de fundo de alma: ver a Igreja tal como Ela me aparecia, numa coerência distinta em alguns pontos da atitude dos homens que a representavam. Isso tudo me levava a pesar, a ponderar, a comparar, a admirar, a censurar, a rejeitar; e a cada passo em que vinha uma admiração, ir fazendo uma comparação com a res hollywoodiana, para compreender como aquilo era rejeitável. Era uma espécie de trabalho tripartite, que não era feito intencionalmente assim: “Agora vou pensar nisso”. Mas era feito quando eu estava sozinho, no momento de uma reflexão sobre, digamos, uma concha, um caramujo. Nesse momento podia vir naturalmente à tona essas considerações, que depois eram longa e longamente analisadas por mim. *
Como era frequente com meninos e meninas de meu tempo, minha irmã e eu aprendemos piano. Ela tocava muito bem, e eu datilografava o piano. Mas, se bem que mau executor de piano, eu tinha o senso muito atento, muito esperto da interpretação musical, do significado moral e psicológico da música. As músicas que tocávamos, ou que tocavam ou cantavam algumas pessoas já adultas de minha família, eram de influência europeia. De maneira que todos os compositores europeus do século XIX que compuseram para piano, passaram pelos meus ouvidos. E passaram com insistência, no convívio familiar. De vez em quando, aparecia uma letra de música. E a letra de música, na totalidade ou na quase totalidade dos casos, era francesa. Excetuava-se uma vez ou outra, muito raramente, uma melodia cantada em espanhol. Mas a nota predominante era definidamente francesa. Francesa, espanhola, italiana, inglesa ou alemã, o fato é que era a velha Europa que musicava dentro de meus ouvidos. Era a velha Europa da qual eu conservava na retina, na imaginação e no coração alguns aspectos fugazes do tempo em que, com quatro anos, estive lá. Era, portanto, a velha Europa da qual ouvira falar sempre e sempre, nas conversas caseiras. Era a velha Europa que eu admirava num livro que meu pai trouxe da Alemanha, quando lá estivemos em 1913, “L’Allemagne Moderne”, de um autorzinho francês, e fartamente ilustrado com fotografias da Alemanha do tempo do Kaiser. Eu não olhava as fotografias da vida econômica e capitalista da Alemanha. Isto não me interessava. Mas nesse livro havia fotografias e panoramas da Alemanha artística – que maravilha! –, da Alemanha de corte – que esplendores! –, da Alemanha militar. Folheava aquele livro longamente, embevecidamente, dez vezes, vinte vezes. Mas aí as coisas já começavam a balançar. As fotografias da indústria alemã davam-me aquilo de metálico, de mecânico, de material, de inanimado no sentido próprio da palavra, ou seja, sem alma, e que é próprio a todo ambiente industrial, ainda mais em nossos dias e talvez principalmente em nossos dias. Eu analisava as cenas da corte, analisava o Kaiser. Lembro-me, por exemplo, de uma fotografia muito bonita do Kaiser e da Kaiserin recebendo as homenagens de seus pajens, numa sala esplendidamente iluminada445 . O Kaiser estava em pé, fardado, com a mão sobre uma espada. Ao lado dele a Kaiserin, delicada, feminina, não tinha nada da Germânia de um monumento que vi lá e que estranhei. Essa Germânia era colossal, co-
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medora de sanduíches e trazia na mão uma coroa de louros que mais dava a impressão de um chopp duplo. A Kaiserin era diferente: era uma pessoa muito simpática, elancé, distinta, muito princesa, parecia mais feita de cristal; mas ao mesmo tempo muito hirta, muito retilínea, ela parecia um jato d’água. Eu tinha muito apreço à Kaiserin, achava-a extraordinária. Nessa fotografia podia-se ver, exatamente no alinhamento do estrado, os pajens da corte com trajes à la Ancien Régime, e a sala vazia, com o Kaiser olhando para um ponto vago, e a Imperatriz sorrindo para o ar. Tinha-se a impressão de que ela sorria para o povo alemão e o Kaiser tomava atitude também diante do povo alemão. Por sua vez, os pajens também tomavam atitude diante do Kaiser e da Kaiserin, como que representando o povo alemão. E me dizia: “Que coisa bonita! Mas há qualquer coisa aqui que está dura demais446 . Há qualquer coisa aqui que já cheira a mundo moderno, cheira a indústria”. De repente, viro a página e vejo outra fotografia do Kaiser, não mais vestido de uniforme tal como se vestiam os reis daquele tempo, mas em traje civil, com ar galante e uma flor no peito. Pouco mais adiante, vejo uma fotografia da Catedral de Colônia, a célebre, a famosa, a histórica Catedral de Colônia, uma das mais bonitas do mundo e que foi terminada no tempo do Kaiser, a qual trazia esculpido do lado de fora, entre as estátuas próprias ao edifício gótico, o próprio Kaiser, representado ali como profeta do Antigo Testamento. Ridículo completamente! Aí bati com a mão na testa: o Kaiser era protestante. Como põem o Kaiser numa igreja católica? Indústria de um lado, protestantismo de outro, tradição no meio, tudo formando um mau conjunto, um conjunto objetável. Pouco tempo depois assisto a um filme do enterro do Imperador Francisco José, da Áustria. Era todo o contrário: tudo como deveria ser, exceto em um ponto: faltava a força e o empenho que eu admirava na coisa prussiana. Então me perguntava: “Não há jeito de juntar essas duas coisas? As coisas austríacas, quão belas, quão nobres; aqueles uniformes, que coisa esplêndida! Francisco José, que personagem magnífico! Mas essa gente toda aqui, se colocada em cima de cavalos e dando um “hurrah” de cavalaria, não enfrenta o exército do Kaiser. Ora, essas coisas bonitas só são verdadeiramente bonitas quando elas são vitoriosas; e só são vitoriosas quando são heroicas; e só são heroicas quando são profundamente sérias”.
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Quer dizer, eu percebia que era preciso filtrar, era preciso tamisar o que me vinha de lá. Não podia aceitar aquilo como um bloco. Mas com que critério filtrar, com que critério tamisar? *
Hoje, decorridos tantos e tantos anos, posso dizer mesmo tantas décadas, percebo melhor que a graça – portanto, Nossa Senhora, o canal de todas as graças – me ajudava a fazer uma espécie de seletivo do senso católico, dentro do conjunto das coisas que, já no meu tempo, havia em certas igrejas. Olhava, por exemplo, as imagens da igreja do Sagrado Coração de Jesus – são todas elas da escola sulpiciana – e sentia uma grande harmonia com aquelas imagens. Eram imagens representando personagens muito dignos, muito compostos e pensava: “É o longo hábito de não fazer coisas más que pode dar àquelas figuras aquelas expressões e aqueles modos de ser”. Isso naturalmente me agradava enormemente. Essas imagens sorridentes, afáveis, pareciam prometer que concordariam em rezar por quem pedisse as orações delas. E naturalmente davam esperança, tinha-se vontade de pedir auxílio, uniam-nos a Nossa Senhora. Mas havia nessas imagens um outro lado que eu não compreendia bem. Elas fitavam afetuosamente o fiel, mas eu não encontrava imagens fitando o adversário, e que ensinassem ao fiel como ele deve ver o adversário. Não havia imagens que excitassem no fiel o ato de repulsa, o ato de vigilância que constitui uma das facetas da alma católica. Pelo contrário, aqueles rostos, que representavam de vez em quando homens de 50 ou 60 anos, eram tão macios, que tinha-se a impressão de que naquelas faces nunca havia batido as tormentas, e que aquelas frontes nunca se enrugaram com preocupações, e que aqueles olhos vistoriavam com olhares lânguidos quem estava na sua frente. Desfrutavam de um repouso e de uma vida tranquila que, pelo menos no século XX, eu não compreendia que pudessem ter. Eu era menino, não conhecia quase História, mas via que isto não podia ser. E pensava: “Se de repente essas imagens se animassem e começassem a se mexer, iam encontrar esse, aquele e aquele outro. E aí, como agiriam? Iria tudo na bondade? Há alguma coisa aqui que não está muito direita. Ou não está direita na imagem ou não está direita em mim. Porque, entre a imagem e eu há alguma coisa que claudica, que não afina inteiramente. Como resolver esse caso?” Se fosse apenas a imagem, isto não seria nada. A questão era a Igreja Católica. Aquela imagem está colocada ali pela autoridade da Igreja e
simboliza aquilo que a Igreja quer que eu seja, aquilo que Ela quer me ensinar. Quem apresenta um símbolo de virtude, de algum modo apresenta uma virtude. E então, meio subconscientemente, fazia o seguinte raciocínio: “Quando a pessoa não está na posição de luta, a posição de distensão boa é esta. Esse lado está de acordo com a ideia de que tenho da Igreja Católica. Nenhuma dessas imagens ensina algo que repute mal. Podem ensinar um só tom de bem, mas mal não ensinam. Ora, que uma tão enorme organização ensine só tons de bem sem que a pata humana se meta dentro para que ensine o mal pelo meio, já aquilo é divino. Vejo aqui uma divindade. Só por manter o mal encadeado, de lado, Ela já mostra divindade. Mas por que não vem expressa a luta em nenhuma imagem?” E me perguntava: “O que diria de mim uma beata se me visse nas minhas lutas e nas minhas pugnacidades? Ela diria que isto é falta de caridade. E eu responderia a ela tal coisa, tal coisa, tal coisa. Se a Igreja dissesse o contrário, eu concordaria com a Igreja, porque a Igreja tem razão e eu não. Mas a Igreja nunca disse o contrário do que eu diria para a beata, e o que eu diria para a beata era cheio de razão”. E respondia para mim mesmo: “Quando ficar mais velho, saberei explicar melhor. Quero ver se se levanta sobre a face da terra, dentro do recinto sagrado da Santa Igreja, uma voz para dizer que não tenho razão. Se for uma voz autorizada, falando em nome da Igreja, eu me dobrarei, porque a Igreja é a Mestra e sou o discípulo. Na Igreja, tanto mais se abre os olhos, tanto mais se confia. Pelos outros só nos deixamos guiar cegamente quando se é cego, do contrário usa seus próprios olhos. Pela Igreja, não. Nós, de olhos abertos, ainda pedimos a Ela que nos indique o caminho. Só Ela vê bem”. Então eu tinha, como um pergaminho enrolado, a ideia de um dia escrever um livro que poderia ter como título: “Afirmo o que as imagens que conheço não dizem”. Com o correr do tempo, as minhas reflexões sobre isto foram tomando raiz. E por leituras de cá, de lá e de acolá; vida daquele santo, episódios daquele outro santo; depois tal Salmo e depois tal oração, fui verificando toda a trama da heresia branca em ocultar a verdadeira face da Igreja. Forjei a expressão heresia branca para designar isto. De maneira que, quando tinha mais ou menos 20 anos, isto para mim estava completamente claro e já não temia absolutamente nada, porque sabia que eu estava com a Igreja e com minha consciência de católico completamente tranquila. Quando chegou a hora de escrever o “Em Defesa da Ação Católica”, aproveitei a oportunidade e disse: “Agora vou realizar o meu plano”.
Se os senhores tomarem o trabalho de ler o “Em Defesa”, verificarão que muita coisa é contra a Ação Católica, mas muita outra coisa é também contra a heresia branca. A Ação Católica era por alguns lados o auge da heresia branca, era a heresia branca virando heresia preta. Eu atacava o erro da Ação Católica, mas atacava, pari passu, o erro da heresia branca. E tudo documentado com textos pontifícios. Isto era dito publicamente, com inteira tranquilidade. Vejam por aí como a Igreja nos ensina, até mesmo quando a fazem calar. Interpretamos o silêncio d’Ela e adivinhamos a verdade447 . *
Eu achava que todo o mundo tinha o mesmo enlevo. Foi só quando tive, no Colégio São Luís, o primeiro choque com a Revolução, é que comecei a perceber que, esse enlevo, um número incontável de pessoas não tinha. Afinal, acabei percebendo que quase ninguém tinha. Ninguém tinha em que termos? Nos seguintes termos: tinham rompido com aquilo, mas originariamente tinham visto a coisa que eu tinha visto. Era como eu supunha448 . Posso dizer que, tudo quanto eu via da Revolução e da Contra-Revolução, era derivado do fato de ter tido, no fundo da alma, esse olhar primeiro. Por exemplo, a iniquidade e tudo quanto eu ia achando da iniquidade: a torpeza dela, o seu modo de combater, o quanto ela estava metida nas pessoas e até que ponto cada uma era um joguete nas mãos dela. E sentia que havia uma espécie de trama geral regendo isto. A palavra iniquidade eu a acho mais musical do que a palavra mal. Iníquitas é uma palavra magnífica para dar a entender a infâmia, mas também a dimensão angélica perdida e quebrada dessa infâmia. Então, não via a menor manifestação de outras pessoas dizendo que isto era assim, nem de que algum santo tivesse notado, nem de que esse santo tivesse sentimentos internos correspondentes aos meus. Nunca! Porque o que os padres diziam, o que as imagens falavam, o que as músicas tocavam e cantavam, as orações que os fiéis liam e tudo mais, tudo mais, tudo mais, não dizia isto. E pensava: “Quereria que a Igreja recriminasse essa iniquidade. Quereria que a Igreja me recriminasse a mim pelos meus defeitos. Quereria uma Igreja Mãe, Mãe de Misericórdia como Nossa Senhora, mas que soubesse me dizer as verdades”. Mas não via isto.
447 Chá PS 14/10/80 448 CSN 3/3/90
De outro lado, pensava: “Analisando a Igreja, vejo que isto está implicitamente nesta coisa celeste que vi; apenas o que acontece é que esse raio de sol está dentro do sol e não está saindo no momento, mas tem que ser que isto seja assim. Portanto, por minha conta, risco e responsabilidade, andarei por caminhos que eles ainda não andaram”. E cheguei a afirmar, em nome da Igreja, coisas que nunca tinha ouvido antes. Por exemplo: “É preciso ser combativo! A combatividade é uma virtude católica”. Só muito depois é que descobri os ensinamentos da Igreja sobre a virtude da fortaleza. A fortaleza era apresentada, então, numa tal banha de modorra e de sono, que não me dei conta de que a Igreja a ensinasse. Bom, aí vem a heresia branca e tudo mais que dela decorre. Mas vejam o lado interessante: dizendo-me baseado na doutrina da Igreja, eu fazia afirmações que não havia estudado academicamente, nem tinha base escrita para comprovar. E sustentava que era o pensamento da Igreja. Via que certas pessoas não gostavam do que eu dizia, mas ficavam quietas. Os senhores podem bem imaginar, naquele período pré-rooseveltiano e pré-kennediano449, como me entregava à truculência, mas de braços soltos, sem nenhuma inibição. E aqui está o que me interessa mostrar, ou seja, esta forma de união proporcionada por essa espécie de olhar primeiro. Sem ler nem estudar a doutrina, deduzir; mas deduzir a partir de um estado de espírito e de uma virtude que tinha notado nesse primeiro olhar e que me havia encantado. Não digo que isto seja uma forma excelsa, super-excelente de união, mas digo que é uma forma de união muito autêntica450 . *
Eu notava frequentemente que as pessoas que me cercavam tinham uma ideia de bondade toda feita de ternura. A ideia era de que se deve ser bom para com todo o mundo e nunca fazer sofrer ninguém; deve-se ter uma palavra de indulgência para com todos os pecados, uma palavra de afabilidade para com todos os erros, uma palavra de contemporização e de conivência para com todas as abominações. Porque reprimir um erro, repreender um pecado, manifestar uma
449 A expressão pré-rooseveltiano é empregada aqui por Dr. Plinio para caracterizar o espírito pacifista acalentado, no fim da II Guerra, pelo presidente norte-americano Franklin
Delano Roosevelt (1933-1945), especialmente no encontro de Yalta, cujos conchavos permitiram que metade da Europa caísse sob as garras da União Soviética. Um herdeiro desse espírito pacifista foi o presidente John Fitzgerald Kennedy (1961-1963), daí a expressão pré-kennediano. 450 CSN 18/7/81
inconformidade com uma infâmia é fazer sofrer. E o homem nunca deve fazer sofrer o outro. Observava isto no meio em que me movia, e percebia as devastações dessa forma errada de sentimento, em nome da qual eu via serem introduzidos os costumes mais depravados e as ideias mais erradas. E aqueles que tinham costumes bons, que tinham ideias certas, que tinham, portanto, obrigação de defender essas ideias e esses costumes, e preservar os jovens da sua família contra o contágio do tempo, mostrando o preto sobre o branco, tinham moleza para com toda forma de mal, inspirada nessa ideia de que a dureza com o mal faz sofrer. Mais ainda, notava com estranheza que se procurava identificar isso com a pessoa adorável de Nosso Senhor Jesus Cristo, de maneira que se entendia que esta era a caridade cristã, que esta era a bondade. Dava-se a entender que Nosso Senhor tinha passado a vida amolecendo as forças do bem contra as do mal. No começo isto me causava estranheza, mas me parecia que, do lado da bondade, tinha certo quê de razoável. Mas acabei percebendo que isto não era senão um modo cômodo de levar a vida, de não brigar com ninguém, de não fazer inimigos, de, portanto, levar a vida na maciota. Como o número de pessoas “boas” assim era muito grande no tempo da minha infância, fui chamado a prestar muita atenção na psicologia delas, na mentalidade delas, e percebi que era quase ou inteiramente um sistema filosófico que essas pessoas tinham na cabeça. E o sistema filosófico era o seguinte: – Ninguém peca por maldade. Todo o mundo, quando peca, é arrastado sem culpa por forças internas pelas quais não tem responsabilidade. Quando se toma o pior bandido, o que tem que se fazer é tratá-lo bem, agradá-lo mais ainda do que agradávamos antes de ser assassino, para ele ficar um homem bom. Tratando bem, ele cairá em si e se arrependerá, porque no fundo ele não é ruim. Pelo contrário, se se tratar de frente, ele também entesta e amanhã ficará um homem ruim Era, no fundo, a forma de vender em favor do comodismo os princípios morais que temos obrigação de defender, e permitir a maré montante da infâmia que entrava. Porque, quem abria as portas para ela do lado do bem eram esses homens de uma sentimentalidade mole. Diante disso eu me indignei e disse a mim mesmo: – Esta bondade eu não quero. E se não quero a dureza de cimento do homem moderno, não quero também o caráter mole e sem-vergonha desse tipo de gente “boa”. Falsa bondade, embuste e mentira, eu te rejeito!451
451 SD 5/4/86