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O combate externo contra a visão prosaica e interesseira da vida e contra o espírito hollywoodiano

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ÍNDICE DE LUGARES

ÍNDICE DE LUGARES

Eu queria conservar a inocência de minha alma e percebia que, conservando-a, negava tudo o que os revolucionários defendiam. Mas via que isto não bastava: era preciso levar a negação do que eles dissessem a um ponto onde há séculos ninguém negava, e assim tornar a negação tão completa quanto possível. Procurei as razões profundas pelas quais a minha inocência queria firmar-se a si mesma e encontrei essas verdades. Percebi, nessa ocasião, a vida que isto abria para mim. Era a vida a mais extraordinária e a mais bela que um homem do nosso século, talvez de muitos séculos, pudesse levar. Mas também a vida mais triste, mais atormentada, mais difícil e mais esmagada, se não conseguisse de algum modo empurrar os adversários para trás. Resolvi, ao pé da letra, crucificar-me nisso. Quer dizer, não esperar nada deles. Às vezes até me espanto, porque no meu “orçamento” estava a previsão de que eu devesse pagar um preço mais alto ainda do que de fato paguei pela minha fidelidade. Em tudo isto, a graça foi-me ajudando. Sem a graça eu não teria forças para isto421 .

O combate externo contra a visão prosaica e interesseira da vida e contra o espírito hollywoodiano

Por tudo quanto me parecia grande e sublime, a minha alma tinha uma verdadeira atração. De maneira que uma porção de coisas me despertavam pensamentos e gostos para o elevado, para o extraordinário, para o magnífico. Quando pela primeira vez me chamaram de lado para me dizer que não havia cegonha, e como no gênero humano se dava a multiplicação da vida, senti o infame que me disse isto gargalhar contra o sublime. Vi que ele queria arrancar de minha alma essa sublimidade, contando uma coisa que era verdadeira, mas que era informada de maneira a ter uma perspectiva falsa. E com essa perspectiva falsa arrancar-me do sublime. Eu me indignei, não aceitei. Pouco depois, entrando no Colégio São Luís, ao travar contato com os meus colegas, percebi que o sublime não estava presente em nada no horizonte deles: nem nas brincadeiras, nem no que eles falavam, nem no que eles diziam. Nunca ninguém falava de uma coisa sublime. Eram só brincadeiras levando para o mais baixo, as quais se apresentavam a mim juntamente com tendências sociopolíticas peculiares.

421 CM 30/11/86

Em certo momento percebi que a recusa do sublime era, no fundo, a causa do afastamento deles da Religião. Meus colegas não tinham a menor atração por Nosso Senhor Jesus Cristo, por Nossa Senhora, pela Igreja, pelas cerimônias da Igreja, porque tudo isso era sublime. E como eles absolutamente não toleravam o sublime, não queriam saber disso. Então, o unum da Revolução ficou muito claro aos meus olhos. Mas o ódio contra a Revolução também, porque, sem o sublime, não queria viver. E então temos a batalha que dura, graças a Deus, até hoje422 . *

Lembro-me de que, quando tinha sete ou oito anos, andando no quintal de casa, veio em minha direção uma negra relativamente moça, tal como eu a revejo hoje, mas para mim já parecia uma mulher feita, dada a minha pouca idade. Ela se chamava Belmira. Ela parou perto de mim, e chamando-me de “você”, foi-me dizendo: “Você ainda acredita em São Nicolau?” Olhando para ela, vi em seu riso qualquer coisa de cético, de carregado de dúvida. Era o espírito da Revolução. Não sabia dizer o que era, mas vi o espírito que nega tudo e que fica contente quando demonstra que tudo quanto é elevado, bonito, feérico, é falso. E reiterou: “Você ainda acredita em São Nicolau?” Provavelmente devia ser por perto do Natal. Respondi-lhe com naturalidade: – Acredito. – Ah! ah! ah! Isso é uma história. Você acredita em cegonha que vem trazer criança? – Acredito. – Nada. Bobagem. Ah! ah! ah! E lá se foi dando risadas. Não fiquei com nenhuma dúvida e continuei a acreditar. Eu acreditava porque era tão bonito que devia ser verdade. Para a Belmira era o contrário: era tão bonito que não podia ser verdade. Nesse pequeno diálogo de fundo de quintal, entre uma empregada doméstica e um meninote, duas filosofias se opunham. Alguns dias depois, brincando com primos no jardim, alguns deles já mais velhinhos chamaram-me para perto e um deles me perguntou: – Você acredita em cegonha que traz crianças? – Acredito. – Nada. Isso não é assim. É um conto. Criança nasce assim...”

422 Chá PS 26/3/93

Achei a coisa tão prosaica, no fundo tão diferente da aparência com que elas estavam postas, que fiquei indignado e protestei. Eles então me deram explicações detalhadas, e aí percebi que era verdade. Compreendi que não poderiam ter inventado aquilo, que só poderia ter sido composto por gente mais velha e que sabia o que dizia. Permaneci em um reverente silêncio, sem compreender por que Deus Nosso Senhor tinha disposto uma coisa tão prosaica. Eu não compreendia. Mas, se foi Ele, é bem feito. Não me causava nesse ponto a menor perturbação. Mas ficou-me uma indignação pelo modo com que eles disseram isto. E conservo a recordação bem exata da cena, das caras, dos risos e dos falares perto de mim, num segredo que sentia as suas delícias em ser secreto. Chamou-me também a atenção uma espécie de falta de ar e de comunicação meio palpitante, meio ofegante da parte deles, como se me revelassem um segredo que alterasse completamente a face do universo. Era como se o universo tivesse antes uma face linda, mas boba e falsa, e passasse a ter uma face feia, mas verdadeira, e da qual o homem sagaz seria capaz de tirar partido. Percebi que era um convite intenso para eu fazer parte dos espertos, dos que tiravam partido da vida e a gozavam tanto quanto possível. E que, para isto ser assim, eu teria que ser um homem sem ilusões; ou seja, um homem sem ideais, vendo a realidade apenas no seu aspecto mais prosaico, para só falar do prosaico. Tive também a sensação muito definida de que eles propriamente não faziam isso nem para meu bem nem para meu mal. Entrava neles um ódio contra o estado de alma que era o meu, de idealismo, de ver a beleza das coisas. E que eu daria a eles certo alívio se abandonasse aquele estado de alma e me acumpliciasse com eles. Se eu não abandonasse, causaria a eles certo mal-estar. Seria amigo se aderisse, e inimigo se não aderisse, porque o odiado era esse estado de alma. Uma coisa vaga me dava a nítida sensação de que estava uma vendetta acesa caso eu não aderisse423 . Parecia-me que, no modo de ser deles, palpitava qualquer coisa como um coração péssimo que queria que tudo fosse ruim, queria que nada fosse belo, que nada fosse bom. Queria que não se tivesse certeza nem da verdade nem do erro, que tudo fosse dúvida e que o homem se largasse, fazendo o que bem entendesse. Eles gostavam que isto fosse assim e estavam esperando que, com a narração que me faziam, eu deixasse de ser eu, para passar a ser como eles.

423 Chá SB 27/8/81

Senti inteiramente que me queriam mudar. Aí rejeitei isto como sendo o contrário de tudo quanto amava. Uma coisa que eu não sabia explicitar, porque era muito pequeno, e que ficava no meu espírito era isto: se bem que, neste ponto, possam estar com a verdade, eles são os defensores da mentira. Eles querem que a mentira tome conta do mundo. Eu, portanto, os rejeito. Foi o primeiro ódio que senti na minha vida. Também, nunca mais fui amigo deles. Sobretudo daquele que eu percebi que tinha organizado aquela arapuca. Vi também que ele me perseguiu durante todo o tempo da vida dele. Fomos inimigos, como um cristão pode ser inimigo do Anticristo. Ao longo dos tempos, esse primo não deixou de me combater a propósito das menores coisas, mesmo as mais insignificantes. Ele considerava-me de um modo depreciativo, ria, fazia comparações completamente desumanas, sujas e procurava aliciar os outros contra mim. Ele e outros do gênero iam, assim, me ensinando como era o ódio do lado de lá424 . Evidentemente, senti a tentação, como também senti a graça. Nossa Senhora olhava nesse momento para mim como olha para todos os fiéis, e me ajudou nesse passo, sem o que não sei o que teria sido de mim. Naquele momento, naquela circunstância não estava presente a impureza – podia ter estado, já tinha idade para isso –, mas estava presente o gostinho de participar da fronda revolucionária deles. Aquilo tinha uma atração diabólica de fazer ver o mundo às avessas, como ele não é. E tinha a sedução do absurdo, do errado, do miserável. É a sedução que o demônio tem, ele é o absurdo, o miserável e tudo o mais. Percebia bem que, se aderisse a isto, apagava-se com pedradas uma série de luzes que sentia acesas dentro de mim. Posteriormente vim dar um nome a essas luzes: eram as luzes da inocência. O que me chamou muito a atenção, nesse momento, é que eu sentia que aqueles meninos eram dominados pelo que eles me diziam, eles não queriam outra coisa, eles queriam isto, e o resto para eles não era nada. Eu tinha toda a vida brincado com eles, conhecia-os bem; nunca, nem de longe, os tinha visto tão enfáticos como naquela ocasião. Mais tarde, em contato com o colégio – porque isso tudo se deu antes de entrar para o Colégio São Luís –, vi que isto era uma onda. E percebi no colégio que os alunos não eram senão reflexo de um ambiente muito mais amplo em São Paulo.

424 Almoço EANS 9/3/89

Via também que esse ambiente era um reflexo do cinema, e que o cinema era um reflexo do mundo. Sabia que aquelas fitas de cinema que assistia eram aplaudidas no mundo inteiro; logo, o mundo inteiro devia ser consonante com aquilo. E percebi perfeitamente, não sei em que data, que essa ênfase era a do mundo inteiro. Naquele tempo, o cinema também demolia meticulosamente todos os vestígios da polidez europeia e construía o modo de ser hollywoodiano, que era uma contínua erosão da polidez, da douceur de vivre,da gentileza, das desigualdades, da hierarquia. Vi isto ao longo de mais ou menos um ano, no máximo. Tudo estava visto, o resto foi só explicitação. Como bom brasileiro, olhando para a realidade, não me era difícil percebê-la com toda clareza. O difícil era encontrar as palavras que exprimissem isto. Não era só encontrar a palavra, mas analisar bastante para depois saber que palavras tinha que procurar e depois encontrar. E algumas dessas sensações muito definidas que estou descrevendo, levei 20, 30, 40 anos para saber explicitar425 .

Tive – como já disse – uma primeira fase extraordinariamente feliz. E chamo de primeira infância a época que vai desde que nasci até quando comecei a enfrentar os sofrimentos. É a fase da inocência em todos nós. É feliz para todo mundo. Eu me alegrava imensamente com tudo que pode alegrar. Eu era louco por conversar com minha irmã, meus primos. Tinha muito gosto por um relacionamento cordial, amável, atencioso, respeitoso com as pessoas. E detestava qualquer forma de brutalidade, de brincadeira, ou de coisas que fossem fora das boas normas do bom trato. As normas do bom trato me pareciam a condição para o conforto psicológico na vida. Era um menino muito cerimonioso, gostava de ser cerimonioso com os outros, mas exigia cerimônia comigo. Meus primos estavam habituados a isso. Se vinha algum de fora brincar e que não tinha esse gênero, apanhava. E assim me sentia bem. Nunca dos nuncas uma palavra obscena, uma sujeira, uma imoralidade. Era a vida limpa da infância inocente.

425 Chá SB 27/8/81

Se não me engano, o começo de meu sofrimento foi logo no início de minha entrada no Colégio São Luís, antes mesmo de perceber o problema da impureza, mas percebendo a brutalidade do trato. Recordo-me que, em certo dia de feriado, meus pais me levaram a uma confeitaria. Encontrei lá alguns colegas, saudei. Responderam-me de modo vulgar e descortês. Percebi imediatamente que tinham do seu lado a unanimidade, e que eles respondiam assim ao meu cumprimento porque sabiam que, se eu falasse com outros meninos, os outros dariam uma gargalhada de mim e se poriam na linha deles. Percebi então que o mundo que vinha era construído sobre a brutalidade, sobre a falta de cortesia, sobre a falta das belas maneiras, que para mim eram uma condição para a felicidade. Eu tinha loucura pelos assuntos históricos e pelas coisas do passado, e via que para eles a realidade cinematográfica de Hollywood era a imagem do futuro, e de um futuro que eles desejavam com ênfase426 . *

Eu notava uma diferença muito grande entre o espírito hollywoodiano que ia dominando cada vez mais a sociedade civil, e Nosso Senhor Jesus Cristo como Ele me era apresentado pela imagem do oratório de mamãe e pela imagem do Sagrado Coração de Jesus que está do lado do Evangelho na igreja d’Ele. Ao comparar o estado de espírito que eu via surgir em mim quando rezava para Ele, com o estado de espírito produzido pela música hollywoodiana daquele tempo – músicas aloucadas, desordenadas –, chegava à conclusão de que Ele era o contrário de tudo isso, ou seja, o contrário da Revolução. Era uma conclusão baseada numa antinomia evidente, diante da qual eu tomava atitude, pondo-me completamente do lado d’Ele, embora com o maior prejuízo pessoal. E pondo-me contra os que se punham contra Ele. Era assim que eu via o Sagrado Coração de Jesus e o vejo hoje427. Aí está realmente o fundo de minha mentalidade e de meu espírito católico. Mas aí está também o choque com a Revolução, completamente, completamente, completamente428 .

426 Chá PS 18/11/83 427 CSN 11/12/93 428 Conversa 21/1/93

No meu tempo de menino, todo o mundo usava sapato preto. Por que razão? Eu ignoro. Naquela ocasião, passar do sapato preto para o marrom entrava dentro de uma onda de declínio da seriedade. E nesse contexto era um passo a mais na diminuição da seriedade. De onde os meninos educados em ambientes mais sérios – em geral os ambientes mais sérios eram os ambientes também menos brilhantes socialmente – continuaram a usar sapato preto, e levaram mais tempo para passar a usar sapato marrom. Já os meninos educados nos ambientes mais finos, mais elegantes, adotaram logo a nova moda e passaram para o sapato marrom. Havia uma conotação de grã-finismo para quem usasse sapato marrom. Então, a falta de seriedade e o grã-finismo, que não se confunde com o aristocratismo, levaram-me a não usar logo sapato marrom. A partir do momento em que o uso do sapato preto ficou meio escandalosamente anacrônico, julguei não ser do interesse da Contra-Revolução enfrentar a Revolução numa coisinha tão inútil. Então passei a usar sapato marrom, hábito que mantive até a época do desastre que sofri em 1975, mais ou menos429 .

Nessa época cantavam-se em tom desbragado canções que ainda não eram as canções de Hollywood, mas eram muito chués, ordinárias. E pensava: – O canto religioso, que coisa bonita! Como é diferente dessas canções! O canto da Igreja é nobre, sereno, calmo, elevado, bonito. A minha alma é tomada por inteiro quando ouço a Igreja cantar. Também quando ia à igreja do Coração de Jesus, via, pintada no teto, a imagem do Coração de Jesus representando a aparição a Santa Margarida Maria Alacoque e dizendo: “Eis aqui o Coração que tanto amou os homens e foi por eles tão pouco amado”. E eu refletia: “É isto mesmo, eles não amam verdadeiramente Nosso Senhor”. Passava do lado de fora um caminhão: pa-ra-pa-pá! E pensava: – Está vendo? Se eles tivessem amor de Deus, não permitiriam que esse caminhão viesse fazer barulho perto da casa de Deus. Nem os padres se incomodam com isso. Mas quem é conforme à Igreja, os padres que são conformes à Igreja têm outro espírito, outra mentalidade. Essa mentalidade,

429 Chá PS 1/5/91

esse espírito eu quero ter, exatamente porque é sublime, porque é admirável, porque é santíssimo, porque eleva enormemente a alma430 . *

Isto tudo me enlevava muito, mas me levava a comparar o que via no Sagrado Coração de Jesus com as brutalidades e as doçuras sensuais da Revolução. Porque o homem revolucionário era brutal, o trato de uns com outros era de uma familiaridade desabrida, desagradável, uma coisa incrível. Eles eram amigos apenas na medida em que eram inimigos da autoridade, e cúmplices para desobedecer, para organizar a revolta, para defraudar a autoridade, para diminuí-la. Fora disso eram inimigos uns dos outros. Tudo isto eu julgava tão diferente de Nosso Senhor Jesus Cristo, que nem se podia comparar uma coisa com a outra. Como tinha visto como era Ele e o tinha amado até o fundo de minha alma, queria que as coisas fossem conforme Ele, e não podia deixar de detestar as coisas feitas hollywoodianamente. Por exemplo, o boxe era um jogo muito usado entre os rapazes de minha idade, e que nunca joguei. Eu não permitiria em que outrem pusesse aquelas luvas e fosse de socos em cima de minha cara. Absolutamente não. Mas eles viam na atitude que eu tomava uma censura a eles, e eles jogavam boxe. Motocicleta: em si um veículo feio, que não tem nada de imoral em si. Mas aquela barulheira da motocicleta é o contrário de uma música. Via a alegria do indivíduo montado naquela máquina: quanto mais ele podia obrigar a máquina a produzir sons, e quanto mais esses sons fossem disparatados, mais ele ficava contente. Essas coisas todas criavam uma oposição enorme entre eu e a Revolução. E eram reflexões de menino. Sentia-me como num cárcere, pelo fato de não poder dizer isto a ninguém. Porque se dissesse, ouviria absolutamente de todo o mundo a mesma resposta: “Você acha feio o barulho da motocicleta? Eu acho engraçado. É coisa de moço. Moço é assim, moço gosta de fazer barulho”. Sei que viria daí uma inimizade de morte, mas sei que todo mundo responderia as mesmas coisas estereotipadas. Naturalmente, eu ficava para lá de indignado, por me sentir como se me amarrassem um pano na boca e me impedissem de falar. Daí uma incompatibilidade não sei de que tamanho, da altura do Pão de Açúcar431 .

430 Chá SRM 6/1/94 431 Chá SRM 21/1/93

Contei como no largo do Coração de Jesus em algum sentido eu observava, na alma dos pequenos, a ação da graça, da qual o Sagrado Coração de Jesus é o foco. Digo agora como observava a ação da graça na alma dos grandes. Aos domingos, na Missa das 11 – era a última do dia, pois não havia missa vespertina naquele tempo – o aspecto do público da igreja era inteiramente diferente. Todo o mundo educado e de dinheiro, que representava mais ou menos a aristocracia local, ia a essa Missa das 11. Viam-se então chegar bonitos automóveis, senhoras de idade madura em bonitas toilettes, homens ainda usando fraque e cartola por homenagem a Deus, Senhor de todas as coisas e a quem eles iam visitar. Era um mundo em que aparecia muito do antigo donaire dessa espécie de aristocracia descoroada que era a alta classe rural tradicional de São Paulo. Mas notava neles, como notava em minha casa, o conflito de duas influências: de um lado, a velha tradição portuguesa, e de outro a hollywoodização dos costumes. A velha tradição portuguesa era muito afim em alguns pontos com a tradição francesa, e pela qual a nota distintiva do homem educado era uma seriedade amável, até afável. Mas a amabilidade e a afabilidade vinham per accidens, como um ornato complementar. A nota dominante era a seriedade, a conversa composta e a amabilidade cerimoniosa. Eu gostava muito dessa amabilidade cerimoniosa. Em casa, mesmo na intimidade, o modo das pessoas se dirigirem umas às outras era cheio dessa seriedade. Mesmo na intimidade, mesmo brincando, a brincadeira era feita com um tom cheio de respeito, e o respeito era uma espécie de atmosfera, de gás ou de líquido no qual a vida inteira estava imersa. Essa influência eu notava também nos ambientes das residências, nos móveis, por exemplo. Toda a casa que se prezasse tinha um salão dourado, com móveis também dourados no estilo Luís XIV, XV, XVI, ou um pouco mais antigos, Luís XIII. As paredes eram revestidas de damasco dourado ou de papel vindo da Europa, mas papeis de primeira ordem, dourados também; ou ainda de painéis de damasco de outras cores, fraise, azul, que também ficavam bonitos. Lustres, sempre, infalivelmente, e de cristal. E se as posses da família permitiam, o hall era de mármore, cortinas todas de damasco, sedas, veludo.

Quadros a óleo, sempre também. Não passaria pela cabeça de ninguém pôr uma estampa como decoração. Imaginem agora – e aqui entra a segunda influência – que, numa sala assim, fosse aberta uma janela dando para um lugar poluído. Foi o que naquele tempo aconteceu nessas casas: tudo começou a ficar aberto para a influência de Hollywood. A influência do cinema naquele tempo era pelo menos igual à influência da televisão hoje. Não havia ainda rádio nem televisão. Os filmes que se exibiam eram de heróis que, para fugirem da polícia, saíam pela janela e seguravam nos rebordos de um prédio de vinte andares, todo cheio de ornatos. Então se via a máquina de filmar focalizar o prédio do alto do vigésimo andar até a rua, e o herói se contorcendo, pendurado naqueles ornatos, e todo o cinema numa “torcida” única para ver o que ele faria. As músicas que as vitrolas tocavam, as canções que as pessoas cantarolavam ou que as senhoras executavam no piano, ou ainda a que os rapazes tocavam no violino, tudo isso já era hollywoodiano. O resultado foi a introdução de uma gargalhada superficial, agitada, estridente e sem significado profundo, a não ser como expressão de um imenso caos. Eu percebia essas duas influências que se combatiam. Aquela seriedade sacral de outrora ia sendo enxotada por aquela superficialidade trivial, adoradora da máquina, do dólar, da corrupção, e que já preludiava Las Vegas e outros antros de hoje em dia, e que tinha que dar na civilização moderna. E entendi o seguinte: quando eles estavam na Missa do Sagrado Coração de Jesus, todo o lado tradicional vinha à tona e dominava neles; quando estavam no cinema – muitos eu ia encontrar na matinée –, eles estavam cheios de Hollywood. De onde me vinham ideias como esta: “Se o lado tradicional floresce na igreja do Coração de Jesus e em outras igrejas de São Paulo, e não floresce no cinema, há uma relação de aliança, de afinidade entre esse ambiente, essa religião e esse lado bom. E há uma relação de antagonismo entre a igreja e esse lado ruim, quando eles vão ao cinema”. Imaginem o jazz tocando na igreja do Coração de Jesus: seria uma blasfêmia. Imaginem um órgão tocando música religiosa e acompanhando um filme de Hollywood: ou parava o órgão, ou parava o filme, porque os dois não iriam juntos. Vamos imaginar mais: que o próprio Sagrado Coração de Jesus aparecesse num salão de família daqueles. Seria uma honra excelsa que Ele faria a esse salão, mas uma honra que estaria na linha do salão, pela seriedade,

dignidade e respeito do ambiente: nada seria atentatório contra Nosso Senhor lá dentro. Imaginem agora se Ele aparecesse em um cinema: não é uma hipótese blasfema? Não se pode nem pensar, nem cogitar. Logo, há no cinema um princípio hostil a Nosso Senhor; e há, na vida tradicional, um princípio que procede d’Ele. Olhava em torno de mim e pensava: “O que diria essa gente se eu dissesse a ela que estou pensando nisto?” Eles diriam que não era bem isto, que não estou entendendo nada, que esse antagonismo não se põe. Isto porque eles não queriam fazer a opção, eles não queriam fazer a escolha. O resultado é que eles deixavam devorar, como um câncer, a parte boa pela parte má, por não quererem optar. E dizia no meu íntimo: “Opto pelo Sagrado Coração de Jesus”. Alguém dirá: “O senhor me desapontou. Esperava que o senhor comentasse o efeito de um devocionário, de um manual de piedade, de uma fórmula de consagração a Ele; esperava que o senhor falasse de coisas dessas, e qual o efeito que a figura d’Ele produz na sua alma”. Respondo: está tudo dito no que estou dizendo. O efeito foi prévio, o de me deixar modelar por Ele a fundo. Eu o tinha conhecido, e tinha me deixado modelar por Ele tanto quanto minha miséria permitia. E era por isto que eu estranhava uma coisa que era dissonante d’Ele. Era por isto que eu reconhecia n’Ele a regra a ser seguida, qualquer que fosse o sacrifício, qualquer que fosse a batalha. O critério para diferenciar o bem e o mal, a verdade e o erro, é estar consonante com Ele. Isto é um ato de adoração, um ato de devoção. Supõe evidentemente rezar muito a Ele, ir à imagem d’Ele, ir à igreja d’Ele, tê-lo em vista nas imagens d’Ele em casa, e dirigir-me a Ele por meio de sua Mãe. Ou seja, ser devotíssimo de Nossa Senhora como canal necessário para chegar até Ele. Estou cônscio, deliciosamente cônscio, cônscio até o fundo de minha alma, de que nunca teria chegado a nada disso se não fosse a intercessão de Nossa Senhora. Mas, o que aconteceu com alguns outros que vi, grandes rezadores de manuais? Eles, de manhã, rezavam as orações do manual, mas não tinham suficiente amor para, na hora do cinema, estar se lembrando d’Aquele a quem tinham rezado. E evitavam a opção. Resultado: a devoção a Ele se limitava, nesses rezadores, cada vez mais a uma mera fórmula, e cada vez mais a entrega à mentalidade do cinema tornava-se neles uma realidade. Fica assim narrado, de um modo muito sumário, e tanto quanto me é possível narrar, um dos itinerários de minha alma rumo ao Sagrado Coração de Jesus.

Permitam-me um parêntese. Nessa dualidade jazz e tradição, havia um problema. É que a tradição aparecia tristonha, incapaz de suscitar alegria, vida, verdadeiro espírito de luta e algo que não fosse mofo. E era preciso um ato de fé para acreditar que a tradição havia inspirado coisas como as Cruzadas, por exemplo, de tal maneira ela estava no meu tempo carregada de mofo. Como a única forma de alegria estereotipada era a hollywoodiana, não havia uma fórmula para dar escoamento psicológico à alegria para a qual a alma tem tendência, senão os padrões hollywoodianos. Ser alegre aparecia então como uma espécie de infidelidade. Em sentido contrário, ser tradicional, ser fiel à Igreja de sempre parecia trazer como corolário ser tristonho, abatido. E tinha verdadeiro horror ao mofo e a tudo quanto não fosse vida. Assim, quando entrei para o movimento mariano, uma das metas que tive foi de fazer sentir que eu não renunciava nem um pouco à alegria sã e casta de viver. Mas confesso que não me era fácil comunicar isto a muitas pessoas em torno de mim, porque tomavam isto como falta de devoção, falta de piedade. *

Havia uma rua limítrofe perto de casa, que demarcava o mundo da antiga aristocracia rural e o mundo da pequena burguesia. Aquele era um mundo europeizado, aberto às ideias novas, com bastante dinheiro, com luxo até e com preocupações de progresso e de conforto para si mesmo, e participando de toda a agitação política, mundana, cultural, de toda a alegria, de todo o tom hollywoodiano que caracterizava aquele tempo. O jazz era o grande escândalo sonoro daquela época. Odiei o jazz desde o primeiro momento em que o ouvi, assim como amei o órgão desde que tomei consciência de que ele existia. O meu ambiente doméstico era um misto de órgão e de jazz. A tradição, que inegavelmente estava presente, tocava o órgão. Mas, assim como as badaladas dos sinos desciam no largo do Coração de Jesus, assim também as cacofonias do jazz cobriam o mundo e entravam também na mansão da rua Barão de Limeira, 77. Havia ali muitos espíritos aggiornatti segundo o jazz, enquanto pelo menos uma senhora e eu éramos ajustados segundo a tradição. Eu entrava em toda aquela sarabanda, à qual não se pode negar certo brilho, não se pode negar o deleite da vida. E era sensível a esse brilho e sensível a esse deleite da vida, quer dizer, à vida rica, à vida cara, à vida com luxo, às viagens para a Europa em navios palace com salões de dois

andares; ao turismo pela Europa, ao palacete enorme em São Paulo, aos automóveis de luxo vindos da Europa, vindos dos Estados Unidos432 . Naquele tempo, os acontecimentos sociais tinham muita importância: “Fulano não foi convidado para tal festa: isso o desclassifica de tal maneira. Sicrano vai se casar com tal moça, que o coloca de tal maneira na escala social. Aquele terceiro fez tal bom negócio”. Tudo também se movia, e continuamente, em lances vistosos no palco da micro-Pauliceia. Era o palco que havia, e um dos maiores palcos do Brasil. Então, era o micro-Brasil, mas valia tudo nessa matéria433 . *

Na questão de modos de trajar, a minha incompatibilidade com meus trajes foi precedida de um período de indiferença. Quando tinha quatro ou cinco anos, os meninos usavam rendas e outras coisas do gênero. E deixava que me vestissem, não prestava atenção naquilo, nem me incomodava. Podiam pôr o que quisessem. Às vezes pensava: “Para que carregar isto? Enfim, custa menos carregar isto do que carregar uma briga. Se quiserem pôr mais um pompom aqui ou acolá, ponham, que não me incomodo. Nem sou eu que coloco, são outros, não me dá trabalho. Estou aqui como um cabide, pendurem”. Não me lembro de uma só vez olhar no espelho para ver como estava minha roupa. Não me passava pela cabeça434 . A incompatibilidade nasceu quando comecei a usar paletó e gravata, colarinho, essa história toda. Eu era então mais velho, a capacidade de atenção mais definida, e, pondo a roupa nova, pensei: “Como é? Que história é essa aqui?” Compreendia bem que, ainda que fosse de calças curtas – porque no meu tempo já com calça curta se usava paletó e gravata –, aquilo representava um estágio intermediário para o homem completo, de calça comprida. Se me tinha engajado num caminho que era o do homem de calça comprida, tinha que ver no que ia dar. O raciocínio era: “Estou aqui numa roldana que vai me empurrando para lá. Depois, queira ou não queira, é isso, lá vai. Preciso ver o que é, o que vai acontecer nessa história aí”.

432 Jantar EANS 18/12/85 433 CSN 6/8/83 434 Jantar EANS 11/3/87

Percebia através das revistas, do cinema, das fotografias em jornal, que uma coisa estava na moda e que outra coisa não estava na moda, inclusive para homens. E dizia: “Esse negócio de moda se move, e toda essa movimentação faz com que tudo se torne mais vulgar, mais pechisbeque, mais pífio. Quando é que começou a caminhar desse jeito?”435

Por natureza, e creio também que com auxílio da graça, fui desde pequeno muito atento para a correlação entre as ideias que as pessoas exprimiam e o subconsciente delas, as atitudes que tomavam e os símbolos de que elas se rodeavam. Um exemplo entre cem outros: os lançadores de uma moda nova. Esses lançadores de moda eram em geral senhoras ou, mais discretamente e com menos saliência, homens – isto quando se tratava de moda masculina –, os quais eram tidos, em determinado ambiente, como os mais elegantes, os mais finos. Eles possuíam uma espécie de radar: assim que as revistas e o cinema apresentavam alguma coisa nova, eles percebiam por que caminhos essa moda nova ia correndo, captavam o estado de espírito que aquela moda criava, hauriam o que havia de ruim provindo da Revolução e depois, através dessa moda, lançavam e espalhavam aquele estado de espírito em torno de si. Eram verdadeiramente apóstolos de um espírito mau, no sentido literal da palavra. Observando tudo isto, percebi uma escola de ódio a Deus funcionando assim. E percebi que essa escola envolvia toda a humanidade, e que esta era propriamente a escola da Revolução, montada entre os homens por esta forma. Em face disto, eu era levado a reagir fazendo o contrário, folheando figurinos do passado, não para copiar trajes – seria uma demência –, mas para me embeber dos estados de espírito e dos modos de ser que traziam no fundo o espírito de Deus, ou seja, mais proximamente o espírito católico. O espírito da Igreja Católica é o Espírito Santo, é Deus Nosso Senhor. Por esta forma, enquanto os meus colegas de idade e de classe iam evoluindo para um lado, ia evoluindo definidamente para o outro lado, e ia criando para mim um modo de amar a Deus que não estava nos manu-

435 Chá SB 11/6/80

ais, e cuja autenticidade, entretanto, não se punha em dúvida, porque era evidente436 .

* Abriam-se para mim dois caminhos diferentes, longe do pecado e fora do pecado. Um caminho era gozar a vida. Outro caminho era ser fiel à inocência, sofrendo perseguição, sendo detestado, odiado, ignorado e posto de lado pelos outros. Essas duas tendências não cheguei a distingui-las logo. Mas os fatos as impuseram para mim, porque teve início a batalha dentro do colégio. Comecei então a desenvolver uma luta raciocinada e política para disputar um lugar ao sol, que o silêncio velhaco e o abandono me negavam. Utilizava para isto as habilidades maiores ou menores de um político, para sozinho virar de pernas para o ar a política que faziam contra mim. Entrava nisto até um tanto de guerra psicológica, que eu nem sabia que existia, mas que, apalpando, ia percebendo: “Tal coisa se faz assim, tal outra coisa se faz daquele jeito”. E assim alterei em parte a situação. Mas aí já tinha contra mim toda a Revolução, já havia formado o ideal da Contra-Revolução. Torci o pescoço da bruxa, não pensei mais na vida de grão-duque e tomei a cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. O que poderia haver de enfeitado seria imaginar um menino ideal que desde pequeno pensou na cruz. Na verdade, minha fantasia passeou longe, longe, por todos os luxos, por todas as coisas agradáveis possíveis, que eu desejava com uma veemência pouco imaginável437 . *

Onde a batalha foi tremenda foi na seguinte alternativa: tudo bem pesado, pensava eu, vale a pena fazer o que estou fazendo por causa do Céu. Mas, do ponto de vista terreno, vale a pena o sacrifício que estou fazendo? Porque eu tinha todos os elementos para ter uma felicidade média, comum, de um rapaz de boa família de meu tempo. Depois, isto estava inteiramente ao meu alcance, eu não tinha que fazer o menor esforço. Era pegar e está acabado. E nesse ponto não havia dúvida. A dúvida que surgia era a seguinte. Para conservar uma posição agradável e sustentável, e evitar as aflições do estilo Hollywood, eu me punha de tal maneira diferente dos outros que uma parte da implicância que havia comigo, e de um cordão de isola-

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mento que se fazia em torno de mim, era por causa dessa minha posição. E era também porque eles notavam a calma e o bem-estar interior que eu carregava comigo. Aguentar isto era de uma dureza que minava a vida. Era a cruz de Cristo. Além disso, havia ainda a minha posição militante. Eu não era militante por temperamento, era militante porque devia ser. Então vinha a tentação duríssima de ter que rechaçar certas pessoas. E então está-se vendo o resto438 . *

Em determinado momento, aparece uma bombarda que se desfecha no centro disso: “Rompa com a causa nostræ lætitiæ e seja como os outros. Senão haverá para você um dilúvio de padecimentos (os quais percebi perfeitamente, logo). Se você se mantiver fiel à causa nostræ lætitiæ, veja o que vem em consequência!” Quer dizer: “Não tenha ilusões, essas alegrias atuais vão se transformar para você em dor, e você vai ter luta. Essa vida de “nhonhô”439 que você leva só será gostosa se você trucidar a causa nostræ lætitiæ”. Isto me vinha ao espírito com toda a clareza. Mas, de outro lado, vinha-me também a ideia muito clara de que a felicidade que viria seria uma felicidade sporcata, emporcalhada. Seria um gozo, não seria uma felicidade. E depois, ainda que fosse uma felicidade, o que eu queria era a união com Deus, com Nossa Senhora, com a Igreja, em alguma medida com mamãe; isto eu queria, e não queria outra coisa. E aí, então, começou a batalha440 . Lembro-me de ter calculado o preço que teria de pagar, caso alterasse a minha personalidade e passasse a gostar efetivamente do barulho do automóvel, do cheiro da gasolina e de outras coisas do gênero; sabia

438 MNF 17/3/95 439 A expressão “nhonhô”, dentro da linguagem interna da TFP, vem do tratamento respeitoso e ao mesmo tempo afetivo dado pelos escravos aos filhos dos grandes fazendeiros, os barões da terra brasileiros. Esses barões da terra sonhavam para os seus filhos uma carreira de advogado, de médico etc. que eles não puderam seguir, e almejavam para seus pupilos o aprimoramento cultural que os projetasse na sociedade. Mandava-os então estudar em

Portugal (no período colonial) ou na França (no período da Velha República). Acontecia com certa frequência, entretanto, que, junto com a cultura, o rapaz assumia hábitos amolecidos das elites europeia já decadentes, e perdia a fibra e a força de personalidade de seus pais. Daí Dr. Plinio utilizar as palavras nhonhô, nhonhoseira, nhonhosar como uma expressão despectiva, própria de pessoa decadente, amolecida e de vida larga, que mais procura gozar a vida do que servir a uma causa. 440 CSN 13/1/90

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