43 minute read

O combate contra a preguiça e o amor crescente à combatividade

que eu estava aprendendo a respeito das pessoas, podia-se pensar também das nações. E assim comecei a ler História e a compreender a psicologia das nações e a psicologia dos regimes. A razão pela qual me interessei pelas questões sociopolíticas foi justamente porque elas me introduziam nesses grandes seres coletivos que são as nações. Através desse quadro, passei a conhecer, a desconfiar ou a admirar os povos, observando seus defeitos e as suas qualidades. Daí também a ideia de como fazer política com uns e com outros, como tratar com uns e com outros. Isso tudo foi se formando aos poucos. E aí está como Nossa Senhora me foi preparando para dirigir a TFP456 .

O combate contra a preguiça e o amor crescente à combatividade

Na primeiríssima infância eu tinha uma alma em extremo delicada, em extremo afetiva, e, portanto, em extremo amiga da paz, das coisas que andam em ordem, andam bem e que não se chocam entre si. As brigas e coisas assim me causavam verdadeiro horror, como algo que não deveria ser. Esta disposição de alma estava, entretanto, destinada pela Providência a sofrer os choques mais duros, mais bárbaros, e choques no que eu tinha de bom. Mas sofri também muitos choques contra a moleza da parte da Fraülein Mathilde e de mamãe. Choques nos lados bons, quem deu foi a Revolução, e em quantidade. Em 80 anos de vida não fez outra coisa senão me chocar o tempo inteiro. Aí se pôs uma alternativa, que poderia ser expressa assim: – Ou essa sua delicadeza se completa com uma grande combatividade, ou você está liquidado por não saber lutar contra os inimigos de Deus. E se você não souber lutar contra os inimigos de Deus, de todo o maravilhoso que você ama, de todo o grandioso que você ama, de toda a hierarquia que lhe entusiasma, você será um admirador vazio e sem valor, digno de ser rejeitado, porque não será capaz de se sacrificar. E agora vamos ver: sacrifique-se! Não era um sacrifício qualquer, era um holocausto. Era a perspectiva de uma vida feita de dor: “Você aguenta ou não aguenta essa vida feita de dor? Agora toque para frente!”

456 Chá SB 18/10/81

Não era uma contradição, mas uma antítese: duas posições em extremo contrárias. Lembro-me de que, nesta contingência de ser tão, tão combativo, me perguntava o que faria das minhas primeiras cordialidades, das minhas primevas afetividades: aquilo tudo estaria liquidado? A resposta para comigo mesmo era: “Não renuncie a isto. Conserve-o no fundo da alma para o dia em que for tratar com gente que mereça isto. Por ora, como você vive no meio dos jaguares, saiba ser jaguar com os jaguares, saiba lutar. E, portanto, força!”457 . *

Neste ponto, começa a época das provações contra a pureza, começa a época do choque com a Revolução. E vem o medo, a tentação da fuga, os instantes que não chamaria de desânimo, mas da falta de energia e de mobilização própria a quem tem de entrar na luta. De outro lado, a perspectiva da luta contra as pessoas de mentalidade revolucionária, e o esforço que isto ia exigir de mim eram tão enormes, que eu me via, de repente, não naquela espécie de paraíso de Cristo vivendo em todos, mas numa realidade que era como se o demônio vivesse em todos, exceção feita de muito poucas pessoas. E isto punha-me num dilema entre a necessidade de lutar e a preguiça de lutar. Sentia obrigado a me privar do deleitável, do contato amistoso, jovial e engraçado com os outros, das alegrias despreocupadas da minha infância, sentindo-me quase um moço velho e fanado pelas provações, pelos problemas, pelas reflexões. E isto na idade de 10, 11 anos. A minha posição “sesquipedal”, diferente da do mundo inteiro, era quase – a comparação é muito exagerada, mas vou dá-la – como de um maçarico que ia me devorando: “Eu me resolvo a isto?” O lado da consciência do mal, que no fundo era a voz da humildade, me dizia: – Veja, quando você de tal maneira se descarregava a si próprio, quanta razão você tinha. Veja bem quem você é”. Paralelamente vinha-me outro pensamento: – Se sou assim, não sou nem sequer digno de rezar a Ele, nem de levantar meus olhos a Ele, nem de me aproximar d’Ele. Ele me rejeita com um desprezo tão mais magnífico como magnífico Ele é. Se Ele não me rejeitasse, não o adoraria. Eu o adoro na rejeição que Ele faz de mim, e na punição que Ele eventualmente me dê, porque aí, nessa rejeição e nessa

457 Almoço EANS 15/9/88

punição, serei capaz de ver que Ele era quem eu pensava. Mas, de outro lado, como é que me arranjo nesse caso?” 458 . *

Na descrição daquilo que seria a história de minha vida interior, os senhores podem perceber bem o que foi. No meu caso, a grande provação, a grande tentação, a grande dificuldade e o grande auxílio de Nossa Senhora. Quais foram eles? Com toda clareza e sem nenhum subterfúgio, coloquei-me o seguinte problema: “Vejo tais e tais horizontes, tais e tais paraísos de inocência dentro de minha alma. E percebo que, diante disso não posso tomar uma posição ilógica, uma posição que não seja a aceitação completa ou a recusa completa. Não posso ficar no meio termo, porque terei uma vida que não é vida, chegarei a um fim que não é fim”. Colocado diante desse problema, em determinado momento verifiquei que tinha que adquirir uma virtude que me era, de todas, a mais difícil de adquirir, e para a qual o meu temperamento era o mais oposto, e que representava para mim o mais terrível sacrifício: a virtude da fortaleza. Compreendi que, ou assumia essa virtude até onde fosse capaz de assumir, ou não daria a volta no problema. Procurei então tomá-la numa proporção tal que, se não foi a maior que Nossa Senhora me pedia, foi bem maior do que a minha moleza nativa, minha covardia nativa, minha displicência nativa levariam a tomar. A manutenção da minha inocência e da minha integridade como contra-revolucionário dependeu disso. Vi claramente esse problema fundamental, sem rebuços e sem procurar disfarçar nada, nem ocultar nada. E compreendi também a opção total: ou totalmente sim, ou totalmente não. Totalmente não, não é opção que se apresente. Logo, tem que ser totalmente sim. Agora, para ser totalmente sim, ou é um sim que seja cada vez mais sim e que não concede nada, nada, nada ao não, ou degringolo completamente. E então me pus o problema de que era fraco demais para não ser sumamente forte. Quer dizer, se não fosse sumamente forte, por fraqueza, faria toda espécie de concessões. E era só me mantendo a anos luz do mal que me atraía, que seria capaz de resistir. Fora disso não haveria resistência possível. Ou era afundar no pior dos pantanais, ou entregar-me inteiramente ao mais alto dos ideais que via diante de mim. Não havia uma alternativa possível.

458 MNF 12/4/89

Santa Teresinha tinha um dito dessa natureza: “Sou fraca demais para não dar tudo”. Quando li esta frase em Santa Teresinha, vi que ela me interpretava completamente: “Ou dou tudo, mas tudo na linha do que é preciso dar, quer dizer, diferenciar-me dos outros, combatê-los, aceitar de levar a carga toda do ódio dos outros contra mim, levar uma vida de trabalho, de preocupação, de luta e de contrariedade continuamente; ou viro para o outro lado”. Quando nos livros de vida espiritual se diz que devemos fazer uma opção entre Deus e nós, e que devemos renunciar a nós mesmos para seguir a Deus, não se diz um erro, diz-se uma verdade. Mas essa verdade poderia ser expressa numa consideração muito mais requintada, pois tenho em mim, potencialmente, três “eus”. Um sou eu como “príncipe herdeiro”459 de mim mesmo. Outro sou eu entregando-me aos meus defeitos, nos quais acabarei sendo a caricatura de mim mesmo. E o terceiro é o eu do meu livre arbítrio, que escolhe entre os dois polos, ou que fica como um pêndulo entre os dois polos. O verdadeiro eu, que sou eu mesmo, é aquele em que sou a imagem e semelhança de Deus. O outro é um “eu” quase entre aspas, porque é minha caricatura, não sou eu. Há, portanto, uma escolha entre a minha autenticidade e a minha caricatura. E o fundo da escolha não é “Deus ou eu”, mas é “Deus e eu, ou a caricatura de mim mesmo”. A única felicidade durável e séria que o homem pode ter nesta vida é quando sente que ele é idêntico ao príncipe herdeiro de si próprio, e à imagem e semelhança de Deus. Aí ele tem o bem-estar da alma, tem o prumo, embora possa sofrer muito, como era o caso de Santa Teresinha, que sofria muito. Em última análise, a grande opção acaba sendo, em matéria de Revolução e de Contra-Revolução, a pessoa empinar-se completamente contra o meio em que está. Ainda que o meio seja muito bom, devemos ser tão bons que esse meio, ou melhora conosco, ou se sente distanciado de nós. Diante de todos esses problemas, percebi que havia um método na minha preguiça para o qual eu tendia, e que era de dizer “talvez”, “quem sabe”, facilitar, brincar com fogo, pôr-me em ocasião de perigo, até correr o risco de acabar poluindo minha mentalidade e, infelizmente também, o meu corpo, porque é para onde iria.

459 A metáfora “príncipe herdeiro de si mesmo” era empregada por Dr. Plinio no sentido de que cada pessoa deve desejar atingir nesta terra o grau de perfeição e o perfil moral para os quais Deus a destinou.

Pensei: “Preciso então adotar o método oposto. Se o demônio me chama pelo método das pequenas e cômodas concessões, ou erguerei diante de mim uma muralha implacável contra qualquer concessão, por menor que seja, ou estou perdido. A grande inimiga de minha alma é certamente a grande tentação. Mas é uma lorota se eu supuser que é só a grande tentação. É também o enxame das pequenas tentações e das pequenas condescendências. Portanto, ou eu, em cada pequena condescendência, pratico um pequeno ato de virtude de dizer “não” para a condescendência, ou não serei nada”. Neste ponto, o pequeno ato de virtude de todos os momentos pode valer tanto ou mais do que a reação contra uma furibunda tentação. Aliás, assim foram os tais pequenos atos de virtude de Santa Teresinha. Creio que, se ela não obtivesse as pequenas vitórias, ela não venceria as grandes460 .

No Colégio São Luís, os padres em geral eram muito moles e deixavam o mal se expandir ali à vontade. Eles não viam ou faziam de conta que não viam. E o mal podia falar mal do bem, podia caçoar do bem, podia fazer o que quisesse que eles não entravam na peleja461 . Ficava pensando: – Esses padres todos do Colégio são castos, são direitos, são querubins. Mas eles não percebem que os alunos deles são verdadeiros bandidos. Há certos alunos que só seguem a companhia do mal porque os padres não os apoiam na companhia do bem. Bastaria, pensava eu, um padre daqui fazer uma conferência sobre a castidade. Se ele fizesse uma conferência dessas por semana, ao cabo de cinco ou seis meses o colégio estaria mudado. Esses padres, continuava em meus pensamentos, são ingênuos, acreditam que não tratando do assunto eles não despertam oposições, e acham que dessa maneira os ruins ficam agradecidos e entram para o balaio deles. É uma ingenuidade, porque se agisse assim com meus colegas, ninguém me ficaria agradecido em nada; mas se, pelo contrário, eu desse umas boas pauladas neles, vejo que eles recuariam. Se todos juntos, todos aqui que amamos o bem, os bons padres e os alunos potencialmente bons, não tivessem respeito humano e fossem por

460 EVP 3/7/77 461 SD 13/11/93

cima do mal, o mal estaria derrotado. Portanto, a moleza e a candura dos bons que são responsáveis pela audácia dos maus. Então, é preciso ser combativo e é preciso servir-se da exibição do combate como arma de apostolado. É preciso ir mais adiante ainda: fazer compreender que o bom que não seja capaz de meter medo, é desprezado. E que o bom que mete medo, ele não é querido, porque o mal não quer bem ao bom, mas ele é respeitado. Consequência: o que o homem pode querer do outro na nossa época é ser respeitado, e por causa disso deve ter uma garra, uma estampa e um olhar que incutam respeito462 .

Quando apareceu, com grande entusiasmo para mim, o Padre Castro e Costa, ele falava muito a favor dos bons contra os maus. Os alunos maus que tinham vocabulário porco, que saíam do Colégio São Luís e que muitas vezes passavam em frente de casas de perdição eram numerosos. E ele falava contra isto, mas enchia de brasas a sala. E os que mantinham a castidade ficavam contentes, protegidos e amparados; eram poucos, eram uns três ou quatro na sala. Numa ocasião, um aluno do Colégio São Luís chamado Álvaro fez uma coisa que naquele tempo era considerada um verdadeiro escândalo. Combinado com o diretor espiritual dele, ele contou no colégio para todos que ia ser padre. Isto de um aluno querer ser padre era reputado a última coisa do feio, a última coisa do ridículo, porque era contra-revolucionária. Então, o Padre Costa contou: “O Álvaro vai ser padre. Os senhores têm obrigação de respeitar, não podem caçoar, ele tem o direito de ser o que ele deve. Ele não só quer ser padre, mas ele quer e deve ser padre, porque o sacerdócio é uma vocação, um chamado de Deus, e temos de fazer aquilo que Deus pede. Portanto, é preciso ser corajoso e ir. E ele teve essa coragem de dizer, para todos vocês que não concordam com ele, que ele vai ser padre. E aqueles de vocês que acharem ruim, que vão às favas. Se Deus o chamou, não são vocês que vão impedir a ele de fazer o que quer”. Tudo isto, para mim, era néctar, porque não tinha a intenção de ser padre, era muito definida em mim a ideia de ser leigo e de trabalhar como leigo na Contra-Revolução, a favor da Igreja, portanto. Mas de qualquer maneira via com muito agrado que outro quisesse ser padre, e via sobretudo com agrado um padre tomar a defesa do bem com esse calor.

462 MNF 17/11/94

Quando ele contou este fato, coincidiu com um período em que a minha inclinação para não travar a batalha contra-revolucionária – quer dizer, não falar, não brigar, não discutir, mas ficar como um Zé Bobo qualquer olhando para as coisas, e até ouvindo desaforos sem reagir –, era uma inclinação colossal e era um defeito muito grave. Agora, os senhores vejam como a graça se serve às vezes das coisas para reformar uma pessoa. O padre disse, ouvia aquilo tudo, eu estava gostando: – O Álvaro outro dia fez uma coisa que aprovo inteiramente, e se fizerem a mesma coisa com vocês, imitem o Álvaro. Ele disse que ia ser padre para um rapaz que perguntou já dando risada: ‘Álvaro, você vai ser padre? O que é que é isso?’ O Álvaro disse para ele: ‘Vou sim, e você o que é que tem com isso?’ Ele respondeu: ‘Tenho, porque você é meu colega e eu não quero que um colega meu tome uma atitude ridícula’. O Álvaro deu um passo para frente e disse: ‘Eu vou te ensinar’. Abriu o braço e meteu uma bofetada colossal nele. O outro, em vez de ficar furioso, ficou quietinho e nunca mais reagiu. Porque uma boa bofetada, dada na boa hora, torna moles os maus e torna fortes os fracos. Os senhores não podem fazer ideia do bem que esse casinho me fez. Eu entendi que deveria ser assim e tive uma reação no interior da minha alma que me levou energicamente a querer ser combativo. A partir desse momento é que comecei a ser uma pessoa combativa e enérgica. Veio da bofetada do Álvaro, contada pelo Padre Castro e Costa463 . *

Na São Paulo do meu tempo de moço, que já não era a São Paulinho do meu tempo de menino, mas ainda não era a São-Paulaça que está aí, havia ainda muita coisa de europeu autêntico, de gente vinda da Europa que abria aqui casas de doces, disto, daquilo, formando um comércio autenticamente estrangeiro. E havia algumas confeitarias e alguns restaurantes que eu frequentava com verdadeiro gosto. Então, por exemplo, íamos muito a um barzinho464 suíço-alemão, muito mais alemão do que suíço465, chamado Rütli, de donos suíços.

463 SD 13/11/93 464 CSN 23/5/92 465 MNF 28/3/91

Havia ali uma porção de coisas pitorescamente rudes, saborosamente rudes466: salsichas esplêndidas, pães pretos fabulosos, a que me entregava com delícias. E devo dizer que não percebia nada de mal nisso467 . Então, era uma boa comida, uma boa cadeira, uma boa bebida, e a gente sentia seu corpo bem tratado um pouquinho como no Céu Empíreo, servindo como ponto de partida para elucubrações da alma. O que pode haver de forte em uma porção de coisas da Europa, com toda a espécie de variantes, da Suíça para a Rússia, passando pela Alemanha, aquilo tudo me vinha ao espírito como a degustação de uma fortaleza ideal que seria muito diferente de um lugar onde tudo fosse mole, onde tudo fosse aprazível, fácil e com aquela moleza das coisas já em estado de deterioração, e que não me agradava absolutamente. Mas não me agradava por quê? Porque sentia a verdadeira necessidade de ter firmeza de princípios e de caráter. Se é verdade que hoje em dia, graças a Nossa Senhora, consegui essa firmeza, por alguns lados tinha o contrário disso. Eu era o arquétipo do mole, do pirão de batata, do “entregadão”, e sentia a necessidade de reagir contra isso. Ao admirar esses povos e esses valores, construía diante de mim a figura de um ideal de homem, que era o homem da civilização cristã. Eu poderia ir a um Catecismo e encontraria ali a confirmação de tudo quanto estava vendo nesse sentido. Para mim, isto era capital, porque se tratava de ser como a Igreja. Mas, de outro lado, encontrava ali também alguma coisa que atraía. E para mim o ponto importante era fazer penitência, mas fazer a penitência que consistia em procurar ser bom, ser como a Igreja quer que a pessoa seja, o que é uma rude penitência. Procurar ser seriamente direito, seriamente católico, seriamente bom, é rude, muito mais rude do que qualquer cilício! Porque, quando nos colocamos seriamente dentro dessa tarefa e a admiramos, temos entusiasmo por ela, desejamos fazê-la, somos obrigados a nos segurar a nós mesmos com mão de ferro. Portanto, tudo isto que poderia parecer para qualquer outro uma distração, para mim era uma vida espiritual. Teria exultado se eu tivesse encontrado um modelo de santo com esses problemas, e que eu visse preceder-me nessa escola, procurando elevar-se até onde a Igreja manda. Mas não conhecia.

466 CSN 23/5/92 467 MNF 28/3/91

As vidas de santos que havia, eram as que os senhores conhecem, ocultam o que possa aparecer na vida de um santo nesse sentido. Então, fazia de uma noite do Rütli, mas de quase tudo que via – o Rütli é um exemplo que estou dando para me tornar inteligível –, eu fazia uma noite de vida espiritual. Coisa que meu primo, por exemplo, não percebia, porque as cogitações dele eram outras e as vias também. Mas íamos tocando o barco. Algo filtrava do que eu pensava e ele gostava468 . *

Concomitantemente com os primeiros contatos que tive com o mal, estava patente que a luta iria marcar toda a minha vida. A fidelidade seria não apostatar, ser cada vez mais de Nosso Senhor Jesus Cristo, de Nossa Senhora, da Santa Igreja Católica Apostólica Romana, luz suprema de nossa vida, pátria e mestra de nossas almas, a ser seguida e obedecida sem nenhuma reserva, porque Ela é a Igreja verdadeira do único Deus verdadeiro. Entendi que, para ter coragem de lutar, era preciso compreender bem todo o valor da luta, toda a beleza da luta, toda a santidade da luta. Quanta dificuldade nisso! Quanta vidinha de santo apresentando incompletamente a fisionomia moral desse santo! E então apresentando um santo mole: “Fulano de tal entrou para o colégio. No tempo do colégio, ele levava uns pães e dava para os pobres que encontrava no caminho. Oh! santo menino”. Lia uma dessas histórias e pensava: “Se tivesse que obter de mamãe cem pães para distribuir para os pobres todos os dias, e não tivesse que sustentar essa minha luta, acabaria obtendo dela os cem pães. Porque é muito mais fácil chegar para um pobre, dar a ele um pão e ele me dizer: ‘Muito obrigado, que Deus o ajude’, e sairmos um sorrindo para o outro”. Isto é incomparavelmente mais fácil do que encontrar com um colega e ele me dizer: “Como é? Você ainda anda com aquelas suas ideias cabeludas e malucas?”, e eu ter de responder: “Não, cabeludo e maluco é você!” Então, começar a admirar a luta, a beleza do esforço, o ideal que nos leva ao próprio sacrifício e o esforço que o homem faz para fazer este sacrifício é uma coisa parecida com a sensação de um homem que passasse a vida inteira sem se mover e que de repente se move. Ele tem um alívio. É uma batalha andar, pode ser uma caceteação, pode ser um sacrifício, mas andou! Que alívio!

468 CSN 23/5/92

Lembro-me de uma revista que representava um sultão do Oriente levando uma vida mole, sentado em cima de uma almofada colossal, num terraço todo de mármore, olhando um panorama muito bonito e fumando um tubo chamado narguilé. Para os senhores verem qual é a miséria humana, lembro-me de que me pilhei olhando para aquele sultão e pensando: “Como é mais agradável ser este sultão do que ser Plinio Corrêa de Oliveira! Porque fica sentado, não faz nada, fica fumando, olhando para esse horizonte na vida mole. Como a vida mole é gostosa!” Aí pensei: “Não pode ser! Não é o que Nosso Senhor Jesus Cristo ensinou. Nosso Senhor Jesus Cristo ensinou a vida dura: expulsar do Templo os vendilhões, increpar os fariseus, correr toda espécie de riscos, acabar sendo arrastado para um abismo onde queriam jogá-lo, e na hora de cair no abismo, Ele passar por entre eles e retirar-se. Isto porque Ele era Deus. Eles não sabiam, não queriam acreditar, mas Ele era o Homem-Deus. Todo o mundo se reverenciou diante d’Ele, Ele passou tranquilo e foi para a frente. Mas a morte o esperava. Ele então lutou e morreu gloriosamente”. Então eu exclamava: “Ah! bom, eu compreendo, essa luta é uma verdadeira beleza”469 . Daí uma batalha em que compreendi uma coisa que não compreendia antes. Como me tinham formado com a ideia do menino bonzinho dentro de casa, compreendi que isto não bastava. Era preciso um menino que metesse medo e soubesse lutar. Então, segundo as necessidades da luta, fui adquirindo aquilo que deveria adquirir. Isto se acrescentou ao que já tinha, de maneira que fui me tornando um menino discutidor, polêmico, sabendo meter medo nos outros, sabendo me impor. Daí outro acréscimo, que é o de batalhador, tanto mais quanto a ideia da batalha, da guerra, tinha perdido o seu significado original de batalha pessoal, para tomar o aspecto de batalha pela cruz, pela Fé, pela religião. E, portanto, estava tudo feito para ir para a linha carolíngia, medieval. Bem, veio-me a certeza de que, ficando homem, teria que levar uma vida inteira de polêmica. Teria de começar a aprender, com aqueles que julgava mais dotados – ora era um padre, ora era um parente, ora era um político europeu cuja fisionomia moral via nas páginas de um jornal –, modos de fazer, modos de me apresentar, modos de ser que completassem isto.

469 SD 10/10/92

Assim, com o tempo, se formou o conjunto que está aqui diante dos senhores470 .

Depois, por revistas de história, tomei conhecimento das guerras de protestantes contra católicos. Os senhores não podem imaginar como fiquei entusiasmado com a reação católica! Aqueles protestantes encontraram diante de si uns católicos catolicões, da linha dura. O Duque de Alba, por exemplo. E a palavra guerra começou a me parecer cheia de beleza. A paz é bonita, contanto que não custe o seguinte sacrifício: nunca mais na vida haver guerra. Porque, para o homem é preciso haver guerra, como é preciso haver doença, como é preciso haver decepções. O homem está na terra para apanhar e para lutar, e se ele não apanha nem luta ele não vira homem. Tem que haver isto, custe o que custar. Mais ainda: este é o ponto alto da vida. É como um excursionista que quer subir uma montanha. Para ele, o ponto alto é o ponto do seu maior cansaço, é o ponto em que ele está mais escangalhado, mas é o ponto em que ele subiu até em cima e tem a montanha a seus pés: ele domina o horizonte. Assim é também a luta com a vitória. A vitória vem quando a pessoa está para dar os seus últimos haustos, mas Nossa Senhora lhe ajuda e ele dá os últimos passos, faz os últimos sacrifícios, os últimos arrojos confiando n’Ela. Em determinado momento, faz-se a serenidade em torno dele, o adversário desaparece e ele domina sozinho, obediente a Nossa Senhora471 . *

Muito cedo compreendi enlevado as ruínas da Cristandade. E compreendi que o meu porvir, aquele porvir em função do qual sacrificava o meu futuro, era um porvir de lutas. De lutas acérrimas, de lutas terríveis, em que devia me preparar para dar tudo quanto um homem pode imaginar que possa dar de si. Toda a renúncia, todo o empenho, todo o sacrifício, todo o tempo, toda a força de impacto, tudo o mais eu deveria dar.

470 Chá SRM 8/5/89 471 SD 10/10/92

Preparava-me para entrar na arena mítica na qual eu vivera até então, para afinal lutar. O campo de batalha era propriamente o polo magnético para onde a agulha de minha bússola apontava. Dentro da placidez do meu temperamento, tinha uma resolução firmíssima: “É isto. É preciso lutar! Como todos os exemplos da beleza da luta do passado que tinha me ficavam na memória, julgava que a luta era não só bela, mas era necessariamente bela. E que a vida do batalhador daria lugar, – quer derrotado ou vencedor; o importante era ser fiel aos verdadeiros ideais – a cenas lindíssimas, a episódios nobilíssimos, a cargas de agressões fenomenais472 .

O combate contra o romantismo e a impureza

Neste período tinha também outra coisa. É que em comparação com a Revolução, certas músicas e certas formas literárias do século XIX pareciam-me contra-revolucionárias. E levei algum tempo para perceber que elas, no fundo, eram revolucionárias também, se bem que de uma Revolução atrasada. Havia certos compositores que naquela época me diziam muito. Desde logo e sempre, mas com prolongamentos de condescendência até hoje – não de cumplicidade, mas de compreensão – Mozart. Eu não conhecia ainda Boccherini. Um lado ruim disso era que eu tinha certa admiração por Chopin. E via na “Polonaise triunfal” o lado heroico, que é o contrário do cinema hollywoodiano. Na marcha fúnebre eu via um hino de seriedade, o oposto dos funerais hollywoodianos. Certos trechos de Lamartine e de outros literatos franceses do século XIX me pareciam elevados, grandiloquentes e eu não percebia diretamente o que tinham de revolucionário. Posso afirmar que aí não havia conivência com a Revolução. Havia uma não-percepção. Por ingenuidade, via um lado que existia mesmo, e que, por contradição em relação às coisas modernas, era contra-revolucionário. Mas não via o lado revolucionário. Quando fui percebendo que eram ruins, fui deixando também. Confesso que até Verdi teve certa repercussão na minha alma. A marcha da Aída eu reputava o auge da Contra-Revolução. Eu tinha um gramofonezinho e comprei um disco com essa marcha, não só pela música, mas também pelo fato de ser feito de uma matéria vermelha. Por aí podem ver as cogitações infantis misturadas com muita inocência. Aquilo me encantava.

472 SD 11/6/83

Fico pasmo como todo mundo tinha paciência em casa com a minha música. Porque naquele gramofone se podia graduar a intensidade, e aqueles cantores italianos cantavam a plenos pulmões, e eu tocava aquilo a plenos pulmões, sem a mínima ideia sensual ou sentimental com relação a Aída; não havia nenhuma Aída no meu espírito, nem nada disso. Mas havia outra coisa que era a seguinte: aquilo me parecia grandiloquente, o grande drama do teatro. E imaginava a Scala de Milão repleta de gente, o rei, a rainha – a Itália era monarquia naquele tempo – assistindo à peça na loggia. E o ator e a atriz cantando a plenos pulmões e sustentando aquela espécie de desafio, de maneira a simbolizar a pompa social e monárquica, real, em termos culturais, no seu esplendor. Tinha a audição perfeitamente normal, portanto, não por carência de audição, mas por truculência, punha o gramofone no volume mais alto, pois eu queria aquilo. E aquela “Aída” enchia a casa. Não havia quem se lastimasse com aquilo. E depois eram duas, três, cinco vezes a “Aída”. Posteriormente fui percebendo que a coisa era outra. Enfim, tudo mudou e fui deixando essas coisas473 .

O problema do romantismo eu tive mais tarde. E foi em parte constituído em torno do problema da pureza – não tenho nenhuma vergonha de dizer, porque isto é assim com toda criatura humana –, e em parte constituído por literatura: romancinhos infantis de revistas francesas, fecundas e deliciosas no apresentar matérias como estas, não diretamente impuras, mas com qualquer coisa de sentimental que não convinha; romancinhos alemães também, e alguma literatura italiana que entrava pelo meio. Tudo isto junto criava uma atmosfera de romantismo. Essa atmosfera de romantismo começou a me tentar em pleno primeiro combate de Revolução e de Contra-Revolução que tive. E pude perceber que ela me amolecia, e que eu teria de desistir do combate da Contra-Revolução se quisesse embarcar por aí. Nossa Senhora ajudou-me então a optar pela varonilidade, pela admiração do heroísmo como meio de preservar-me do romantismo, o grande inimigo disso. Esses combates foram duros. Em primeiro lugar, porque sou truculento de natureza: aquilo que quero, quero muito. E, portanto, também as minhas apetências são violentas.

473 MNF 12/12/85

De nada disso tenho vergonha de afirmar. Teria plutôt vergonha de ser songamonga, não atraído por nada, nem frio nem quente. Poderia me perguntar: se eu fosse mais generoso, não teria extinguido essas lutas in limine,e elas não teriam apresentado menos perigo?Aí, sim, quando comparecer diante de Nossa Senhora, disso tenho medo. Mas, enfim, Ela que me perdoe. Mas o fato é que esta alternativa se pôs, e ela exigia de mim uma luta truculenta. Mais do que isto, ela exigia honestidade. Porque essas coisas todas existem nos desvãos da alma. É nos desvãos da alma que se aninham as semi-concessões sórdidas. Não digo sórdido apenas enquanto lúbrico, não é isto. Pode ser também isto, mas é sórdido enquanto concessivo, pouco honesto, comportando transigências com aquilo, a pessoa mente para si mesma. E aí entram os deleites. Por exemplo, para meu temperamento, ser compassivo é uma coisa deleitável. E ser combativo não é uma coisa deleitável. Não se diria. Mas ter pena, condoer-me com alguém e arranjar a situação de alguém me é delicioso. Pelo contrário, dizer “não” e estar na contingência de criar o sofrimento para outrem, e bater com o nariz na porta e sentir o sujeito gemer do outro lado, e manter-me nessa posição, isto é uma violência sobre mim. Mas a honestidade me obrigava a isto. Pois percebia que se eu cedesse a uma compassividade contrária aos princípios, eu me deixaria levar. Mais ainda. Se, ao ceder a uma compassividade conforme aos princípios – o que é sempre louvável e às vezes obrigatório – eu me deleitasse no gosto dessa compassividade, ficaria desarmado e acabaria sendo compassivo contra os princípios. De maneira que, fazendo o ato de bondade, não levava em relação ao indivíduo que beneficiei a efusão de minha bondade tão longe quanto estaria no meu modo de ser. Quase que ocultava a efusão de minha bondade para com ele, na hora mesma em que estava sendo bom, de medo de mim mesmo. Muitas vezes passo por ruim em razão disso, porque as pessoas não percebem o que vem de efusão atrás de minha atitude, no sentido contrário. Agora, isto exige uma honestidade para cada caso concreto que não é fácil474 .

474 CM 19/1/86

Está na natureza do homem concebido no pecado original que o problema da pureza comece para todo mundo e se ponha para todo mundo. Evidentemente, como já disse, se pôs para mim também. Esse problema tem isto de terrível: na alma da pessoa mole, a impureza amplia todas as molezas a um grau inimaginável. Todas as molezas são cúmplices dela. A fortaleza luta a favor da pureza, como reciprocamente a pureza luta a favor da fortaleza. Nossa Senhora me deu a graça de entender bem como a impureza era o contrário de todas as coisas adamantinas que tinha visto desde pequeno, e como ela era a inimiga frontal a ser combatida, mas combatida mais uma vez com a imolação da moleza. Preservar a pureza e mantê-la é uma luta. Sobretudo em certa idade, é uma batalha. É uma batalha sobre os sentidos, mas é uma batalha em torno da previdência também. Devemos expulsar, devemos enxotar a falta de vontade de ser previdente, de perceber, de ser consequente, de ser lógico, de evitar as ocasiões mesmo as mais remotas, os estados de espírito mais remotamente contíguos à impureza. Era favorecido por um senso da pureza muito grande, portanto também por um senso muito agudo da ignomínia que havia na impureza. Mas o apelo para a impureza era um apelo enorme475 . Não me foi fácil preservar a minha virgindade. Não que eu tivesse muitas seduções externas. Até poucas, porque Nossa Senhora sempre me favoreceu, de tal maneira que nunca fui objeto de grandes assaltos do sexo feminino. Mesmo em ônibus, em trens, em viagens, em hotéis, essas coisas todas, até eu fazer 20 anos, no longo período em que eu não era congregado mariano, e que estava exposto como um outro qualquer, frequentava os ambientes como um outro qualquer, elas sempre se mantiveram à distância. Mas uma coisa é o que vem de fora para dentro, outra coisa é a que vem de dentro para fora. Mais ou menos entre os 10 e 13 anos, a batalha foi enorme. Naturalmente, entrava o demônio e a maldade da carne deteriorada pelo pecado original476 .

475 CSN 24/4/82 476 CSN 22/1/83

Já comentei atrás com quanta severidade me examino e julgo-me a mim mesmo. Uma das razões disto é o medo de que me escape alguma coisa que acabe me pondo no inferno. Não falo a toda hora disso, mas isto ocupa um grande papel no meu horizonte mental. Se na minha crise de adolescência resolvi permanecer na castidade, foi por medo do inferno. O amor de Deus se somou depois a isso, mas o pavor do inferno foi o que me moveu nessa circunstância. O temor obriga-nos a deixar de lado algumas coisas opostas ao amor. Removido o obstáculo, o amor então se evola477 . *

O grande fator que me reteve na pureza foi perceber que, cedendo à impureza, teria de largar determinados valores de alma. Era, no fundo, a inocência que eu não queria de nenhum modo perder. Isto de um lado. De outro lado, sabia que era pecado contra o sexto Mandamento. No meu tempo, os padres ainda ensinavam o sexto Mandamento em toda a sua integridade. De maneira que estava vendo bem claramente como eram as coisas. Nossa Senhora me deu como graça, de início, como já disse, a resolução firme, porém não heroica, de resistir, custasse o que custasse. E, por causa disso, adotei o “agere contra” de Santo Inácio de Loyola, pelo qual procurava ver até o fim o mal que me atraía. E então fiz a análise interna de tudo quanto era tendência velada para a sensualidade, a qual depois levava para a sensualidade não velada. Tratava-se, pois, de desbastar tudo isso e não fazer concessão nenhuma, e manter-me, portanto, à margem de toda concessão478 . *

Quando comecei a ser solicitado pela impureza, notei que um dos preços que pagaria pelo prazer impuro seria a perda da paz. A razão determinante para não ceder à tentação foi evidentemente o Mandamento: “Deus proibiu e eu não quero”, apoiado logo de perto pela noção de que, pelo prosaísmo que cercava o ato, eu imergiria no prosaico caso caísse na impureza e a achasse normal.

477 Jantar EANS 26/2/91 478 CSN 22/1/83

Entretanto, numa linha menor, ajudou-me muito na batalha da pureza a ideia de que iria perder essa paz. E para ajudar-me a mim mesmo na virtude da pureza, fiz o inventário de todas as delícias da virtude. Isto a pessoa não deve deixar nunca. Não há ocasião em que me deite na cama sem que não tenha a preocupação de fruir o prazer inocente de estar deitado e de ter o repouso. É uma categoria do espírito o fruir as castas alegrias inocentes. São os prazeres da inocência primeva. Os que pretendem gozar a vida pensam que o deleite da vida está só nos prazeres sofisticados. É um engano. Ou o indivíduo é inteiramente aberto a gostar intensamente dos prazeres simples e elementares, ou ele não compreenderá os prazeres requintados, os quais vão sendo conhecidos só ao longo da vida. Quando somos pequenos, não se é muito sensível a eles. Ao longo da vida, não deve haver uma ruptura, deve haver uma soma: a criança, nas suas horas, deve gostar muito dos prazeres simples anteriores, mas o tempo do lazer vai sendo tomado pelos prazeres novos, como por exemplo – estou descrevendo o meu itinerário – o da entrada da História e dos personagens míticos. Então é toda a história europeia, a vida de corte, a vida dos santos. Aí entra um desejo de maravilhoso, mas muito mais aculturado do que o do soldadinho de chumbo. Entra depois o descobrimento da lógica e o encanto pela lógica. E então me lembro das minhas alegrias diante do silogismo. Engendrar um raciocínio e dizer: “Eu agora, com isto, laço o outro, que coisa magnífica!” A minha deleitação diante da lógica era o prolongamento da degustação do prazer inocente que tinha, deleitando-me por exemplo diante do sorvete. São reversibilidades. Para mim, o prazer simples e primeiro nessa ordem de coisas era a felicidade religiosa que sentia vendo, por exemplo, mamãe rezar ao Sagrado Coração de Jesus em casa. Também a felicidade de olhar para dois ou três santinhos que eu tinha da minha Primeira Comunhão, e que eu havia pregado na parede. Eram impressões primeiras, mas ricas, cheias de elementos especificamente religiosos. Em um segundo momento, veio-me a alegria de perceber que aquelas impressões não vinham só na hora de rezar, mas era uma felicidade que se estendia à consonância daquilo com tudo quanto na ordem temporal, portanto na minha vida concreta, eu gostava. E quando gostava, era porque, em última análise, aquilo se rattachait, ligava-se às impressões religiosas do Coração de Jesus. Isto se dava também quando eu não gostava de certas coisas, por terem, no fundo, uma incompatibilidade com o Coração de Jesus.

Veio-me então a ideia de sociedade temporal católica, de civilização católica; também de coisas que aceito, de coisas que rejeito e contra as quais luto, estabelecendo uma escolha do meu universo. Tinha nisto uma felicidade enorme, um bem-estar enorme, mas com suas horas de tranquilidade, com suas horas de sorvete, tudo somado e formando um todo que até hoje não abandonei. Daí também vinha a consolação espiritual. E na consolação espiritual, o auge de felicidade da minha vida. Porque nada se compara à consolação espiritual. É a felicidade por excelência, porque é o antegozo mais próximo do Céu. Não pensem com isto que eu nado em consolações, nem que tenha estados místicos. Tive algumas consolações espirituais, guardo delas uma memória atenta e muito analítica: quanto mais a analisava, mais me deleitava. Se não tivesse a esperança de que ainda em vida isso voltará, não teria coragem de viver. Se tivesse a sensação ou convicção de que já cumpri o que Nossa Senhora pode querer de mim, também não teria coragem de viver. Pediria para morrer e entrar na presença de Deus, de Nossa Senhora e no mundo dessas consolações. Porque, no Céu, não é a mera consolação. É algo como se fosse o contato com Deus misturado com a alegria: não se distinguem no caso479 .

Uma coisa que passei a notar, sobretudo naqueles que eram impuros, foi uma espécie de impossibilidade de levar a vida como eu entendia que ela devia ser levada. E aí a observação começava a ter certo sentido e a minha descompostura contra a impureza começava a tomar figura. E então com razão. Assim, de uma posição inicial infantil, partiu uma crítica razoável. Não havia menino impuro tranquilo. Quanto mais era impuro, mais era agitado, mais era frenético, mais se dava a correrias de um lado para outro, batia com os pés, se movia continuamente, não se sentava, não parava nunca e não refletia nunca. Estava continuamente brincando ou mexendo com os outros, e continuamente fazendo agitação em torno de si. Ele tinha pavor da solidão e daquela serenidade de que eu tanto gostava. Ele não a compreendia. Aquilo para ele seria um necrotério. Ora, se é legítimo gostar tanto das coisas de que eu gostava, não é legítimo não ter nada disso na própria vida. E percebia que a impureza

479 MNF 11/5/84

expulsava isto completamente da vida, da mentalidade, dos espaços temperamentais do menino; e destramelava completamente aquele menino, de maneira tal que era a fonte da desordem dele. E aí a minha crítica, que no ponto de partida era subjetiva, passou a tomar um ar objetivo. Prestava atenção num ou noutro menino puro que conhecia e notava a sua continuidade de temperamento. Não estavam sujeitos a, em certo dia, ficar numa “alta” muito grandee noutro dia numa “baixa” exagerada, mas estavam normalmente como deveriam ser. Pelo contrário, os meninos impuros – já aos 10, 11 anos! – em geral estavam sujeitos a umas “altas” e a umas alegrias delirantes. E quando se sentiam sozinhos, caíam imediatamente na tristeza. A impureza tinha horror à solidão. E isso tudo me chamava a atenção. A impureza tinha também horror à reflexão. Os meninos impuros eram irrefletidos, não tratavam de coisa séria nunca. Quando não estavam em correrias, faziam bobagens como coleção de fotografias de artistas de cinema e de quanta porcaria há. Eles não tinham sossego. E percebia-se neles uma consciência desassossegada. Quando acordavam, pulavam da cama e já começavam a se mover. Quer dizer, não tinham esses estados de transições graduadas, em que se passa por cada patamar sem excessos, nobremente, delicadamente. Não havia entre eles o conceito de amizade, quer dizer, essa nobre posição de alma por onde se conhece alguém e se tem uma afinidade de espírito a propósito de uma coisa mais alta, de um ideal mais alto. Entre eles, as amizades se faziam e se desfaziam ao léu, não tinham absolutamente consistência alguma. Nem eram amizades, eram hábitos de um estar com outro, está acabado. Desde logo percebi também que os impuros eram sujos. Eles rolavam pelo chão, misturavam-se com a poeira, sujavam os dedos, não se lavavam. O senso da limpeza desaparecia ou minguava com a impureza. E mesmo quando se tratava de um menino de muito boa família, bem-educado, e ao qual era, portanto, vedado fazer certas coisas prosaicas, ele as fazia de boa vontade, achando agradável, achando uma variedade fazer isso. A impureza, portanto, dominava todo o horizonte deles, e eles não tinham interesse por mais nada. Por causa da precocidade sexual dos tropicais, a impureza se tornava uma monomania, e tudo quanto não fosse impureza passava para eles a ser monótono na vida. Ia percebendo que essa impureza os modelava erradamente em tudo, e os tornava tortos em tudo. Tudo neles indicava um frenesi, um desregulamento inteiro do ser, com uma hipertrofia das preocupações físicas e um subdesenvolvimento das coisas mentais. E uma completa ausência de sentimento para tudo quanto não fosse imoralidade.

Essas coisas estavam tão ao contrário do que entendia que a vida devia ser, que compreendi que a impureza trazia consigo a desordem moral. E que, conferindo certo prazer de momento, esparramava a agitação e o infortúnio na vida inteira. Compreendi também que a impureza era um incêndio. E que se quisesse conservar aquela bela e nobre placidez a que estava habituado, era uma razão a mais para eu me manter puro e deitar todo o empenho para ter a pureza na minha vida. Ficando um pouco mais velho, não tardou que começassem a cair na minha mão revistas contando historietas amorosas. Lia essas historietas, que não eram pornográficas. A pornografia era raríssima. Nunca tive em mãos uma revista pornográfica em minha vida. Essas revistas tinham contos em que o assunto amoroso entrava pelo meio. E não tardei a perceber que aquilo era uma coisa que tirava completamente a serenidade da vida, a tranquilidade da vida, a felicidade de situação. Era um X que passava a gostar de uma Y, e ele então ficava monomaníaco: só queria ouvir falar dela, correr atrás dela o dia inteiro. Então, só se interessava em ter fotografias dela, em conversar com ela, passar pela casa dela. E depois em pensar coisas assim: “Estará ela gostando de um outro? Vou perdê-la? Não vou perdê-la? Como é que fica?” O romance podia dar em casamento, mas se não desse em casamento, dava na mesma tendência de querer se satisfazer sem casamento. E pensava: “Como é esse negócio? Não há um só caso desses que não dê num sofrimento medonho para um dos dois lados. Vale a pena sofrer tudo isso? Vou examinar as pessoas casadas: esses estão casados porque se gostaram assim no começo, mas no que é que deu?” Notava que o efeito disso sobre meus companheiros de idade era, de duas, uma: – ou dava num amolecimento medonho, e então ficavam preguiçosos, lerdos, moles, pensando o tempo inteiro em coisas desse gênero; e, portanto, incapazes de estudar, de refletir, de fazer qualquer outra coisa; – ou, pelo contrário, ficavam frenéticos para ganhar dinheiro, porque viam que, se ganhassem dinheiro, teriam meios de se impor. Então eram acometidos por um desses frenesis: compram bicicleta, vendem bicicleta para comprar motocicleta, vendem isso para depois comprar aquilo. Desde muito cedo notei que todas as coisas nobres que o indivíduo ia adquirindo com a idade – por exemplo as boas maneiras –, não colavam no fundo da alma da pessoa que tinha se entregue à impureza. Todos os hábitos da civilização cristã dentro da qual ele estava encaixado, e da qual ele tinha muitas vezes esplêndidas aparências – muito bem educado, muito

bem vestido, muito agradável, possuidor de certa cultura – tudo isto era uma aparência, porque de fato ele estava corroído no fundo. Assim, essas suas maneiras externas que poderiam corresponder às que ele teria tido em menino se tivesse sido puro, dentro da alma dele a impureza tinha feito uma devastação pior, que se exprime no seguinte: o homem impuro é incapaz de princípios. Princípios, o homem impuro não tem, lógica de ferro ele não tem. A impureza corrói a capacidade mental de ter princípios. Quer dizer, o menino agitado tinha sido lixado e envernizado pelas exigências sociais, mas ele ficava pobre e vazio como era em menino. Assim era o mocinho e assim depois era o homem. A cada geração, certifiquei-me de que o caruncho era mais fundo, e aquelas aparências de beleza eram mais débeis; e haveria um momento em que tudo não seria senão caruncho480 . *

No período de minha vida de adolescente, em que tive muita dificuldade em matéria de pureza481, na defesa da minha tranquilidade era muito previdente e dizia: “Afinal de contas, é para mim muito mais agradável levar uma vida plácida, sossegada, em vez de me meter nessas mixórdias todas da impureza. É uma batalha vencer a impureza, é verdade. Não vale a pena? Parafraseando a expressão francesa, “le jeu en vaut la chandelle” – o jogo vale a vela. Vamos fazer o jogo”. Não era esta a razão determinante, mas isto me ajudava. A razão da opção era o Mandamento e o amor inocente à virtude. Mas para consolar a parte do homem que chora aquilo que deseja ter e não tem, serviu muito a experiência própria de todo o sossego que tinha na época da inocência e de toda a agitação trazida pelo deleite proibido. O sossego do homem puro é uma coisa que não se compara com coisa alguma. E esse gosto pelo sossego é ordenado. Observava bem os meus colegas: todos já tinham namoradas, mas levavam uma vida de cachorro, porque os protocolos do namoro ya en aquel entonces, naquela quadra, eram complicados. O sujeito tinha que passar 20 vezes de automóvel diante da casa da Dulcineia dele, e bater a buzina. Ela então aparecia na janela.

480 SD 10/12/83 481 MNF 17/3/95

Mas acontecia que, às vezes, ela não estava, e ele ficava rodando ali de automóvel. E enquanto não tivesse visto a namorada duas, três vezes por dia, ele se punha aflito. Em certas ocasiões, ele encostava o automóvel e ficava passando naquela calçada a pé. Então a moça aparecia um pouco no terraço, cumprimentava fingindo surpresa, ele também fingia surpresa, e depois ela voltava para dentro. Dizia eu: “Estou aqui em casa bem sentado, com sombra e água fresca. E agora, ficar batendo perna em frente da casa da Fulana? Automóvel nem tenho! Não posso fazer isto de taxi. Também fazer o papel de bobo: anda, anda, anda… e aquela boba não vem. Não! Vamos tocar isto de outro jeito”482 . Rezava então a Nossa Senhora. Não preciso dizer que Ela sempre me socorreu maternalmente, até que em certo momento, pela graça d’Ela, aquele vagalhão de tentações foi empurrado de lado. E comecei a gozar a vida calma e sem tentações. E me lembro de fazer este raciocínio: “Agora que estou na pureza absoluta, percebo como sou mais feliz do que imaginava ter felicidade com o ato” 483 . Por aqui se entende bem que a castidade é, a seu modo, o prazer supremo da vida. O homem casto tem aquela desnecessidade de outrem para encontrar o seu próprio equilíbrio. E tem aquele bastar-se a si próprio sem “torcidas” nem dependências, nem anseios, nem sonhos, pelo qual lhe é frequente na vida de todos os dias estar em horas em que ele pode isolar-se e fruir do seu próprio ser, independente de quem quer que seja. Se eu devesse enumerar as graças recebidas outrora, esta seria uma que deveria incluir na enumeração com especial gratidão484 . As duas escolas podiam se diferenciar neste ponto: a escola da pureza trazendo consigo todas as formas de tranquilidade; e a escola da felicidade impura chegando até à droga. Formavam duas vertentes. Dizer que para obter essa calma não lutei, não é exato. Tive tentações de ceder para entrar na civilização da “torcida” e do nervosismo. Mas a apetência da “torcida” e do nervosismo nunca fez parte das coisas que pudessem me atrair.

482 CSN 2/2/85 483 MNF 17/3/95 484 MNF 25/9/86

This article is from: