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O combate para preservar o modo de ser cerimonioso, fazer-se respeitar e obter uma situação de superioridade

perfeitamente que, se não incorporasse esse gosto a mim, eu não seria nada junto aos meus colegas, e isto acarretaria uma capitis diminutio e um começo de exílio para mim. Qual é o pecado que haveria nisto? A rigor, nenhum, porque nenhum padre me disse que isto fosse pecado. Nunca ouvi um padre falar contra o efeito do automóvel. Pelo contrário, eles usavam euforicamente o automóvel, sem estranheza nenhuma. Vinha-me à lembrança, entretanto, os papéis de parede franceses, ilustrados com medalhões e laços de fita. E fazia o seguinte raciocínio: “Não venderei isso por preço nenhum! Ficarei filho dos medalhões e das coisas francesas vistas assim, e não me adaptarei à máquina. Não sei que futuro isto me trará; não vejo que seja pecado, mas meu dever é agir assim”. E isto acontecia com um menino de 5 anos! Todos nós fizemos opções dessas. Os senhores passaram por coisas dessas. Conscientizaram ou não conscientizaram, lembraram-se ou não se lembraram, fizeram ou não fizeram, isso pouco importa441 .

O combate para preservar o modo de ser cerimonioso, fazer-se respeitar e obter uma situação de superioridade

Isso tudo levou a que meu modo de ser entrasse numa colisão violenta com o modo de ser daqueles que esperavam encontrar em mim uma ocasião para um convívio igualitário e apalhaçado. Encontravam da minha parte, pelo contrário, uma recusa e uma compunção a agir de acordo com o que eles queriam. E então vinha da parte deles uma recusa da grandeza, porque a grandeza instituía condições de convívio que eles recusavam. A grandeza era o contrário de tudo isso. A grandeza é a seriedade, a grandeza é o pouco riso, a grandeza é a reflexão, a grandeza é a desconfiança, a grandeza é o esforço. A grandeza não é só isso, mas traz necessariamente isto. E quem não quiser essas coisas, não tem grandeza, não sabe admirá-la, nem sabe viver com ela. Eu fazia uma espécie de sofisma com eles. Não era um sofisma oral, era um sofisma tendencial que consistia no seguinte. Eles apresentavam a grandeza como carrancuda. E eu procurava ser muito amável, mas de longe e de cima. Eu cumpria todas as antigas regras de educação, de maneira tal que o cumprimento dessas regras tinha aspectos de amabilidade. E eles, portanto,

441 CM 11/11/84

não podiam se queixar do meu trato. Mas com isso os obrigava a respeitar as regras. Lembro-me, por exemplo, de um rapaz que convidei para jantar em casa. Estava na mesa perto dele e lhe disse: “Fulano, você queria me fazer o favor de passar o sal?” Quando ele me passou o sal, eu disse: “Muito obrigado”. Ele me sussurrou à meia voz, para os mais velhos não ouvirem: “É preciso tantas fórmulas para obter um saleiro?” Fingi que não ouvi. Ele ficou em casa até tarde. E no resto do contato todo, as mesmas fórmulas. Resultado: ele não podia deixar de dizer que fui amabilíssimo com ele, e de sentir-se meio agradado com essa amabilidade, porque toda amabilidade agrada. Mas, por outro lado, ele se sentia mal à vontade. Era o jeito que eu tinha de sair do embrulhado da situação. *

Outra coisa era a atitude que eu tomava, como quem diz: “Se for vítima de uma agressão, pode ser que não leve a melhor, mas te quebro também! Pode ser que você me quebre mais do que eu a você, mas sai um caso em que te cai o mundo em cima da cabeça, porque você tem que me fazer tais e tantas para levar a melhor sobre mim, que disso sai uma encrenca grossa. Mas me entregar, não me entrego!” Isto, que efeito produzia? Um afastamento cordial, como quem diz: “Vou ficar longe dele, porque gosto de brincadeira abrutalhada, ele não gosta. Gosto das micagens, das graças e das imoralidades, ele não gosta. Gosto de um trato a maneira de potro, e ele conversa sobre temas sérios. Gosto de dizer palavrão e ele não gosta. Então vou me manter à distância dele, mas serei amável sem criar caso”. E assim aconteceu com um indivíduo que navegava contra a corrente, mas que a corrente não conseguiu levar para onde queria e seguiu o itinerário dele. À medida que fui ficando mais velho, essas coisas foram tomando mais corpo, naturalmente. Uma coisa é um menino de 10 anos, outra é um adolescente de 15 anos. Mas a réplica deles era sempre a mesma. Assim, acabei desenvolvendo uma arte que eu não tinha em menino, e que foi a arte de conversar. A boa conversa sempre atrai alguém. Os homens não são tão, tão asnáticos que, encontrando alguém que converse bem, não encontre alguma pessoa que queira conversar com ele.

Tudo isso criou uma espécie de fato consumado, pelo qual era melhor não brigar comigo, mas também não aplaudir. Lembro-me de que, quando Luís XVI voltou de Varennes naquela fuga trágica, tinham escrito no caminho dele: “Quem aplaudir o rei ou vaiá-lo, será morto”. É uma regra da Revolução em relação àqueles cujo sucesso ela teme. Se for vaiar põem em realce. Se for aplaudir põem em realce. Deixe passar. Aliás, é uma regra bem pensada, como jogo acho bem jogado442 . *

É verdade que, em moço, meus contemporâneos tinham certa complacência para comigo, certo gostar de mim por alguns lados, certo gosto de estar comigo. Não era um gosto extraordinário, era um gosto comum. Mas também é verdade que eles sentiam muita repulsa. O resultado é que me procuravam pouco e não abriram muito o campo para muita camaradagem, e eu sentia o isolamento. O que é natural, pois se crio um ambiente onde sei que eles não gostam de estar, não posso esperar outra coisa senão o isolamento. Ao menos eu obtinha o que queria: era o isolamento com consideração, e a partir da consideração, a possibilidade de influenciar. Sabia que minha presença na sala de aula, por exemplo, ou no recreio, destoava de todo o resto. Mas não dava pretexto para organizarem uma caçada contra mim. E assim eu me punha de cima e ganhava alguns passos contra o adversário. E era só isto que, naqueles verdes anos, eu poderia ganhar. Mas isso eu fazia metodicamente, com os cuidados, digamos assim, de uma psy-war. Por exemplo, uma coisa que ninguém mais fazia no meu tempo era, quando um colega ia passar pela mesma porta, fazer um sinal para ele passar na frente. Isto punha um frio no trato. Mas um frio que me deixava numa condição menos péssima do que eu poderia ficar se não fizesse isto. Mas, aos poucos, fui criando em torno de mim uma situação que, como era o único com quem se tinha cerimônia, isto revertia numa espécie de superioridade quando precisavam de algum favor meu. Porque, na hora do favor, ou eles iam de chapéu na mão, ou não obtinham o que queriam. Então, a situação de inferioridade foi revertendo lentamente para uma situação de superioridade443 .

442 Chá SB 6/5/80 443 Chá SB 16/7/80

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