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As primeiras noções da própria miséria
from Meu Itinerário Espiritual - Compilação de relatos autobiográficos de Plinio Corrêa de Oliveira vol 1
by Nestor
A companhia dos outros tende a levar para a superficialidade, e o melhor interlocutor que há para o homem é o isolamento453 .
As primeiras noções da própria miséria
Eu me dizia interiormente: – “Plinio, preste atenção! Você é objeto dessa graça, é trabalhado por essa graça. Você ama e estima tanto essa graça, e está perfeitamente bem. Mas você, que tem 12 anos, já sente as garras dos seus defeitos, já sente as resistências que você opõe a essa graça. Essas suas resistências resultam de alguma coisa de fundamentalmente má em você, e que te procura separar disso. Essas coisas lhe fazem bem, mas vêm até você de fora para dentro. Você é ruim, e não é digno de nada disso. Dê graças de que, apesar de você ser ruim assim, por uma ‘sorte’ – vejam o que a palavra “sorte” tem de pagão –, Nosso Senhor Jesus Cristo permitiu tudo isso para você. E o que lhe compete é ter um sentimento profundo de sua maldade e de sua indignidade. Você deve compreender que oscular a porta por amor à soleira da porta é uma honra imerecida, porque você não é digno de oscular nem essa soleira”. Quando eu fazia essas considerações, sentia em mim um efeito curioso: sentia Nosso Senhor muito mais distante de mim, mas atuando mais profundamente em mim. Depois soube que esse ato era de humildade. Não sabia que isso era humildade. Então carregava o meu ato de humildade com toda a minha força, por me sentir mais perto d’Ele por causa disso. O objetivo era, portanto, me sentir mais perto d’Ele. Eu entendia de um modo muito confuso que, se bocejasse em cima dessa indignidade e dissesse: “É verdade, mas Ele me admite. E, portanto, vamos passar por cima de todas essas considerações; se ficar pensando muito nisto, Ele de repente se dá conta de que isso é assim mesmo e me expulsa”, eu no fundo pretenderia fraudá-lo. Se eu o fizesse, começaria a apagar a fé católica na minha alma. Tomei então como princípio de conduta o seguinte: quanto mais, em meu espírito, martelar na consideração dessa indignidade, quanto mais a tiver em vista, mais estarei próximo d’Ele. Então, a martelarei até me arrebentar! À vista disso, adquiri, por exemplo, o hábito de oscular as imagens apenas nos pés, por considerar-me nem digno disso, dada essa radical maldade existente em mim, e que me tornava objeto explicável da repulsa divina.
453 Chá SRM 8/3/92
Tendo como fundo de quadro essas considerações, então me sentia mais unido a Ele, e nunca com vontade de fugir. O que estava em minha mente é que só Ele tinha palavras de vida eterna. E que, portanto, era preciso estar com Ele. Não saberia viver a não ser assim454 .
Junto com a percepção de Nosso Senhor enquanto foco das coisas mais altas e mais elevadas, veio outra coisa que julgo ter sido uma graça de Nossa Senhora também, mas inteiramente oposta a isso: foi a sensação da minha própria miséria. Quer dizer, sentia perfeitamente minha pecabilidade, e como tinha tendências mudas, quietas, que a qualquer momento podiam tomar vida, virar monstros e me levar para o oposto disso. Era uma miséria já de início, na sua raiz meio congênita, que me colocava a dois passos de ser réu de qualquer castigo, e um castigo esmagador. E que me punha na obrigação de me colocar diante de Deus numa posição de humildade completa. Ele tinha muita misericórdia em tolerar que eu existisse, muita misericórdia em me ajudar para ir seguindo meu caminho. Ele, portanto, tinha o direito de fazer de mim absolutamente o que Ele quisesse. Não tinha o direito à menor reclamação. Pelo contrário, devia tomar aquilo como natural. Eu podia pedir que não acontecesse: “Vejo que não é bom que aconteça, e peço para não acontecer”. Mas eu tomava como inteiramente natural que pudesse me acontecer. Lembro-me de que havia naquele tempo uns livrinhos para crianças, muito ilustrados, mas que não tinham nada que ver com a literatura infantil de hoje. Eram editados por uma editora Weissflog (Companhia Melhoramentos de São Paulo), que tinha, no caminho que é hoje a rodovia Bandeirantes, pinheirais que não acabavam mais, e que eram destinados a fazer celulose para o papel que se usava na impressão de seus próprios livros. Em um desses livros havia a história de uma criança que morreu e que saía do quarto levada pelo anjo, e que voava em cima da cidadezinha onde tinha nascido. E a criança, nos braços do anjo, via o cachorrinho do vizinho, via o carrinho do padeiro, via a árvore onde brincava, via todas as coisas da vida das quais ia se destacando.
454 MNF 12/4/89