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Equilíbrio temperamental resultante da temperança e do gosto pelos opostos harmônicos e pela unidade dentro da variedade
from Meu Itinerário Espiritual - Compilação de relatos autobiográficos de Plinio Corrêa de Oliveira vol 1
by Nestor
Equilíbrio temperamental resultante da temperança e do gosto pelos opostos harmônicos e pela unidade dentro da variedade
Entre uma coisa bem ordenada e outra bem ordenada, há uma afinidade muito grande, embora haja também diferenças. Por exemplo, a luz de uma vela e a luz de um farol são coisas muito distintas, mas há muita afinidade entre uma coisa e outra. Essa afinidade percebemos sobretudo ao fazer a comparação da luz com as trevas. Assim também com os indivíduos: o que há de ordenado no temperamento de um deve servir de exemplo para o que há de ordenado ou de ordenável no temperamento de outro, embora guardando cada um as peculiaridades provenientes de sua constituição física118 . Todo jovem contemporâneo tem uma dificuldade parecida com a de um homem que tivesse uma perna muito mais curta do que a outra. Ele está em pé e se apoia em uma das pernas, mas não sabe como apoiar a outra para ter o equilíbrio necessário. De modo análogo, temperamentalmente falando, ele tem dificuldade de encontrar o ponto de equilíbrio, o ponto de estabilidade, o ponto em que ele sente que está mesmo na posse da verdade, a qual poderia lhe dar a convicção de que está com o pé no chão. Assim, cada um tende a mancar de um lado. E quereria de mim uma atitude temperamental que o ajudasse a manter-se firme no pé que é curto. Em mim não houve tendência para mancar de um lado. Graças a Nossa Senhora, sempre tive muito equilíbrio. Embora muito mole por defeito, entendia perfeitamente que não se deve ser mole e tinha vergonha de ser mole. Tinha o plano platônico, genérico de um dia deixar de ser mole. Lembro-me de que, desde pequeno, tudo quanto era sem equilíbrio me desagradava. Aliás, conheci gente extraordinariamente equilibrada. Há uma ordem criada por Deus pela qual o universo apresenta o suficiente de oportunidades para que todas as notas que há dentro do indivíduo possam vibrar em confronto com isso. Tal como uma harpa, o universo é uma emissora de sons, os quais fazem vibrar, no momento oportuno e na ocasião oportuna, cada uma de suas cordas, de maneira tal que nenhuma corda fique sem exercitar-se adequadamente.
118 Chá PS 10/5/91
Assim, eu era levado a compreender que o indivíduo, para ser senhor de si, não se mete a ter manias, e em cada circunstância vibra de acordo com o que aquela circunstância impõe. Ele sabe inclusive desligar a sua vibratilidade quando percebe que, o que o está solicitando, são coisas supersônicas e que fazem a vibratilidade vibrar demais. Ele então pode chegar até a enclausurar-se na atonia nas ocasiões em que ela se impõe, e assim viverá de acordo com o plano de Deus para ele. Este é o verdadeiro equilíbrio119 . *
É preciso que as virtudes cardeais sejam praticadas por amor de Deus para que a pessoa se domine em mil circunstâncias. E se domine tanto para combater se ele não está com vontade, quanto para não combater se ele está com vontade de combater na hora errada. O que supõe um governo de si que é o pináculo das virtudes cardeais. A minha família paterna era muito eclética neste ponto. Ela tinha homens muitíssimo pacíficos, mas tinha também alguns homens de têmpera muito dura. Um deles era o Conselheiro João Alfredo. Já meu pai era pacífico a um ponto inimaginável; resolvia todas as coisas por arranjos e tinha habilidade para isto. Na família de minha mãe, alguns eram muito coléricos e outros muito tranquilos. Tenho a impressão de que herdei uma espécie de “melting pot”, isto é, um caldeirão de raças onde se misturam todas essas coisas, de maneira que ora aparece um lado, ora vem à tona o outro. Isto torna até certo ponto muito mais difícil governar-me, mas por outro aspecto até torna isto muito mais fácil, por eu ter, ao alcance de minha mão, a disposição temperamental que a situação e a justiça exigem. E, por outro lado, por poder lançar mão de qualquer uma dessas variedades na hora que eu queira. Assim, sei perfeitamente que grau de zanga posso ter ou posso não ter, como é que vai, como não vai. Muitas vezes quero mostrar-me muito zangado, mas não vou além do que quero. Mas também, se estou pacífico, tranquilizador, é exatamente no grau que quero estar, quer dizer, que acho que é do meu dever e é da minha vantagem. Entra nisto um esforço em que a diretriz é de fundo diplomático: “Convém ou não convém zangar-me?” O que é bem diferente de dizer: “É gostoso zangar-me agora ou não?”
119 CA 1/3/89
Não entra o gostoso. A primeira pergunta é se é justo, porque não se pode fazer uma injustiça. A segunda pergunta é se é útil. Se é justo e útil, lá vai120 .
Como já disse, não fervo nunca, detesto ferver. Por isto também detesto ficar nervoso, detesto “torcer”, detesto afligir-me, gosto de estar caudalosamente calmo. Mas, se noto que, dentro dessa calma, e sem sair nem um pouco dela, algo ameaça perturbá-la, nasce uma fria resolução: “Aquilo precisa levar na cabeça e acabar logo de uma vez para nunca mais me amolar. Esta minha calma é minha respiração e não pode ser interrompida”. Mas isto não tem nada de parecido com a raiva. Não me enfureço, não me encolerizo. Não quero dizer que seja virtude ou defeito, é um modo de ser. Meu modo de ser é este121 .
Minha tendência é para a estabilidade, cortada de vez em quando por alguma grossíssima aventura não muito perigosa. Por exemplo, uma grossa polêmica, uma grossa encrenca, mas com riscos calculados: não vai além de tanto, de maneira que se possa dormir tranquilo no auge da espadagada. Mas até o ponto de sacrificar o sono, a coisa não vai122 . Sempre que estou metido em risco, são os outros que me puseram. E, para não fazer mal à alma de quem fez isto, não freio. Como detesto o risco, sofro com o risco imensamente, mas a promessa de Genazzano123 me tranquiliza, e enfrento o risco com serenidade124 . *
Uma vez me perguntaram por que dou preferência a ler livros em francês.
120 Chá SRM 30/11/93 121 RR 29/1/80 122 RN 2/10/72 123 V. página 25. 124 Chá SRM 18/4/91
É próprio ao homem, por ser truculento, gostar daquilo que é forte, duro, difícil de conseguir. Traduzido isso em termos de gastronomia, é próprio ao homem gostar, por exemplo em matéria de pães, de “pãezões”; em matéria de carne, de “carnonas”, porque isto faz parte da truculência do homem. Agora, o homem não é feito só de truculência. Nas horas de lazer ele gosta dos prazeres de espírito ligeiros, interessantes, originais, imprevistos e harmoniosos. É natural. Isto explica por que, gostando tanto das coisas alemãs, no entanto, na hora de ler, eu prefira os livros em francês. Embora a língua alemã proporcione todos os gostos da truculência, ela não proporciona os gostos da leveza. Proporciona também, mas em medida menor. A meu ver, há alguma coisa no espírito francês que distrai e areja mais do que qualquer outro espírito ou mentalidade do mundo. Inclusive para descansar, não há como a leitura do francês. Dou disto um exemplo palpável. Considerem a configuração do castelo de Chenonceaux, sobre o rio Le Cher, no vale do Loire. Aquela ideia de construir um bonito castelo em cima de uma ponte, deixando passar por debaixo as águas do rio; e o castelo como que flutuando nas águas, com as galerias iluminadas à noite com luzes de vela que repercutem nos dois lados sobre as águas – que maravilha! Outro exemplo. Para designar o som das águas, nós diríamos em português “o rumorejar das águas”; em francês se diz: “le bruissement des eaux”. É outra coisa! Não tem conversa. Então, desde muito cedo, nas horas de lazer, fiz do francês a língua de minhas leituras mais agradáveis. E como tinha uma vida muito dura, muito cheia de ocupações, eu só tinha tempo para ler nas horas de lazer. E lia em francês. Viajando para a França e chegando lá, desço no aeroporto e já me sinto em casa. Não que eu procure imitar o francês. Julgo a coisa mais ridícula do mundo um indivíduo do povo “A” procurar dar a impressão de que ele é do povo “B”. Sou um brasileiro e está acabado. Mas, mas, mas, mas, mas... entro na França como entraria em Chenonceaux. Na Alemanha eu já teria que me habituar. Mas há uma porção de coisas do meu gosto que, nessa exclusiva convivência com o francês, ficam clamando pela coisa alemã. Por exemplo, o duelo. O duelo é uma coisa censurável. Pode ser feito de um modo mais bonito ou mais feio.
O duelo francês, feito de ponta de espada, de maneira tal que a espada age como se fossem dois bicos de colibris que estão brigando, não me agrada. Não é o meu modo de brigar. E não imagino os margraves alemães ainda do tempo do duelo, com sapatões, laços de fita grandões e uns pernões, fazendo um duelo assim. É uma espadagada para liquidar com o outro de uma vez. Gosto disso. Estamos lutando? Está bom. Então vamos fazer isso logo, de uma vez e para valer125 .
Como é que eu, que gosto tanto de argumentar, de desbravar as coisas, de ir bem até o fundo delas, de fazer raciocínios lógicos e bem pesados para demonstrar o que quero demonstrar; como é que eu, de repente, apareço entusiasta diante de uma pirueta dessas o mot d’esprit de Jaurès, citado no item anterior? Não há nisto uma contradição? Quem me conhece por alto não poderá dizer que sou incapaz de apreciar uma pirueta dessas? É que o gosto pela ordem do universo faz com que se saiba gostar dos opostos harmônicos. Quem gosta muito e seriamente da coisa razoável, sólida, pensada, gosta também da coisa que tenha o voo de um colibri. E é na simultaneidade desses gostos que se descobre a mentalidade de uma pessoa126 . *
Quando fui visitar o castelo de Chambord em 1988, fiquei encantado. Chambord é a quintessência, o fausto. Mas se hipoteticamente eu devesse logo em seguida ir à Bretanha para conhecer a arte popular bretã, tenho certeza de que gostaria inteiramente das duas coisas, o que não significa que eu gostasse igualmente das duas coisas. Procuraria apreciar cada coisa intensamente como ela deve ser apreciada. O indivíduo que não fosse bem equilibrado diria: “Aquelas coisas de camponeses? Eu perder tempo com aquilo? É uma coisa analfabeta em comparação a Chambord”. Devagar. Não é verdade. Na arte popular reluzem alguns brilhos, algumas qualidades do verum, bonum, pulchrum que a arte de Chambord não dá. E tenho de ser admirador de um belo potencial que se realizou em Chambord de um jeito, na casa da Bretanha de outro jeito, em Rottenburg
125 Chá PS 1/5/91 126 Chá SRM 2/7/91
de outro jeito; em Salvador-Bahia, no largo do Boticário-Rio; na igrejinha da Glória-Rio, de outra maneira. Todos são elementos de um pulchrum ideal, para o qual tenho que ser inteiramente vibrátil, de acordo com a ordem das coisas. Mas eu via que não se ensinava isto. Ensinava-se até o contrário. Todo o cinema, a televisão, conduzem para fruições unilaterais contrárias, as quais fazem perder o gosto da vida e a aptidão para o Céu. Sou aberto a tudo isto. Sou aberto em todas as direções. Nunca ninguém me viu fechado para alguma coisa, a não ser para o mal. Entrou o mal, aí é outra coisa: é a guerra. Mas nas pistas do bem, gosto dessa enorme variedade. Na TFP, por exemplo, trato com pessoas das mais variadas nações e tenho certeza de que todos acertam comigo127 . * Li nas memórias de Metternich o seguinte trecho, em que ele descreve o lugar onde morava:
“Meu gabinete de trabalho é uma grande sala com três janelas, tem grandes escrivaninhas, porque gosto de mudar de lugar. Não me agrada habitar salas pequenas e sobretudo detesto trabalhar nelas. Num espaço demasiado estreito o espírito endurece, o pensamento fenece e o coração murcha”.
Vemos que ele tinha um espírito dispersivo que foi jeitosamente educado por ele à concentração, com uma judiciosa concessão a certas formas dispersivas que não prejudicassem essa concentração. Quanto a mim, me agradaria mais ter quatro ou cinco salas de trabalho bem diversas: uma bem aconchegante, outra bem solene; uma séria, austera, e outra alegre; uma até pequena e íntima, ao contrário do que diz Metternich, para certas coisas de vez em quando. E, conforme a matéria que eu tivesse de tratar, ir para uma determinada sala ou outra. Tenho a impressão de que essa variedade de ambientes me facilitaria muito consideravelmente a produção intelectual, supondo que cada sala tivesse um arranjo inteiramente diverso. Mais ainda: eu, que sou tão estável e tão fixo, gostaria de ter quatro ou cinco quartos de dormir diferentes. Pois há dois modos de dormir: um é o modo de dormir do homem que se deita à maneira de bicho. Ele desacorda na cama e a matéria ressona. Durante esse tempo, as suas funções intelectuais cessam tão completamente, que ele teria a sensação de um bicho que dorme.
127 CA 1/3/89