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Um reflexo particular da harmonia temperamental: o equilíbrio entre pessimismo e otimismo, entre confiança e desconfiança

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ÍNDICE DE LUGARES

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Outro modo de dormir é ter um quarto feito de tal maneira que o indivíduo adormece num certo estado de espírito que se prolonga pelo sono afora, e dá o tipo de repouso que se quer. Nesse repouso, algo da função intelectual continua dentro do sono, sem tensão nem cansaço. É uma coisa que dá ao sono o seu verdadeiro caráter. Eu gostaria de, na véspera ou na preparação de grandes resoluções, ter um quarto de dormir imponente, grande, majestoso, cama larga enorme em cima de degraus de primeira categoria, e com dossel. Já quando me sentisse cansado ao longo de um grande trabalho, ou depois de uma grande batalha ganha, gostaria de dormir num quarto ligeiro, sempre distinto, mas agradável e alegre. Gostaria de ter vários quartos assim, também vários escritórios assim, e eventualmente várias salas de jantar e várias baixelas assim. Os senhores dirão: “Por que não vários palácios ou residências?” Porque gosto muito pouco de me deslocar. Cada um tem o seu temperamento. Ter no mesmo lugar uma variedade fixa, isto me agradaria muito. Na hora eu diria onde quero dormir, trabalhar ou comer, estando tudo preparado. Isto para mim seria agradável. Gostaria também de ter uma sala-síntese. Pois, onde tem a variedade, existe um lugar para a síntese, do contrário a variedade não deleitaria. Esta sala poderia se chamar a Sala da Fixidez, onde todas as funções de meu espírito pudessem encontrar ao mesmo tempo o seu reflexo. O ideal dos ideais seria se eu pudesse fazer meu trabalho numa sala onde estivesse o Santíssimo Sacramento e houvesse uma escrivaninha onde pudesse trabalhar, onde também pudesse mandar cerrar uma cortina e fazer uma reunião, mas sabendo que o Santíssimo está ali. Nessa sala, na parte onde não está o Santíssimo Sacramento, deveria haver uma imagem de Nossa Senhora que não me deixasse nunca. Isto seria para mim o lugar da fixidez, a unidade na variedade. As outras salas seriam como que um aspecto dessa sala levada até as suas últimas consequências. Isto me agradaria muito128 .

Um reflexo particular da harmonia temperamental: o equilíbrio entre pessimismo e otimismo, entre confiança e desconfiança

Nos efeitos de uma má notícia na alma de uma pessoa, podemos encontrar dois aspectos. Um é o amargor da má notícia e outro é o susto da má notícia.

128 RN 7/6/74

Para meu temperamento, o susto é um impacto horroroso. E o jeito que tenho de evitar o susto é logo de uma vez ir à previsão do pior. Prever é considerar que tal coisa pode acontecer. E quando traçar meu plano de luta, vou colocar em linha de conta a possibilidade de aquilo acontecer, ainda que seja improvável, e preparar as coisas para que aquele pior não aconteça. Portanto, sem exagerar a probabilidade do pior, ficar o tempo inteiro prestando atenção. O fato é que, se formos de uma vez até o fim e prevermos tudo o que pode acontecer, uma coisa não acontecerá: é o susto. E outra coisa não acontecerá: é a inocência de quem andou retamente ser derrotada na luta por falta de previsão. Então, está mais perto da vitória quem prevê desde logo o pior. E prevê com confiança em Nossa Senhora e com energia129 . É por isso que penso geralmente nas coisas desagradáveis. Nas agradáveis não se pensa. Quando elas chegam, as saudamos, as inalamos e depois tocamos para frente130 . Toda a vida considerei um dever de honestidade mental pensar mais na eventualidade de coisas arriscadas e perigosas, do que nas agradáveis. Se há uma coisa que me proíbo a mim mesmo são os sonhos de olhos abertos. Se nunca penso nas hipóteses agradáveis, delicio-me com elas quando elas acontecem. Quando acontece uma coisa muito boa eu me alegro. Quando se trata de coisas que não vão bem, enquanto estiver assim, sinto-me na obrigação de pensar assiduamente nelas, pensar amargurado, aflito, muitas vezes sem saber como resolver e pedindo a Nossa Senhora que me faça ver uma solução. Naturalmente, quanto menos entendo da matéria que não vai bem, tanto mais fico preocupado, porque não sei introduzir os remédios adequados para a situação que se define. E entre essas coisas esteve durante muito tempo o conjunto da produção e gestão financeira dentro da TFP131 . *

Creio que está impressa na minha cogitativa, por desígnios divinos, é a ideia de que, no total, se não me desfalcam, se não me mutilam, se não me espandongam, chego até onde quero.

129 Almoço SB 25/9/87 130 Chá SB 17/2/81 131 Chá ENSDP 5/12/94

De maneira que o meu primeiro ato não é de ir para frente, o meu primeiro ato é de impedir de ir para trás, é impedir que alguém me induza, ou que eu mesmo me induza, a andar por um caminho errado. Porque se me deixarem sozinho no caminho certo, vou naturalmente para frente. Esta disposição de espírito se nota até em fotografias minhas de muito pequeno: uma desconfiança prévia dentro de um temperamento paradoxalmente bonachão. Numa delas, ainda bebê nos braços de mamãe, pode-se ver um olhar que diz: “Olha, cuidado, cuidado!” A maior parte das pessoas não é assim. As pessoas caminham confiantemente para a frente, julgando que provavelmente tudo dá certo. Eu não: o otimismo está mais comigo mesmo, e o pessimismo está quanto ao caminho. Quanto a essas outras pessoas é o contrário: o otimismo está mais quanto ao caminho e menos em si mesmos. Isto produz uma diferença de impostação que acho curioso notar, e se reflete até no modo de dirigir uma batalha. Por exemplo, se eu tivesse de dirigir uma batalha, eu não seria nem um pouco tendente a golpes à maneira de Condé, de jogar o bastão132 . Teria mantido o bastão na minha mão, porque, com ele, derroto o adversário. Nada de jogar o bastão. Nada de ato de confiança no que vem atrás. Também nada de me arriscar num só lance. Se tenho todo o exército, por que me arriscar num só lance? Vou jogar com usura as minhas possibilidades, homem contra homem, mas acabo pegando o adversário! Mas há pessoas que são brilhantes: jogam o bastão e outros correm atrás. Tenho admiração por esse gênero de pessoas. Mas não é o meu gênero. Fico com a impressão de que, se eu jogar o bastão, um soldado inimigo me bateria com ele na minha cabeça133 .

Compreende-se, portanto, que eu seja muito desconfiado com as nossas esperanças concretas e imediatas.

132 Dr. Plinio se refere, aqui, ao lance de grande ousadia e coragem dado pelo príncipe de

Condé durante a batalha de Friburgo (1644) contra os bávaros, no quadro da Guerra dos

Trinta Anos. No auge da batalha, o jovem príncipe de 22 anos jogou o seu bastão de comando em direção às tropas inimigas e avançou para resgatá-lo, gesto esse que despertou o élan de seus soldados e selou a vitória francesa sobre os bávaros. 133 CM 15/11/87

Levado por razões de caráter axiológico134, confio e sou até ousado no que diz respeito às esperanças de daqui a algum tempo, e sou reticente quanto às esperanças imediatas. Os senhores nunca me terão visto abatido do ponto de vista axiológico, e nunca, também, me terão visto esfregando as mãos de contente do ponto de vista de um acontecimento imediato. Há uma espécie de jogo na luta anjos e demônios aí, pelo qual as promessas do Céu nos vêm a prazos longos; e as ameaças do demônio nos vêm para breve. Seria preciso toda uma explicação para pôr de pé esta impressão, que não é o caso de fazer aqui. Não é uma preocupação propriamente doutrinária, mas trata-se de um fato que poderia muito bem não ser assim, mas que por desígnios de Deus é135 .

Às vezes a Providência chama para certa vocação uma pessoa cujo defeito capital é o oposto dessa vocação. Ela chama então essa pessoa para uma maior entrega. Sou de um temperamento eminentemente para a não-confiança. Tudo o que faço, faço blindado contra o adversário. Não há uma palavra que eu escreva que não seja feita para que o tiro de fuzil do adversário entorte a bala e caia no chão.

Sou cautíssimo e creio que será difícil um dos senhores se lembrar de um caso em que eu tenha feito uma imprudência.

134 Em Filosofia, a axiologia é o estudo ou teoria (em grego: logos) daquilo que é digno de estima (em grego: axion), daquilo que tem valor ou que pode ser objeto de um juízo de valor, pelo que é hoje sinônimo de “filosofia dos valores”. Na linguagem de Dr. Plinio, a axiologia é “o regime de governo da Providência na história, considerada enquanto vista pelo homem e enquanto condizendo com a natureza humana”. No seu sentido lato, é então “o estudo da sapiencialidade de Deus enquanto se reflete no conjunto das regras pelas quais tudo se move e realiza os fins que a divina Providência tem em vista” e, no strictu senso, “a movimentação dos homens – nas suas histórias individuais e ao longo da história coletiva – para realizar a glória de Deus neste mundo e na eternidade; o que inclui a batalha de Deus neste mundo e na eternidade”. Portanto, “a axiologia não é toda a teologia da história, mas ela é a espinha dorsal da teologia da história, enquanto ela deve realizar em determinado momento o reino de Deus na Terra” (MNF 11/01/79). 135 RR 26/5/90

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