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O SENTIDO DO OUVIDO

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ÍNDICE DE LUGARES

ÍNDICE DE LUGARES

O verde. Eu nutria para com o verde uma antipatia. Estava cercado, já naquele tempo, por todo o otimismo inerente à Revolução Industrial, e se inculcava a ideia de que tudo daria muito certo, no melhor dos mundos: que o ano 2000 para o qual se caminhava seria um ano de apoteose, de alegria, de felicidade do gênero humano. In genere, o verde é a cor da esperança. In concreto, o verde era tido como a cor dessa esperança e desse progresso. Começaram a dizer que era a cor ideal para a vista. Então era bom pintar as venezianas de verde, para que a luz entrasse verde dentro dos quartos. Faziam uma série de outras coisas verdes, sempre se alegando ser bom para a vista. Eu, que tinha uma vista muito boa, inteiramente normal, dizia: “Isso é para outro, eu quero pintar uma veneziana vermelha”153 . *

Para mim, o mundo das cores tem dois padrões: o azul e o vermelho. O vermelho representaria tudo aquilo que eu gosto da Alemanha, e o azul representaria tudo o que eu gosto da França. Telhados de ardósia meio azulados são para mim altamente representativos da França. Telhados de telha mesmo, bem vermelhinha, são representativos da Alemanha154 .

O SENTIDO DO OUVIDO

Não sou muito musical, mas tenho uma memória auditiva muito boa155 . De outro lado, não tenho nenhum gênio inventivo musical. O que eu possa ter de noção da música ideal serve-me para, quando a música não é ideal, dizer no que ela não o é. Mas não me serve o bastante para compor. Eu, portanto, não tenho competência para indicar as características positivas da música ideal, ou porque elas não estão presentes no meu espírito, ou porque estão implícitas e eu não saberia propriamente explicitá-las. Creio que, se eu a ouvisse, eu a reconheceria. Mas estou para ouvi-la156 . *

153 Jantar EANS 13/9/88 154 MNF 15/11/89 155 RN 3/10/69 156 SD 8/11/75

No tempo em que tocava piano – eu datilografava o piano muito modestamente – eu procurava refletir sobre a música e procurava produzir harmonias com jogos de teclas, apenas para obter sons agradáveis e expressivos, mas sem pretensão, nem de longe, de fazer uma composição, na convicção de que me faltava completamente engenho e arte para isto. Mas umas pequenas bandeiras nesse matagal dourado eu tentei fazer. Nessas várias conjugações de som, sempre de dois sons – não passei mais do que isto –, a conjugação que me parecia perfeita era “dó-mi” tocadas juntas. Mais do que, por exemplo, “mi-sol” ou “sol-si”. “Do-mi-sol” era o mais alto voo que eu conseguia fazer em matéria de harmonia. E tinha um desprezo irritado com o “fá-lá-ré”. Bem, essas conjugações de som eu compunha escondido, porque iriam me perguntar o que é eu estava fazendo e eu não saberia explicar. Era preciso esperar uma hora em que a sala onde estava o piano estivesse isolada do resto da casa. Aí então eu entrava e clandestinamente fazia as minhas furtivas expedições no terreno da música. Enfim, o “dó-mi-sol”me parecia dar um bem-estar que era ao mesmo tempo da alma e do corpo, e que era a bem dizer onde o corpo e a alma se encontravam na mesma harmonia, no mesmo equilíbrio. De tal maneira que, tendo sido meu corpo feito para a minha alma, e minha alma para o meu corpo, eles se encontrando, diziam de si isto que para mim soava como harmonia, e eu sei que estava destinado a soar como cacofonia para milhões de pessoas: a palavra Plinio157 . *

Algum tipo de som me encanta, e outro tipo de som me é mais indiferente. O som musical é sempre bonito. E gosto mais de som do que de música, porque as partituras que se compuseram depois da Idade Média não me representam. O cantochão e o canto polifônico me representam inteiramente. O bimbalhar de sino me representa. O harmônio um tanto. Gosto muito do cravo. Aquele som prateado do cravo, eu acho superior ao piano a perder de vista. O piano me parece um pouco predecessor da máquina de escrever. Tenho minhas restrições ao piano. Da harpa gosto muito, mas muito! E harpa não é só a forma que deslumbra, mas é propriamente o som. Órgão, desmedidamente! Com todo o truculento que está em mim, eu gosto do órgão158. O órgão, que comporta o acompanhamento de outros

157 MNF 15/9/94 158 MNF 15/11/89

instrumentos, é o instrumento perfeito. Qualquer som de órgão me agrada indizivelmente. Ele é, para os meus ouvidos, o que o vitral é para a minha vista. E um vitral perfeitamente adequado é, para mim, a harmonia perfeita das cores159 . Um dos encantos que eu tenho pelo órgão é que cada nota me dá a impressão que tem uma porção de instrumentos que tocam ali dentro, e que aquilo é um concerto de concertos. E nisso eu acho o órgão, a perder de vista, superior a qualquer outro instrumento. Completamente. Quando comecei a prestar atenção no órgão, lembro-me de que eu me dizia: “Essa gente não percebe que isso é um concerto de concertos? Eles falam em dó, ré, mi etc. No piano existe um “lá”, no órgão existe um universo de “lás”, acentuado ainda por aqueles registros que dão uma ideia global do universo dos sons, da totalidade dos sons: é a perfeição das perfeições em matéria de harmonia”160 . *

Por tudo quanto tenho ouvido de cá, de lá e de acolá, não só na TFP, mas em geral por esse mundo afora a respeito de música, o tipo de voz de que eu gosto mais é o menos apreciado, que é o baixo profundo. Pega a coisa ali! O baixo profundo é o causador dos outros. E a causa é sempre mais nobre do que o efeito. O som menos grave não é causador do mais grave, e, portanto, o mais grave não está implícito no menos grave161 . A voz de tenor é magnífica. O Caruso era um tenor do outro mundo! Mas tenho a impressão de que se abusou da voz de tenor, fazendo do tenor quase que o cantor obrigatório. Gosto muito de certos baixos profundos da canção eslava. Por exemplo, acho uma verdadeira beleza uma música que todos os entendidos dizem que é de segunda classe: “Os barqueiros do Volga”. Acho aquilo muito bonito, enquanto exprimindo o esforço e o cansaço dos barqueiros. A letra é até um pouco revolucionária. Mas ali entram uns baixos profundos, sem os quais aquela música não seria nada.

A “Canção dos Peregrinos”, de Wagner, é muito bonita também. Tem algo, “alguinho”, de parecida com “Os barqueiros do Volga”. É

159 SD 8/11/75 160 SD 8/9/79 161 Jantar EANS 13/11/91

uma imitação do esforço, do andar, mas é muito mais nobre, muito mais aculturada do que “Os barqueiros do Volga”162 . A razão metafísica pela qual prefiro o baixo é a seguinte. Universalmente falando, o diapasão de todas as coisas devidamente estudadas seria o grave. Vejo a vida em grave, eu a descrevo em grave. A gravidade é um dos grandes deleites de minha vida. Saltando de um campo para outro, é a razão pela qual eu gosto muito mais da comida de sal do que da sobremesa163 .

Sons militares, gosto muito! Aquela canção do Kurfürst, por exemplo, gosto muito. Chega a tal ponto que, às vezes, um mero som de um metal ou de um cristal tocado, frappé, dá uma verdadeira beleza164 . Como gosto também da música gregoriana e da música polifônica165 . Mas prefiro o gregoriano. Em si acho o gregoriano perfeito e intocável. O polifônico é como a flor da planta. Eu acharia pior para a Igreja que desaparecesse o gregoriano do que se desaparecesse o polifônico, de tal maneira gosto mais do gregoriano. Mas defendo com unhas e dentes que exista um lugar para o polifônico também166 . Outra coisa que eu acho uma verdadeira beleza, e aí a forma tem um papel muito grande, é o modo de dispor certos regimentos. Por exemplo, as fotografias dos regimentos militares do Chile. *

Também na sonoridade das línguas. No meu modo de sentir, o alemão é uma língua categórica. Uma das coisas que eu gosto mais do feitio alemão, do temperamento alemão é que, o que tem que ser, é. Nada de meios tons, matizes. É ali no duro. “A” é “a”, “e” é “e”, “i” é “i”, “o” é “o”, “u” é “u”. As vogais são pronunciadas abertas e claras e as consoantes são truculentas. Quer dizer, elas caem,

162 MNF 15/11/89 163 Jantar EANS 13/11/91 164 MNF 15/11/89 165 Entrevista para rádio Uruguaiana 21/6/90 166 Chá SRM 17/12/89

cortam e interrompem o jogo das vogais, e vão para frente. Quer dizer, é uma coisa bonita, categórica. Os senhores tomem qualquer frase do alemão traduzida para o português. Por exemplo, “Darauf sprach er zu den Jünger” – “E em seguida falou ao discípulo”. A frase é simples e cada palavra corresponde ao que está em português. “Darauf” quer dizer “em seguida”, “sprach er” é “falou ele”, “zu den Jünger” “ao discípulo”. Agora os senhores vejam a frase em português, tem um encanto próprio da língua portuguesa: “E em seguida falou ao discípulo”. É harmonioso, é fluente, é corrente, é flexível, é elástico, é agradável. Mas aqui é o contrário, é “darauf”, “darauf” é muito diferente de “em seguida”. Os senhores percebem bem o “auf”, “darauf”. E como as consoantes jogam bem: darauf. Vai mesmo. É de gente que não tem medo, nem susto, nem titubeia, nem gagueja. Lá vai. Gosto muito do português, é a minha língua materna. Mas confesso que tenho também encantos pelo alemão. Do que eu gosto do alemão? É dos pontos em que ele é diferente do português. Do que gosto do português? É dos pontos em que ele é diferente do alemão. São extremos opostos e harmônicos167 . *

Um amigo com quem tínhamos boas relações herdou do pai uma estória de limpar a sola do sapato antes de entrar na casa. Essa máquina era feita de metal, fabricada na Inglaterra, no tempo em que todos os produtos do Brasil vinham da Europa, porque não havia indústria aqui. Ele mais de uma vez fez o elogio de que aquelas varetas, aquela estória de aço emitiam um som muito bonito. Pensei: “Está aí, este homem, tem grandeza para compreender que exatamente o som de um fio de aço pode ser verdadeiramente musical”. Um dia eu o encontrei tristonho. Ele me disse: “Das poucas coisas que me restavam, uma era isto. E me roubaram”. Se eu pudesse, eu compraria um desses aparelhos e daria para ele. Fiquei com pena dele. Porque é uma superioridade de alma compreender que um capacho desses pode emitir um som que seja uma verdadeira beleza.

167 SD 25/10/75

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