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Atrativo pela boa ordenação da sociedade temporal e pela cultura

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ÍNDICE DE LUGARES

ÍNDICE DE LUGARES

finitas sem se cansarem. É uma coisa formidável isso! Mas houve ou não houve? Será que esta minha gente, em vez de estar falando às torrentes de coisas inúteis, se fossem como aquela gente do prato não seriam mais assim? Vou me pôr a imaginar um mundo que fosse desse modo”. E assim eu era levado a imaginar um mundo ideal, que era em última análise a idealização de uma porção de coisas que eu conhecia, e inclusive a idealização de pessoas e de situações que eu conhecia, projetadas mais adiante. Daí, lendo historietas de criança e depois histórias do passado, comecei a fazer a idealização do passado, e a formar na mente toda uma ordem de coisas perfeita, imaginária, mas meio admitida como real ou realizável; idealização esta que aos poucos foi sendo modelada pela Fé: “Isto tudo não está direito, está por demais sensível, por demais material. Olhe o Céu, olhe as virtudes, olhe a bondade, olhe a igreja do Coração de Jesus. Olhe tal pessoa que tem fé e que você conhece; olhe tal imagem de santo como era”. E aí sim, com base na Fé, veio a formação de um mundo religioso ideal, para o qual minha alma voava inteira, e que era, no fundo, um mundo inteiramente contra-revolucionário, um mundo imensamente colocado em ordem católica. Quer dizer, o que me salvou de elucubrações vazias e me pôs no bom caminho foi a Fé, que me tirou desse riacho perigoso, orientou-me e deume o equilíbrio necessário para essa idealização. Porque, neste caminho, poderia facilmente não sair uma coisa equilibrada. Nossa Senhora me favoreceu muito, pois tinha desde aquele tempo fé católica absoluta: o que a Igreja dissesse era aquilo mesmo, porque estava evidente que era. É Ela que tem razão, eu não. E eu devo me acomodar a Ela. Daí nasceu o ideal da Contra-Revolução, em choque direto, como já descrevi mil vezes, com as maneiras hollywoodianas que já invadiam torrencialmente a São Paulinho daquele tempo, e que constituíam a ponta da Revolução. Maneiras hollywoodianas que tinham dois acentos: o acento da corrupção e o acento da vulgaridade; acentos estes meios-irmãos da civilização mecânica e industrial, que já era então a borda da cidade de São Paulo290 .

Atrativo pela boa ordenação da sociedade temporal e pela cultura

Posso dizer que uma das características de minha formação de espírito foi Nossa Senhora me ajudar desde muito cedo a perceber, com a facilidade

290 CM 19/1/86

própria a um menino, o reflexo de Deus nas coisas temporais, e não apenas nas coisas espirituais. Via as coisas espirituais e deleitava-me. Mas não tinha a tendência de passar a vida inteira dentro de uma igreja. Teria ficado muito contente, me teria honrado se isso me acontecesse. Mas não foi o que se passou. Eu não era de ir muito à igreja. Mas quando ia, deitava muito as “antenas” para o eclesiástico e o sobrenatural que ali havia, e com enorme complacência de minha alma, com enorme atração de minha alma, não tem dúvida. Mas, ao mesmo tempo, nas coisas temporais, da sociedade material, eu também gostava enormemente de ver quando elas eram corretas, bem ordenadas. E parecia-me ver ali uma superioridade e um atrativo para minha alma, que depois, mais tarde, com o estudo e a reflexão, eu compreendi que era uma semelhança de Deus.

Tenho, por feitio de alma e por uma posição contra-revolucionária, uma propensão muito maior a ver o lado espiritual dos objetos produzidos pela cultura humana do que os objetos da natureza. Por exemplo, se eu estivesse diante de uma lamparina posta aos pés de uma imagem de Nossa Senhora, e de um jarro que se filiasse a certos padrões fundamentados na arte, eu seria muito mais levado a olhar para o vaso do que para a lamparina, porque o vaso exprime mais de perto a alma humana, e da alma humana mais de perto eu chego até Deus. Nisto há também uma reação contra certo naturismo da cultura do século XIX, que fazia entender que as coisas todas inventadas pelo homem não tinham valor, e que a única coisa que tinha valor era a natureza. Reconheço de bom grado e com entusiasmo que a natureza tem coisas maravilhosas. Reconheço até que, em muitos aspectos, ela excede a capacidade criativa do homem e inspira essa capacidade. Mas não deixa de ser verdade que, nesta terra de exílio, tomada a palavra natureza como o bloco todo das coisas que nos rodeiam, há muita coisa de bonito e admirável, mas também muita coisa que não o é. Por exemplo, mosquitinhos são altamente reprováveis: eles me contrariam, eu estou em guerra contra eles e os sinto audaciosa e espuriamente beligerantes contra mim. Assim, um bonito relicário que eu visse num museu me falaria muito mais do que todo um canteiro plantado com as mais ricas flores.

Talvez um botanista não sinta isto como eu, e acho uma coisa perfeitamente admissível, mas eu não sou assim. Estou apenas dando uma explicação de como sou, e não dizendo que se deve ser como eu291 . *

Eu me encanto mais com um vidro de água de Colônia do que com uma flor, porque isso é uma flor espiritual da civilização cristã292 . Então, a forma de uma cadeira, a forma de um lustre pode me lembrar alguma coisa que, em última análise, lembra outra, outra, outra, e acaba tocando em Deus. É óbvio que se deve procurar a Deus essencial e fundamentalmente através da vida religiosa, entendida como vida de piedade, Fé, observância dos Mandamentos. Mas não podemos limitar a procura a Deus só a isto, tal como faz a heresia branca, que pratica uma espécie de laicismo e acantona Deus dentro da capela, pondo Deus no centro, é verdade, mas falando pouco das outras coisas que estão em torno de Deus. A nossa tese é de que é preciso saber contemplar as coisas temporais, de maneira tal que elas nos falem também de Deus. Não é exclusivamente, nem eu afirmo de modo absoluto que seja principalmente isso; mas para a nossa vocação é principal afirmar isto que estou dizendo, que está na linha da complementaridade293 .

Visitando um museu em Veneza, encontrei de repente, numa vitrine, um cálice de Missa feito de uma só ágata lavrada, transparente e luzidia. Nunca tinha visto uma pedra transformada em cálice, uma linda pedra com o jogo de luz da hora, do momento. Aquilo me tocou profundamente, por ser um cálice de Missa, é certo, mas também por causa da pedra: “Oh! pedra. Oh! Deus”. Os senhores estão vendo nisto um feitio de espírito pelo qual a pessoa presta muita atenção no concreto, no palpável e no material que tem diante de si. Mas é uma atenção analítica, que importa em uma análise dupla: da coisa em si e em mim, do cálice de ágata e do efeito que o cálice de ágata produziu em mim.

291 Chá PS 1/12/81 292 EVP 23/9/84 293 CSN 6/5/81

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