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O senso do sacral

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ÍNDICE DE LUGARES

ÍNDICE DE LUGARES

Isto se dava igualmente em relação aos padres, ao clero. A alegria de reverenciá-los, de dar preeminência a eles, de na rua saudá-los com uma inclinação de chapéu toda especial; estando junto a algum deles, considerar: “A alma deste homem como que transuda o sobrenatural que está nele; ele é um homem todo feito para Deus e sobrenatural. Vejo nele quase como a uma relíquia”323 . Até hoje eu os trato com muito respeito. Mas é o respeito de um cavaleiro católico, sem me achincalhar. Nada de: “Seu padre, eu não sou nada diante do senhor”. Não é verdade. Sou eu. Ele é ele, e muito mais do que eu, por ser um ungido do Senhor. Eu o respeito, mas não esqueço quem eu sou324 . Sentia que esta posição refreava em mim uma porção de coisas, não à maneira de um freio, mas à maneira de um princípio ordenativo que entrava em minha alma – era uma coisa até bem distinta de um freio – e me comunicava um modo de ser que era inteiramente conforme a isso e voltado para o serviço disso. E que era a alegria de ser inferior, a alegria de admirar, a alegria de obedecer, a alegria de amar. Eu também percebia que eu não estava no rés-do-chão desta ordem; eu representava algo de não idêntico, mas análogo para outros menores do que eu. E por amor à ordem, não por amor a mim, exigia deles trabalhosamente a homenagem que o modernismo começava a fazer com que eles me negassem. Tudo isto acontecia por amor a essa graduação, a qual ia até quase o infinito. E essa graduação – aqui entra a passagem do senso moral para a intelecção – se baseava num conjunto de princípios que eram enunciáveis racionalmente, aos quais a razão dava todo o seu apoio, toda a sua sanção, e que correspondiam inclusive à ordem do ser invisível e sobrenatural, e que por causa disso precisava ser mantida, apoiada e respeitada de todos os modos325 .

O senso do sacral

Eu amo mais a sacralidade do que a desigualdade. Devemos mencionar primeiro a sacralidade e depois a desigualdade, porque a sacralidade é uma desigualdade tão alta que toca no próprio Deus. Deus é por excelência sagrado. Qualificamos de sagradas as coisas que têm uma excelência tal que, de algum modo, tocam em Deus.

323 MNF 18/1/90 324 Chá SRM 2/11/89 325 MNF 18/1/90

A sacralidade de uma coisa é uma excelência tal dessa coisa, que ela entra de algum modo e muito alto no campo religioso. Ora, o campo religioso é o mais alto dos campos. Estar muito alto no mais alto dos campos é estar muito desigualmente colocado. E o indivíduo que ama a desigualdade com espírito católico, ama porque toda a desigualdade tem analogia com o sacral. Em termos psicológicos da vida comum, a sacralidade eu a conheci na igreja do Coração de Jesus, indo lá, rezando lá, assistindo à Missa. Ela me parecia simbolizar uma alta virtude, mas uma virtude que tinha a fonte em si mesma, que não vinha de ninguém – a gente está vendo que é o próprio Deus –, e que era a mais alta virtude excogitável, compreensível, e que se derramava sobre os homens bondosamente, às torrentes. Mas de outro lado eu via nela uma grandeza que a tornava sumamente admirável e sumamente digna de respeito. De maneira que era uma grandeza protetora, abarcativa. Eu me sentia por assim dizer coberto como debaixo de um teto de grandeza. E protegido nas mil coisas da vida humana, que eu já percebia ser muito difícil, por essa sacralidade bondosa. Na medida em que fui ficando mais velho, eu via que essa sacralidade se irradiava do próprio Sagrado Coração de Jesus, e que no fundo era Nosso Senhor Jesus Cristo enquanto Sagrado Senhor e Fonte de toda a sacralidade. Tudo quanto eu amava naquela igreja provinha do Sagrado Coração d’Ele. Daí me veio um amor a tudo quanto é sagrado e um respeito a tudo quanto é respeitável326 .

Este sacral, que é mais belo e mais alto do que as coisas paradigmáticas da natureza, eu o observava na igreja do Coração de Jesus, e no contato com uma imagem do Coração de Jesus que mamãe tinha no quarto dela. Não tardei a perceber que as coisas sacrais davam acesso à contemplação de uma ordem do ser muitíssimo mais elevada, e que satisfazia a minha alma incomparavelmente mais do que os paradigmas que se poderiam deduzir do éclair de chocolate, do éclair de café de que eu gostava muito, ou de uma vista de Veneza, ou de uns macarrões que, naquele tempo, eu comi em Gênova e de cujo sabor eu me lembro até hoje. Essa percepção se dava sobretudo na hora da elevação da hóstia durante a Missa, e mais ainda na elevação do cálice do que na elevação da hóstia.

326 Chá SRM 2/8/88

Isto era um erro de minha parte, porque ambas as ações são a mesma coisa: a transubstanciação, a renovação incruenta da morte de Nosso Senhor Jesus Cristo no Calvário, e o oferecimento da sua morte à Santíssima Trindade. Mas eu não sabia inteiramente o que era a Missa. Percebia que o padre que a rezava fazia algo de muito alto, de muito misterioso, e que isto incutia um respeito que nenhuma outra realidade humana incute. Todo o mundo baixava a cabeça (eu também baixava) e me ficava a impressão de que a emoção do padre era muito maior na elevação do cálice do que na elevação da hóstia. Hoje percebo que concorria para essa ideia o fato de que a Sagrada Hóstia não tinha valor artístico, enquanto o cálice tinha. E o cálice, como se usava naquele tempo, era de ouro e sempre em forma gótica, ou seja, semelhante a uma ogiva voltada para cima. Aquela forma gótica, a beleza, a nobreza do ouro, e qualquer coisa ligada à ideia do vinho que se punha no cálice – o vinho é mais nobre do que o trigo –, davam-me a ideia de que o ato que se fazia conjugadamente pelas duas transubstanciações atingia o clímax da sua sacralidade na transubstanciação do vinho. Repito: havia nessas considerações um fator de ignorância religiosa crassa. Eu nem tinha tido ainda o meu curso de Catecismo. Tive o meu curso de Catecismo aos nove anos, e essas considerações deveriam ter sido feitas antes dessa idade. Vim a saber depois que, aquilo que eu percebia ali, era a ação da graça. E o órgão parecia-me comentar muito bem, sem palavras, mas de um modo magnífico, o que ali se passava, e o movimentar, dentro do homem, da graça que ele tinha recebido. Eu tinha uma admiração à fond perdu pelo órgão! Até lá chegava a minha admiração. E aí a ideia de a sacralidade aparecer-me, não como uma noção abstrata, mas por assim dizer como uma experiência, como a mais alta das coisas e o pináculo do que o homem possa conhecer, desejar e admirar, e algo que ordena tudo o que vem abaixo. A ideia era: se houver sacralidade, Veneza e todas as cidades do mundo estarão em ordem; se houver sacralidade, os cálices todos do mundo estarão em ordem, as igrejas todas do mundo estarão em ordem. O pináculo da cogitação do espírito humano é a sacralidade. E este é também o pináculo do bem sentir-se do homem. Em que ponto? Essa sacralidade tinha qualquer coisa de semelhante à penumbra das igrejas com vitrais góticos e tinha também qualquer coisa de sumamente respeitável e de venerável até.

No momento em que eu a sentia, ela, sem perder nada de sua grandeza, tornava-se afagante, acariciante e protetora para mim. E continha uma promessa de proteção e de afago que me dava segurança na vida, uma segurança que eu não teria se eu não a tivesse conhecido. Na forma de carinho de mamãe, por exemplo, eu percebia o reflexo de quem tinha o espírito muito aberto para a sacralidade. E notava que havia qualquer coisa de filha da Igreja no modo pelo qual ela era minha mãe, o que me unia muito a ela.

Um pouco mais tarde, já então no Colégio São Luís, veio-me a ideia da Igreja Católica. Quer dizer, eu sabia que havia a Igreja, mas minha atenção não se tinha concentrado n’Ela. Foi a Igreja que levou minha admiração ao auge, porque era o receptáculo e a fonte de todo o bem, de toda a verdade, de toda a grandeza, de tudo. Senti que, unido a Ela, eu teria condições de permanecer puro e de permanecer sacral. Desligado d’Ela, eu cairia no rolo das coisas mais baixas, mais abomináveis. Olhando para os outros, percebia que estavam naquele estado porque não tinham sacralidade, não amavam a sacralidade, fugiam da sacralidade como sendo um tédio e um cárcere. E ela era o meu paraíso. Daí toda a ordenação do resto das minhas preferências, de meus gostos, de tudo em função da sacralidade. Era a possibilidade de ver a sacralidade refletida nas coisas é que guiava as minhas preferências. Lembro-me de ter encontrado, no meio dos resíduos da viagem que a minha família tinha feito à Europa, um álbum de Versailles, desses com cartões postais picotados em bloco, e que a pessoa fica com a possibilidade de destacar e mandar para conhecidos. Pode-se imaginar como eu me agarrei a esse álbum. Eu gostava muito do palácio, e gostava enormemente também do parque, que era fotografado de cima não sei por que avião precoce, ou se por algum balão. Com aquele desenho geral de Versailles, com aqueles bosquets, com aquela vista toda diante dos olhos, a minha forma de flanação era sentar-me longe do professor, abrir meu pupitre e ficar como se estivesse estudando. Dentro estava a vista de Versailles, que eu percorria indefinidamente. O que eu gostava propriamente de imaginar era porque os revolucionários odiavam Versailles, o que era, no fundo, um discernir o demônio. Não era propriamente discernir o sacral, senão pelo ângulo de que aquilo

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