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Alegria pela harmonia entre a ordem interna e externa e a facilidade para fazer correlações

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ÍNDICE DE LUGARES

ÍNDICE DE LUGARES

ascensão dos outros, e a cada nova ascensão deles devo prestar-lhes uma nova homenagem328 .

Alegria pela harmonia entre a ordem interna e externa e a facilidade para fazer correlações

Nos meus quatro anos, eu sentia uma espécie de harmonia dentro de mim, em virtude da qual eu não percebia lutas interiores dentro de mim; percebia tudo bem travado, bem ordenado, bem aconchegado, por assim dizer com articulações flexibilíssimas. Como toda criança, tinha sucessivamente estados de espírito bem diversos que não entravam em choque um com o outro. E isso me fazia sentir aquela espécie de harmonia interna que me dava um gáudio muito grande. Era uma harmonia cheia de alegria que, sem me dar conta, parecia-me vir do mais alto. Seria como uma coisa que brotasse de algo muito mais alto do que eu e que me inundava com essa harmonia e, portanto, com essa alegria. De onde também uma grande alegria interna de viver, de ser e de ser eu mesmo. O fato de eu ser eu dava-me essa alegria, não porque me reputasse maior ou menor do que outros – eu nem tinha capacidade intelectual para fazer essa comparação –, mas porque eu me conhecia e alegrava-me de ser assim, de haver em mim essa agilidade, essa harmonia, essa recíproca coesão e coerência de todos os aspectos de alma. De onde eu ser muito amigo de toda coisa muito ordenada, muito direita, muito bem arranjada. Vemos aqui, desde logo, que é o primeiro passo contra a Revolução, a qual representa o descabelamento doido de todas as coisas. Lembro-me de que, depois, comecei a adquirir a noção de que essa harmonia não existia só em mim, mas existia também na harmonia minha com as coisas externas a mim. O mais antigo exemplo disso de que me recordo foi na minha ida à ilha de Rügen, no mar Báltico, onde havia uma praia chamada Binz. Fomos de trem até um certo ponto “x” do litoral continental e lá o trem entrava em um navio, e esse navio levava o trem até a ilha. E me lembro do alvoroço alegre de todo mundo em torno de mim. Tomar um trem que entra em um navio, para aquele tempo (1913), era uma proeza!

328 Chá SB 19/4/88

Por causa do vaivém, o mar deve ter feito o casco do navio dar uma pancada no cais. Senti aquela pancada e aquele som de metal e vi todo o meu pessoal olhando para o lado de fora da janela: “Olha, vai entrar, não vai... Lembro-me ainda da ideia do grandioso, mas também do tenebroso que era um trem entrar em um navio. Depois, a ideia de libertação quando o trem sai e passa à terra firme. Era sair de dentro do risco e entrar no lance maravilhoso do progresso. E eu pensava: “Tudo isso é pancada, é barulheira, é uma violência que se faz às coisas; isto não vai com a minha harmonia interna. Veja também as alegrias com que eles estão, não são as minhas. Não se fica alegre assim! Se eu fosse ficar alegre assim, eu quebraria essa tal ordem cheia de unção que existe em mim”. Evidentemente, eu não seria capaz de dizer essas palavras naquela época, mas era muito definidamente o que eu experimentava. Na praia havia umas cabinezinhas que tinham dois ou três lugares e um toldo; e depois, em volta, em forma de círculo, um paredão de areia muito branca e cada família tinha direito a um reservatório de areia. Vê-se logo um sistema organizado alemão. Eu, sentado ali e brincando com a areia e sentindo uma coesão enorme com aquela areia. Depois levantei-me e olhei para o mar. O mar estava azul, mas de um azul como raras vezes se vê aqui, se é que se vê: azul, azul, uma coisa fantástica! E me lembro de dizer para mim mesmo: “Mas como isto me diz respeito! Como se relaciona comigo! Que coisa magnífica! Que bom isto aqui e como é bom ser eu!” Aí via uma analogia que eu encontrava muito realizada no convívio com mamãe. O convívio com ela era cheio de coisas dessas. Eu me encontrava muito realizado no convívio com ela; em relação a outras pessoas talvez menos. Mais tarde comecei a perceber lances dessa harmonia em certos costumes, em certos ambientes, em certas almas. Embora não tivessem essa harmonia por inteiro, em alguns aspectos tinham isso. Comecei a diferenciar os traços de harmonia e de contra-harmonia. E então, em parte, comecei a querer bem a algumas pessoas, na medida em que tivessem essa harmonia, e a não querer a outras, na medida em que não tivessem essa harmonia. Lembro-me bem que, já era mais crescido, devia ter uns sete anos, assistindo à Missa com mamãe na igreja do Coração de Jesus, em certo momento o órgão me chamou a atenção. Nunca havia chamado.

O órgão estava tocando – um órgãozinho paroquial, modesto –, ouço-o e digo: “Que curioso, eu não tinha notado isto. Que som! Cada nota que se toca aqui tem uma espécie de mil notinhas dentro do mesmo gênero. E forma uma harmonia. Depois, as várias notas entre si, olhe que harmonia têm! Que coisa bonita!” Veio-me depois outra ideia: “Engraçado, isto se parece com a igreja”. Assim, ao longo de vários domingos, fui estabelecendo essa ligação entre a igreja e o órgão. E depois, naturalmente, com mamãe que estava ao meu lado. Via mamãe rezar e a proximidade física com ela me fazia sentir algo: “Ela é exatamente assim, ela e a igreja – eu não possuía a palavra reversível – tem uma tal ou qual reversibilidade: o edifício material, aquele padre, as coisas que aquele padre faz no altar, os vitrais. Eu diria que os vitrais são o órgão em cores e que o órgão é o vitral em som. E diria que tudo isso se encontra na alma de mamãe também, mas de modo mais eminente naquela imagem do Sagrado Coração de Jesus que está ali. Quem verdadeiramente foi assim foi Ele! E Ele era a fonte de tudo isso. Então a Igreja é onde está tudo isso, numa harmonia pletórica com a Igreja Católica”329 . *

Em viagens que a minha família fazia ao Rio de Janeiro, ficávamos em hotéis à beira-mar. E a cor do mar atingido pelo sol me parecia uma pedra preciosa. Essa consideração do mar, que nem é pedra e nem é preciosa, por analogia despertava em mim figuras ou imagens ligadas a pedras preciosas. E ninguém pode dizer que isto é um sintoma de doença psíquica. É a coisa mais natural que pode haver no mundo. Assim, embora eu soubesse que era mar e soubesse qual era o gosto da água do mar, eu me comprazia em imaginar aquilo sob a forma de uma geleia, e imaginar que gosto e que consistência essa geleia teria. Cogitava eu: “Este mar seria bom para ser servido frio ou gelado?” Eu optava pelo gelado. Compreendo que outros optassem pelo frio. Pelo quente eu não compreenderia. Isso me levou a notar a distância que havia entre o que poderíamos chamar de dois mundos numa alma. Um primeiro mundo seria a racionalização daquilo que conhecemos. O segundo mundo seria a imaginação daquilo que gostaríamos que fosse de certo jeito.

329 Chá 11/11/94

Isto levou-me a compreender que havia em toda criatura humana, portanto em mim também, um teclado para tocar toda uma musicalidade imaginativa a respeito de um mundo mais ou menos criado pela pessoa. E um outro teclado com uma possibilidade racional de pôr tudo como 2+2=4, preto e branco. Sendo o homem uno, ele não podia ser um ente desalinhavado. Imaginem um homem que não conseguisse mover sincronicamente os braços e as pernas: seria um estropiado. A harmonia e a construção de seu ser exigem naturalmente que essas coisas andem sincronicamente para prestar determinado serviço, como, por exemplo, andar. Nessa perspectiva, procurei estudar a relação que havia entre aquilo que os sentidos me apresentavam – sons, por exemplo – e aquilo que a razão me indicava, na percepção de que certas impressões são expressivas de certas ideias abstratas, e de que certas outras impressões são indicativas de outras ideias. Eu notava que havia uma correlação – como se fossem dois painéis colossais – entre o que os sentidos sentiam e aquilo que a inteligência conhecia, e que o modo de conhecer da inteligência servia-se largamente dos sentidos. Isto depois era trabalhado, era analisado e, conforme o caso, podia gerar uma impressão ou outra. O exemplo mais flagrante disto se dava na hora de considerar a fisionomia das pessoas. A primeira reação que temos diante de uma fisionomia é instintiva e está no fundo de nossa natureza reta. Olhando-se uma pessoa, simpatiza-se ou antipatiza-se. Só depois é que iremos ver se a pessoa é boa ou é má, de acordo com as ideias e com a conduta dela. O fato é que primeiro se faz uma análise sensível, e apenas depois a análise racional, para no fim concluir: “Fulano é tal coisa”. E aí se fecha o juízo sobre Fulano. Percebia, assim, como era construída essa harmonia que deveria existir no homem, e como o homem deveria respeitá-la. Mas ficava visto também que essas correlações existiam e que, quando analisada uma pessoa, podia facilmente acontecer que a forma do nariz tivesse um grande papel sobre a ideia que se iria formar dela. Os olhos, nem se fala. Então a pergunta: que relação há entre o nariz e o caráter? O mesmo nariz que, na face de um, poderia causar a impressão de um bico de águia nobre, arrojado e destinado às alturas, na face de outro poderia dar a impressão de uma nariganga pesada, cacete e difícil de carregar.

O nariz é o mesmo, mas, encaixado no contexto de uma determinada fisionomia, dirá uma coisa; e no contexto de outra fisionomia, dirá outra diferente. Ficava-me a ideia de que podemos fazer todo um trabalho de correlação entre formas, gostos, cores, sons entre si. É o mundo dos sentidos e, depois disso, o mundo da razão. Dessa forma é que podemos emitir um juízo, servindo-nos desses dois teclados. Como é que fui ordenando essas coisas? Muito simplesmente porque a mim me encantava encontrar as correlações. Fazendo-as, eu me percebia mais ordenado e me sentia mais explicado para mim mesmo. E notava que daí nascia dentro de mim uma força face aos outros, e também servia para explicar-me, para dizer, para perguntar, para inquirir, para invectivar, para ser amável. Tudo que eu quisesse fazer, eu me manobraria a mim mesmo de maneira muito melhor agindo assim. E, tendo-me compreendido a mim e recebendo o apoio da minha razão para aquilo que eu fazia, me sentia muito melhor, mais à vontade. Eu tinha encantos por essas correlações e as exercitava como quem se distraía. Em certos momentos elas formavam grupos de correlações, e então eu correlacionava uns grupos com os outros grupos330 . *

Essas considerações em algo metafísicas que eu fazia preludiavam, sem eu o perceber, os ambientes-costumes-civilizações, e se juntavam no meu espírito da maneira que a seguir exemplificarei. Um tio meu possuía em casa uma grande concha de louça, toda ela revestida de uma espécie de nácar por dentro. Por fora era comum, feia como são essas conchas, mas nela aparecia uma pérola que estava se formando. As pessoas todas achavam interessante ver a pérola se formando. E eu achava interessante ver o nácar refletindo naquela concha. Que efeito produzia esse nácar em mim? Quando a luz incidia nele dentro da sala, eu percebia, naquele jogo muito discreto de cores, uma interrelação entre aquelas cores bonitas e cheias de luz com algo que me parecia ser uma afinidade das próprias qualidades de certas almas, e as relações de afinidade de umas tantas almas boas com outras.

330 Chá 6/9/94

Bem entendido, antes de tudo, mamãe. Parecia-me que mamãe tinha isso dentro de si mais do que qualquer outra. Mas também – isto por causa dos costumes daquele tempo – no trato entre as pessoas entre si, muito impregnado ainda de estados de alma que tinham sido católicos, muito embora essas mesmas pessoas já fizessem isto de modo muito laico. De onde ainda existir ali um certo prolongamento da influência católica. Era esse um traço de alma que criava relações bonitas. E algumas dessas relações me pareciam ter certa relação com esse nácar. De um modo geral, um pouco disso reluzia em todas as relações das famílias de boa categoria em São Paulo. Não precisava ser do píncaro, bastava ser de uma boa categoria. A vida social tinha, portanto, muitos aspectos assim. Nisto tudo eu via, como já disse, o reflexo de alguma coisa metafísica salpicada de sobrenatural, e também de ordem psicológica, que tinha qualquer relação com o pulchrum moral que aquele nácar representava in abstracto. Depois eu fazia aplicação para essas, aquelas e aquelas outras situações. Para mim, isto era antes de tudo, na ordem dos valores, uma beleza sobrenatural, que eu não sabia que era sobrenatural, mas “sentia” que era; beleza esta que era também metafísica, moral, psicológica, social. Por exemplo, a expressão dos objetos de decoração em minha volta em parte realçava a compreensão dessa correlação. Duas cadeiras poderiam ter relações entre si, estáticas, mudas e eternas, no sentido de que seriam infindas, tal como duas pessoas que se sentassem nessas mesmas cadeiras e conversassem com a distinção e a elevação de alma que a cadeira pedia. Assim, os móveis repetiam de algum modo a sociedade humana, e a decoração de uma sala ou de uma casa inteira poderia repetir o estado de alma da família. Na restauração da civilização cristã que está por vir – e que chamamos de Reino de Maria –, suponho que venha a ser esta, de um modo todo especial, a atmosfera que predominará, atmosfera esta por assim dizer impregnada das graças do Divino Espírito Santo. Será então graça-graça, no sentido estrito dos compêndios de Teologia: a “participação criada na vida incriada de Deus”, e a qual se fará sentir depois de se ter modelado tudo isso. Falei dos efeitos da decoração. Mas também as pessoas, ao frequentarem determinado ambiente, deixavam não sei que marca imponderável nesse mesmo ambiente. Elas se refletiam nos móveis, como os móveis as refletiam. Casas, por exemplo. A arquitetura das casas tinha algo disto.

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