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O senso metafísico
from Meu Itinerário Espiritual - Compilação de relatos autobiográficos de Plinio Corrêa de Oliveira vol 1
by Nestor
Ficava encantado de ver aquela água correr ao longo da pedra. Mas tinha mais vontade de ver a boca da pedra de onde saía aquela água, e desvendar aquele mistério da água límpida que saía de uma profundidade escura de uma pedra. Analogamente, esta é a beleza de alma própria da operação de explicitar, explicitação que vem depois de um longo trabalho de apalpação interior de suas próprias impressões. Esse processo de explicitação verifica-se em duas fases. Primeiramente, definindo para si o que é que se inteligiu. Em segundo lugar, encontrando a palavra que exprime perfeitamente o que inteligiu. O sentir isto sair do pensamento tem a glória de um nascimento do sol: é uma verdadeira beleza! Tomo aqui a palavra de Jó, apenas invertendo o sentido do que ele disse: “Bendito o momento em que a minha mãe exclamou: nasceu um homem”. Assim, é bendito o momento em que minha alma disse: nasceu um pensamento.
O senso metafísico
Eu tinha um tio-avô que era totalmente ateu. Velho, solteiro a vida inteira, não tinha residência fixa e ia à casa da minha avó, sua irmã, e ficava a tarde inteira fumando cigarro de palha, e se sacudindo numa cadeira de balanço horas e horas. Assim ele ficava ao alcance das perguntas dos sobrinhos-netos que passavam. E como era essa a distração dele, ele respondia de muito bom grado. Uma vez eu pus uma pergunta para ele: “Tio Augusto, eu queria que o senhor me explicasse tal coisa assim, assim, assado”. Ele disse: “Mas essa sua pergunta revela um espírito metafísico, um espírito metafísico que não se deve ter”. Pensei: “Veja o modo como ele pronuncia a palavra metafísico. Dá ideia de uma coisa altíssima, mas na qual não se deve tocar. A própria palavra metafísico é uma música, é uma bonita palavra. Ela musica uma coisa que é estupenda, extraordinária, maravilhosa. Eu serei mesmo um espírito metafísico! E quando eu ficar homem, vou aprender o que é metafísica e o que é um espírito metafísico, para ser metafísico a vida inteira”. Eu era então uma criança de quatro ou cinco anos, mas a graça orientava nesse sentido uma coisa que seria provavelmente um dote natural301 .
301 MNF 11/7/91
A medicina daquele tempo tinha qualquer coisa do nutricionismo de hoje, dava muita importância ao que se come e ao que se bebe como fator de manutenção da saúde. E havia na rua Sebastião Pereira, quase esquina da alameda Glete, um senhor – aliás monarquista e pai do futuro Ministro Marcondes Filho – que possuía, no fundo da casa dele, uma horta e uma criação de cabras. Todas as manhãs essas cabras saíam cedo com seus guizozinhos, e sujeitadas, creio eu, por uma espécie de jugo de madeira em volta do pescoço. E elas vinham com aqueles sininhos tocando. No percurso, havia casas que constituíam freguesia fixa do leite de cabra para as crianças, o qual era tido como ultra saudável e deveria ser tomado com conhaque francês ou com vinho do Porto, conforme a criança gostasse. Todos os dias nós tomávamos e eu gostava muito. Mas eu, antes de as cabras chegarem em casa e ainda meio dormindo, ouvia de longe o ruído dos sininhos batendo numa porção de distâncias diferentes, conforme o trajeto, que devia ser em ziguezague, que o homem executava distribuindo esse leite. Os sininhos às vezes chegavam então mais perto, depois afastavam-se para mais longe. E eu reconhecia naturalmente que era o meu leite de cabra que vinha chegando. Eu gostava de ouvir aquele aproximar-se e distanciar-se, como quem diz: “A gostosura está vindo... Não, ela está indo, mas ela acaba voltando, e acaba chegando aqui”. Mas, no meio dessas observações, uma consideração ia se delineando: “As coisas agradáveis da vida são assim. Elas se aproximam, se distanciam, fazem ziguezagues, mas deixam sempre um sinal de que elas chegarão. E isto é uma regra de vida meio metafísica, a qual se expressa nessas idas e vindas do leite de cabra, tal como se expressa também nas idas e vindas dos negócios, nas idas e vindas das amizades, nas idas e vindas das estações de água ou das estações balneárias, nas idas e vindas do que se queria ou não se queria. Tudo seguia essa irregularidade simpática e amável”. E eu ficava então meio dormindo e meio procurando interpretar a marcha do leite de cabra. Quando o leite de cabra chegava, eu o tomava com redobrado interesse, julgando que era uma gostosura da vida que me chegava. E bebia esse leite com goles ávidos próprios à minha truculência.
A criada dizia: “Seu Plinio, o guardanapo também veio”. Eu entendia que era para enxugar a boca e pensava: “Essa mulher!” Enxugava e dizia: “Está lá”. Ela ia embora satisfeita e eu mais satisfeito ainda. E afundava na roupa de cama por mais meia hora ou coisa assim302 . *
Havia outras coisas assim que me levavam a considerações dessas. Eu toda a vida tive sono muito bom e acordava normalmente às sete e meia, oito horas da manhã. Mas vez ou outra me acontecia de acordar de madrugada. E então começava a ouvir os barulhos da rua303 . Era, por exemplo, o ruído dos bondes que passavam304. Vinha-me então a ideia de motorneiros atravessando a noite, dirigindo bondes inutilmente vazios, cuja parte da frente era uma abertura sem janela, sem nada: era a ventania fria, a neblina seca e prateada de São Paulo daquele tempo reluzindo no meio de lâmpadas a gás, mas que dentro da neblina pareciam sóis de prata. Imaginava-os depois se recolhendo exaustos, àquela hora, para ir dormir na casa deles. E imaginava ainda como seria a chegada deles em casa, jogando-se na cama e mal podendo se movimentar devido ao cansaço, e daí a 15 ou 20 minutos, começar a gozar a cama simples deles, achando que era uma beleza. Isso tudo me encaminhava para a formulação de um princípio geral: “Esses motorneiros têm uma vitalidade e uma disposição para conduzir o bonde do outro mundo! Vejo na neblina um homem exausto, mas chamejante, vivo e com a vitalidade dele servindo de cobertor interno. Ele vence o frio de tão vivo que ele é, e não tanto por causa do agasalho que ele traz. E com aquela bigodeira – porque quase todos usavam bigodes – úmida de neblina, mas sentindo uma espécie de vitória sobre a neblina que ele atravessa heroicamente”. E quando ele entregava o bonde e ia para casa dormir, eu julgava que ele tinha certa sensação de um batalhador que venceu a garoa, venceu a noite, venceu a solidão. Vinha-me então a ideia de que a vida nas classes mais humildes, vivida com jeito, apresentava uma deliciosa compensação que não havia em nossa classe. Em nossa classe, as coisas amoleciam um tanto. E que, no fato de ser popular e não ter tido muita educação, nem ser muito lixado,
302 CSN 2/7/94 303 Palavrinha 12/8/91 304 CSN 2/7/94 e Chá 25/1/95
havia uma espécie de liberdade e de movimentação que proporcionava, sob certo aspecto, mais gozo da vida do que as maneiras civilizadas. Era até perigoso esse pensamento, porque podia levar para consequências meio barbarizantes.
Acentuava essas impressões o fato de que, mais ou menos depois de os bondes terem se recolhido, fazia-se na alameda Glete um silêncio. De repente, no meio desse silêncio, eu ouvia de longe um barulho: pun-pun, pun-pun, pun-pun! Era um aleijado que vinha mancando com a sua perna de pau, mas com tanta decisão, com tanta regularidade e relativamente com tanta pressa, que me parecia um compasso: pun-pun, pun-pun! E, naquele sono gostosamente posto entre travesseiros de marcela, erva brasileira muito perfumada, eu ouvia, passando perto de mim, aquelas pancadas no chão dentro da madrugada, dentro da incerteza, sem nenhum desfalecimento, sem parar para respirar: pun-pun, pun-pun! Essa decisão em andar, em bater a perna, e essa regularidade que parecia um compasso, exprimia com energia a vontade de um homem infortunado – infortunado por causa da amputação e por ser pobre e obrigado a trabalhar àquela hora da madrugada. Fazer serviço a pé naquelas condições deveria ser uma coisa difícil, mas ele a vencia galhardamente305 . Nesse andar com resolução, com método, com energia, parecia-me sentir nele a cadência operosa de toda a São Paulinho que se preparava para acordar e para o dia inteiro produzir naquele ritmo. O perna-de-pau parecia ritmar isto306 .
Todas essas reflexões eram,a seu modo, um misto de realidade concreta e de “paradização”. E, naquelas coisas concretas que eu via, procurava regras universais que elevavam a natureza do assunto a pontos muito mais altos, como por exemplo ao pensar no meu aleijado, no motorneiro. Mas, notem bem, regras universais tiradas da observação da última plebe. Era o gosto e o interesse que eu encontrava na última plebe, e a possibilidade de ser feliz enquanto plebeu. De onde exatamente a incom-
305 CSN 2/7/94 306 CM 17/11/85