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O combate contra a tentação da mediocridade

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ÍNDICE DE LUGARES

ÍNDICE DE LUGARES

registradora portuguesa, oposta a essas situações a mais não poder, criou-me uma dificuldade para praticar a virtude da confiança406 .

O combate contra a tentação da mediocridade

Tive tentações espantosas de mediocridade. Na rua Barão de Limeira, bem adiante de nossa casa, tinha a casa pertencente a uma alemã, pessoa do nível social da Fraülein, que correspondia a um padrãozinho médio de vida, suculento e tão bem instalado, limpo e bonitinho que me veio – Vuuuuu!! – o seguinte pensamento: – Está vendo? Isto é uma vida gostosa, sossegada, em que você pode renunciar a qualquer esforço, espraiar-se completamente e levar uma existência agradável. Vou, com jeito, sem criar problemas, tomar distância da minha família, do meio em que ela vive, e vou me meter aqui dentro, vou me imergir na pequena burguesia407 . *

Sempre me interessou soberanamente a análise da vida, a observação da vida. Saber como é esse, como é aquele; como vive, como pensa, o que é que acha, para onde vai; como se relaciona com este, com aquele e com aquilo; como aconteceu, como vai acontecer, isto me atraía a atenção fabulosamente. Cada qual é feito de um modo, mas acho que essa característica é inerente à nossa vocação. Isto se manifestava, por exemplo, em relação a toda a gente que morava em torno do largo do Coração de Jesus e formava quase uma vida de aldeia muito aconchegada em torno da igreja. Quando chegava a hora marcada, vinha o padre, expunha o Santíssimo, começava o Tantum Ergo. Depois vinha a bênção do Santíssimo: tocava o sino, movimento de muito recolhimento e de muita elevação espiritual, de muita piedade. Por fim, aquela gente saía e eu ficava prestando atenção nela. Era um mundo que não era o meu, era fechado para mim e eu fechado para eles, mas eu queria saber como era. E daí ficar observando. Eu os olhava dentro da igreja, os olhava enquanto saíam, enquanto tomavam a água benta. Não sei o que pensariam daquele menino curioso

406 MNF 28/3/91 407 EVP 29/5/83

que olhava para eles. Mas enfim, eu olhava. Não contava isto para ninguém em casa, porque julgariam extravagantíssimo que me dedicasse a essas cogitações sociais. Percebia que, quando essas pessoas entravam na igreja, elas eram o que descrevi; mas quando saíam, elas saíam com uma dimensão dentro da alma muito maior. Certos reservatórios interiores de resignação, de sublimidade, de elevação de espírito estavam reabastecidos até o dia seguinte. O Sagrado Coração de Jesus as tinha dessedentado, e elas tinham-se abeberado nesse Sagrado Coração de Jesus, a rogos de Nossa Senhora Auxiliadora. Saíam, portanto, saciadas, e se desfaziam na bruma ainda violácea do dia que estava se pondo. E o menino curioso ia sozinho para casa fazendo suas reflexões. Cheguei a me pôr uma pergunta do ponto de vista meramente individual, sem cogitar da vocação – eu não tinha noção ainda de vocação –, e minha ideia era esta: – O que convém mais para eu levar uma vida agradável: integrar-me nesse mundo agitado e brilhante, mas trabalhoso, da alta sociedade paulista, ou me destacar desse meu meio e integrar-me no mundo do largo do Coração de Jesus, ou seja, no mundo da vidinha, do encolhido, vivendo à luz ou à sombra do santuário, sem aventuras nem riscos, sem problemas nem complexidades, e simplesmente me deixando afundar no anonimato, no cinzento, no pardo como uma figura que some na penumbra agradável do largo do Coração de Jesus? Hesitei seriamente entre uma coisa e outra. Tanto é verdade que a atração nobiliárquica não é uma preferência, não é uma mania para mim, que os meus lados fracos me teriam levado exatamente a me afundar: “Ahhh! deixe correr o marfim! Eles que se arranjem, vou aqui levar uma vida sossegada, rezando e fazendo pouco mais ou menos nada. Desde que eu viva bem, não me incomoda mais nada”. Por que razão não me deixei levar por essa hipótese? Por uma ideia do dever. Qual era a ideia do dever? Volto a dizer que não era a ideia da vocação, porque a ideia da vocação eu não a tinha ainda, ela não se tinha esboçado em meu espírito. Era a ideia seguinte: cada pessoa que leva consigo um nome histórico e se afunda nessa bruma, é como uma estrela que se apaga no céu. Embora seja menos trabalhoso para uma estrela afundar na bruma do que ficar cintilando pelos séculos dos séculos, a obrigação da estrela é cintilar. Eu, Plinio, tinha o direito de me afundar. Eu, Plinio Corrêa de Oliveira, não.

Essa opção preferencial pelos nobres, eu a exerci não em virtude de uma ideia de comodismo, de vantagens, de prazer, mas de uma ideia do dever e vencendo o meu pendor naturalmente indolente408 . Havia algo em mim que dizia com veemência o seguinte: “Você não tem o direito de fazer isso. Nunca pense nisto. Afaste isto como você afastaria um pensamento contra a fé ou contra a pureza. Porque será o seu aviltamento e a sua vergonha. Você é feito para essa borrasca e para essa luta, para esse cenário. Não se avilte, pondo-se mais baixo do que Deus lhe pôs. Crie vergonha na cara, resista ao comodismo e entre nessa borrasca”. Sou muito amigo das hierarquias. Mas nessa hora do comodismo não valia a hierarquia. Valia a irresponsabilidade, o delicioso farniente, concebido, notem bem, dentro de uma vida virtuosa. Não pensava nem um pouco em transgredir os Mandamentos. Era o contrário: a ideia era cumpri-los comodamente à sombra da igreja, indo de manhã à Missa, de noite à bênção, cantando junto com os beatos e os carolas, afinando com eles e bocejando com eles. Se tivesse seguido esse caminho, qualquer padre me diria que isto não é pecado409 .

Assim, em várias ocasiões de minha vida se apresentaram fórmulas que eram, no fundo, para me induzir à vitória da indolência dentro do brilho, ou à opacidade tranquila de um Zé Ninguém, mas que vive também sem se incomodar com ninguém. Dona Lucilia me ajudou a enfrentar essas tentações. Ela tinha uma alta ideia do que era o papel dos antepassados na vida de uma pessoa, e o papel do nome de uma família, que para ela era como uma bandeira carregada por um soldado: o indivíduo devia viver pelo menos à altura de seus antepassados mais ilustres. É uma honra para ele carregar a bandeira, e uma vergonha desonrar essa bandeira ou entregá-la ao adversário por preguiça, por medo. Para uma pessoa que não tivesse a vocação especial que eu tinha, isto era perfeitamente verdadeiro. Ela estimulava muito que o indivíduo não procurasse ser um ambicioso do dinheiro. Mas ambicioso de situações, de honras, de respeito, de adquirir respeitabilidade por suas virtudes pessoais, ela estimulava muito410 .

408 Jantar EANS 18/12/85 409 CSN 6/8/83 410 Chá SRM 30/12/88

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