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A terrível cruz da incompreensão e do isolamento total

é “engraxar” em italiano, mas tenho ideia de que ele dizia: “Lustrascarpe”, não sei o quê com “vernice”. E era toda uma ária que cantava o engraxate.

Nós achávamos graça quando entrava o engraxate, e então palmas e palmas. E eu era, naturalmente, um dos puxadores das palmas. E depois, em casa, cantava o “engraxate”. E todo mundo tolerava isto de modo surpreendente.

Isto revelava uma tendência para súbitos cansaços da clave superior, meio subconscientes. E súbitas angústias de não levar uma vida desengajada, não responsável, e feita para meu próprio lazer. Não percebia isso no começo, mas não era uma incompatibilidade absoluta. Percebia que uma coisa não era a outra, mas achava que podiam coexistir bem. Com o tempo fui percebendo que não, e nesse período os meus olhos foram se abrindo mais para isto. E quando me engajei inteiramente no Movimento Mariano, cortei com essa tendência completamente6 . *

Nas fotografias que tirei na Linha de Tiro7 e em outras ocasiões antes de me formar em Direito, esse lado brincalhão havia desaparecido e o outro lado preponderou, graças a Nossa Senhora, com exclusão completa do primeiro lado8 .

A terrível cruz da incompreensão e do isolamento total

São Paulo naquele tempo, era uma cidade de uns 500 mil habitantes e, sobretudo nas famílias mais ricas, todo mundo conhecia todo mundo, todo mundo era meio primo de todo mundo, era colega de infância de todo mundo.

De maneira que a vida de cada rapaz, de uma família com mais posses, era conhecida por todos os rapazes daquele ambiente social. E o resultado é que, se o rapaz violasse o princípio de que, para o homem, era tão feio ser puro quanto era feio para a mulher ser impura, ele ficava um verdadeiro pária, um verdadeiro leproso, caçoado, sem prestígio, abandonado, era um homem liquidado.

6 MNF 12/12/85 7 “Linha de Tiro” era o antigo nome dos atuais Tiros de Guerra, instituição do Exército brasileiro que dá formação militar básica para aqueles dentre os convocados que necessitam conciliar a instrução militar com o trabalho ou estudo, ou vivem em cidades do interior onde não haja quartéis do Exército. 8 MNF 12/12/85

Não tardei a perceber que a única forma que tinha de fazer aceitar a minha conduta era ter um amigo só – no caso o meu primo Reizinho de que já falei – o qual era um rapaz um ano mais moço do que eu, que não guardava a castidade, achava feio que eu guardasse a castidade, mas que compreendia a minha posição e que, pelo gosto de estar comigo, de conversar comigo, não levantava a questão. E nós saíamos juntos, íamos juntos para um lugar, para outro, com muita frequência.

Com os outros, tomava um contato muito superficial: ia a reuniões etc., mas nunca entrava em intimidade com nenhum deles. Conversava com este, com aquele, com aquele outro. Mas, íntimo meu, só este. E com isto borboleteava um pouco por cima das coisas, e deixava assim uma espécie de espaço entre mim e eles, que fazia com que eles percebessem a minha boa orientação, mas sem os friccionar a ponto que eles lançarem uma ofensiva contra mim. Mas, bastava que qualquer um a qualquer momento, numa roda qualquer de rapazes, por raiva ou por qualquer outra coisa, quisesse me interpelar, que estava criada a crise.

Passei uns quatro ou cinco anos, dos 14-15 anos até o momento de minha entrada na Congregação Mariana, numa vida de agonia. Porque eu nada temia tanto no mundo quanto perder o estado de graça. Mas, também, de nenhum modo, queria ficar na situação de um rapaz que conheci, e que se recusou a ir a um prostíbulo e caiu na ojeriza, na raiva dessa roda. Espalharam a respeito dele o boato que ele trazia azar, e que cruzar com ele na rua, trocar uma palavra com ele, trazia qualquer coisa de ruim: doença, perda de dinheiro, briga em casa, ou qualquer outra coisa assim, e por causa disso todo mundo fugia dele como se ele fosse um leproso. Era um homem inutilizado9 .

Como já disse, era uma vergonha para um moço não ter pelo menos um amigo. E o único que eu tinha era o Reizinho. Mas percebia que ele já se ia preparando para embarcar num caminho ruim, e eu estava firmemente resolvido a não embarcar nesse caminho.

Percebia que haveria um momento em que nós deixaríamos de nos dar, porque ele, para embarcar nesse caminho, tinha outros amigos, tinha outros atrativos. E a minha companhia tinha que ser insípida para ele, como a companhia dele ficaria cada vez mais antipática para mim, e, portanto, isso iria se dissolver.

9 SD Sábado 13/08/88

Caminhava, assim, para a situação francamente penosa e vergonhosa de um moço sem amigos, o que, na São Paulinho daquele tempo, não se tolerava. Isto era uma espécie de fatalidade para a qual eu caminhava irremediavelmente10 .

Quando morava na casa de minha avó, o escritório de meu pai ficava na esquina da alameda Glete com a rua Barão de Limeira. E era escritório meu também, por ser uma sala muito grande. Nela havia móveis que tenho em meu escritório até hoje. Havia uma mesa menorzinha para mim, colocada ao lado da de meu pai. Era então estudante do último ano ginasial, comecinho da Faculdade de Direito.

Tinha o hábito de andar de um lado para outro enquanto estudava, preparando meus exames. Mas, muito mais do que preparar exames, eu estava montando gradualmente toda a Contra-Revolução dentro do espírito, e preocupado com mil coisas que me atormentavam dentro da linha da minha própria salvação.

E então sentia muito o choque dessa preocupação com a despreocupação alegre da São Paulinho rica e cinematográfica daquele tempo.

Não posso me esquecer de que, aos domingos, havia a matinê no Cine República, um cinema que tinha, assim como os teatros, frisas e depois plateias, camarotes.

Uma sessão cinematográfica levava quatro horas. E então havia intervalo, em que as pessoas iam para as frisas das senhoras para cumprimentá-las.

Os homens iam para uma espécie de hall: os que fumavam, fumavam; os outros conversavam entre si. Era toda uma vida social que se levava ali, mas em um ambiente de otimismo, de alegria, uma coisa extraordinária.

A música era ainda com orquestra, porque não havia essas caixas de som de hoje.

Eu ia também a essas matinês. Mas sentia o choque daquela vida despreocupada com as minhas preocupações. Achava aquilo tudo uma besteira. Não achava graça em nada, assistia àquelas fitas cinematográficas, gélido. Assistia porque tinha de assistir. E assistia pensando nos meus assuntos. Quando acendia a luz, fazia uma cara alegre e passeava no meio dos outros. Tinha alívio quando chegava a hora de ficar sentado e pensar.

Mas notava a diferença do gozo da vida que eles tinham, com a vida apertada que eu levava. E a vida apertada pesava sobre mim.

10 Chá PS 10/2/95

Lembro-me do dia em que, estando no tal escritório de meu pai, vi passar um automóvel esportivo com quatro ou cinco mocinhos de minha idade, colegas meus do Colégio São Luís. Em cima da capota iam mais de um, sentados. E o automóvel seguia um pouco devagar, para os de cima não caírem.

Como o fato era inteiramente inusual, todo o mundo que via aquilo parava e comentava, e eles davam risadas também.

Naturalmente, passavam pessoas conhecidas deles. Eles paravam, brincavam e era um show de alegria, de despreocupação, de esperteza.

Diante daquilo eu pensei: “As pessoas, quando me encontram, não têm nenhum prazer de me encontrar. Fazem-me um cumprimento cerimonioso, porque sou obrigado a tratá-los à distância e cerimoniosamente. Mas veja que alegria demonstram esses meus colegas quando aparecem. E como a vida é agradável e leve para eles”.

Lembro-me de que tive um choque e pensei: “Mas vou ter de aguentar esse meu papel, e a vida inteira!”

Depois fiz um pecado de juízo temerário: “As gerações que vêm depois da minha, vão ser ainda mais assim do que esses aí. E, portanto, meu contraste vai ser ainda maior com os que vierem”.

E pensei: “Não, isto é necessário enfrentar, é para a Contra-Revolução e vou fazer por amor a Nossa Senhora. Pego esse fardo da reflexão e do pensamento, e o visto como se fosse uma roupa de chumbo. E andarei com ele até o fim dos meus dias”.

Era um sacrifício de espírito, muito mais pesado do que sacrifício de se flagelar, jejuar, muito embora eu respeite muito os sacrifícios físicos.

Hoje, em razão de meu regime alimentar, vivo num jejum perpétuo. Muitas vezes, falando aos senhores, sinto-me morto de fome. E sei que, chegando em casa, irei comer mal, por ser uma comida de regime.

Mas isto não é nada. Os senhores não me veem aborrecido por causa disso. As coisas duras são essas outras.

Por quê? Porque, quem cumpre o seu dever até o fim, expõe-se ao perigo quase inevitável de ser, durante a vida inteira, um perpétuo incompreendido. E, portanto, um perpétuo interpretado com má vontade, e às vezes até pelos mais íntimos11 .

11 Chá PS 27/11/87

Em concreto, eu me sentia no meu interior profundamente chocado e rejeitante, repulsivo da superficialidade de espírito que notava já no meu tempo.

Incongruência, inconsequência, besteira, frivolidade, tudo isto que naquele tempo se chamava espírito hollywoodiano, e que era uma coisa sem nome, ia tomando conta do mundo como um incêndio.

E via os bons, via o clero – grosso modo, o clero naquele tempo era bom – não atinar para a entrada desse espírito e deixá-lo entrar à vontade: “Não tem nada, o que é que tem?”,uma coisa horrorosa. E isto me causava um trauma medonho.

Só encontrava apoio para minha seriedade de alma meditando na seriedade divina de Nosso Senhor na Paixão.

Dizia para mim mesmo: “O teu modelo foi infinitamente mais sério do que tu, trata de imitá-lo”12 .

A batalha foi ganha em algumas etapas.

Uma etapa foi resistir, apesar da presença da ameaça. Outra etapa foi: caso a ameaça saltasse por cima de mim, também resistir. E a terceira etapa foi passar para o contra-ataque.

Em termos concretos, durante muito tempo eu estava resolvido a viver e morar em frente da ameaça, mas não ceder.

Depois, essa ameaça quase pulou em cima de mim, quando o Reizinho se dissociou de mim e fiquei completamente isolado. Estava na antevéspera desse isolamento ser percebido pelos outros, e estes começarem a me perguntar: “O que é que houve entre você e o Reizinho? Vocês estão brigados por quê?”

Aí resolvi esconder-me para que não percebessem isto. Quer dizer, esconder-me significava não ir aos lugares sociais onde ia antes, para ver se me esqueciam, e isto se passasse em branco.

Por causa disso, não querendo que em minha casa percebessem a mudança que estava havendo na minha vida, saía todas as noites depois do jantar.

Não dizia que eu ia me encontrar com o Reizinho, mas ficava no ar que era isso que acontecia. Ia então para um cineminha de quinta categoria, o Cine Roma, situado na rua Barra Funda, perto de um velho teatro que ainda existe, chamado São Pedro. Meu bonde passava em frente ao Cine Roma, era caminho. E lá ficava sentado, assistindo fitas de cinema que às

12 CSN 25/9/82

vezes já havia assistido, enchendo o tempo sozinho até chegar a hora em que o cinema fechava13 .

E pensava: “Que coisa horrível, eu no Cine Roma sozinho!”

Fui várias vezes à noite no Cine Roma e executei esse programa repetidamente, mas diante da perspectiva de passar anos fazendo isso.

Lembro-me dos intervalos. Saía para me mover um pouco e andava no foyer que havia em todo cinema, antes da sala de projeção, onde os homens fumavam. Eu olhava e pensava o seguinte: “Esses rapazes que estão aqui, o que é que eles pensarão deste coetâneo deles, sempre só e tão diferente deles e tão superior a eles. Eles não vão querer se pendurar em mim e puxar conversa? Ou a democracia ainda não chegou a um ponto tal que isso não acontece?”. Mas eles não queriam se pendurar em mim, nem percebiam que eu era heterogêneo em relação a eles.

Que noites horrorosas! Que coisas medonhas! E depois, a ideia: “Isto, os meus círculos vão descobrir. E quando descobrirem, sai um estouro que transpira para toda sociedade, e será contado nas rodas da sociedade. E então o meu cartel está feito”14 .

Pouco depois aparecia em casa, e aparecia já conversando sobre outros assuntos e disfarçando. Mas era uma situação que não poderia durar15 . *

E o clamor das coisas que me cercavam dizia o seguinte: “Jogue fora esse martírio. Seja um rapaz como os outros, brinque sem arrière-pensées e divirta-se como eles, porque a vida está aberta, larga para você, e você pode gozá-la à vontade”.

Num segundo sentido estava: “Largue a religião também”. Era onde o demônio queria chegar. E depois largaria mesmo, porque pouco depois de eu resolver largar aquilo que me maravilhava, largava a pureza. Isto porque a castidade mantida no terra-terra, sem todas essas maravilhas que a cercam, é uma castidade desprotegida e não resiste. E não iria durar comigo, porque era muito gozador da vida e as coisas que achava gostosas, achava gostosíssimas, e me agradavam e me atraíam fabulosamente.

Vocês podem imaginar se eu renunciasse a este mundo interior, onde é que iam parar as coisas.

Era uma tentação medonha e olhava para eles e dizia: “Por que sou o único sério entre essa gente? Por que é que tenho de viver cheio de nos-

13 Chá SRM 18/1/93 14 CSN 17/09/94 15 Chá SRM 18/1/93

talgias, cheio de recusas, cheio de censuras, cheio de cordões internos de isolamento para não me deixar levar por isto, por aquilo, aquilo outro?”

E uma voz que me dizia: “Ache bom o que os outros acham bom, queira bem ao que os outros querem bem, seja um com eles, e você terá a vida deles. Olhe como eles riem, olhe como eles brincam. Você diz uma coisa, eles dão gargalhada, o único que está diante de si chorando é você? Que vida faz isso?”16

Era esta a minha situação quando me inscrevi na Faculdade de Direito, famoso foco de laicismo e de positivismo jurídico oposto à doutrina católica.

Lembro-me de que, ao me inscrever nessa Faculdade, senti o coração me bater na garganta, de medo de que o ambiente da Faculdade me fizesse perder a fé. Pedi ardentemente a Nossa Senhora que me desse os meios de conservar a fé católica nessa fornalha de ateísmo, ou pelo menos de positivismo, na qual eu entrava17 .

Seria normal e seria bonito que, à medida em que a vida fosse para a frente, a luta fosse cada vez mais enérgica, os sofrimentos cada vez maiores e as orações também cada vez maiores, até chegar num clímax.

Mas aconteceu que tive sofrimentos que ficaram para trás, e que foram mais dolorosos do que os sofrimentos que tenho presentemente.

Por exemplo, o período de meu isolamento quando era mocinho, de que acabo de falar. Foi um período tão agudo de sofrimento que, o que veio depois, trouxe sofrimentos muito grandes, mas não foi igual àquilo.

Hoje tenho um mar de sofrimento, mas não é o sofrimento de quem não encontrou ninguém. Os senhores não podem ter ideia do que é o isolamento absoluto, mas absoluto18 .

16 CSN 17/09/94 17 Entrevista 21/06/90 18 Chá SRM 8/3/92

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