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O lírio nascido do lodo, durante a noite e sob a tempestade
Todas as tentativas de romper o cerco davam em insucessos aflitivos. Então resolvemos, um pouco disfarçadamente para nós todos, pintar todo o andar térreo para que a sede tomasse um aspecto mais apresentável, mais agradável, melhor. Como eu não tinha habilidade nenhuma para isso, nessas noites ia para o meu escritório na cidade. E os outros ficavam lá, ficavam pintando.
Então dois membros do Grupo, dos quais um apostatou e outro já faleceu, foram me procurar no escritório para me dizer que eu deveria prestar atenção na minha vida, porque devia haver uma maldição qualquer, pois não se compreendia que nós estivéssemos num tal descaminho. E fizeram-me o que os amigos de Jó fizeram com Jó.
Aquela noite foi uma das duas noites de minha vida em que passei completamente em claro, não dormi, porque refiz todo o meu exame de consciência, porque eu achava que eles tinham razão. Devia haver um defeito em mim, deveria haver uma falta de generosidade que era culpada de tudo isso. E foi um verdadeiro tormento, uma verdadeira tortura250 . *
Confesso que, retrospectivamente recordando-me hoje desses fatos, acho que esse foi o trecho mais bonito de nossas vidas. E por uma razão: nós fomos fazendo ali uma série de coisas que pareciam absurdas, mas que era só o que nós poderíamos fazer para continuar a viver. Depois, todas essas coisas deram um resultado espetacular. Quer dizer, Nossa Senhora deixou cair sobre nós um inverno rigoroso, Ela deixou cair todas as folhas de nossas árvores. E nós, então, começamos a fazer jardinagem em pleno inverno. E a árvore começou a dar flores e frutos em inverno. Exatamente isto foi a coisa mais bonita de nossa vida. Foi um tempo de provação tremenda, mas foi também um tempo de perseverança251 .
O lírio nascido do lodo, durante a noite e sob a tempestade
Depois de algum tempo, ficou claro que o Grupo continuaria a existir.
Aí eu saí de dentro da toca. Mas de que jeito?
Indo jantar todos os domingos com os componentes do Grupo em um dos melhores restaurantes de São Paulo.
250 EE 18/07/91 251 Palestra sobre Memórias (VIII) 13/8/54
Íamos todos com o distintivo, evidentemente. Além disso, chegando lá, fazíamos o “Em nome do Padre” antes e depois das refeições, o que absolutamente ninguém fazia em nenhum restaurante de São Paulo. Mas os membros do Grupo tinham recomendação de fazer dois “Em nome do Padre”: um como quem abre a oração e depois outro como quem fecha. Sentavam-se às mesas de um modo alegre, calmo, risonho. Se houvesse ocasião para dar risada de alguma coisa, faziam como quem se sentissem inteiramente à vontade.
Tendo passado um bom tempo desde que adquirimos esse hábito, encontrei-me com um padre que era muito chegado ao Cardeal Motta. Este sacerdote pouco depois tornou-se bispo aqui. E ele me disse o seguinte: – O Cardeal está muito contente com os senhores. Os senhores não levantaram oposição contra ele, não falam mal dele, nem nada. Ele até julgaria que as coisas estão inteiramente em ordem, se o senhor não continuasse a manter aquele grupo. Sempre os mesmos amigos daquele tempo passado. De mais a mais, o senhor frequenta só os restaurantes da alta roda, e em muitos restaurantes fica todo mundo vendo que, apesar de tudo, seu grupo existe. – Mas o que é que o Sr. Cardeal queria? – Que o senhor se separasse desses amigos e desfizesse essa roda; não jantassem mais juntos aos domingos, à noite. – O Sr. Cardeal sabe perfeitamente que se trata de pessoas honradas, de uma moralidade ilibada, e que são católicos que rezam diariamente o rosário. São, portanto, para mim, amigos exemplares. Eu não tenho nenhuma razão para dispersá-los. Pelo Direito Canônico, se nós constituíssemos uma associação, ele teria o direito de dispersar. Mas, sendo como somos, um grupo que não é uma associação, ele não tem esse direito. Ele está intervindo na minha vida particular e na escolha de meus amigos particulares. Esse direito ele não tem e eu não tolero. Diga a ele que eu vou continuar a fazer exatamente o que eu estou fazendo.
Mas, mandando-me este recado, o Cardeal passava recibo: o comparecer nos restaurantes da mais alta roda; comparecer sempre aos domingos; e comparecer desse jeito, era marcar o que São Paulo tem de mais alto.
Pensei: “Portanto, foi encontrado o terreno em que eu vou continuar a combatê-lo, sem ele poder me amolar”. Nisso estamos252 . *
Nosso período catacumbal durou quatro anos. Mas quatro que traziam constantemente consigo os tristes sintomas de um estado definitivo e sem
252 Relato Chá PS 14/6/95
remédio. Imagine um pugilo de líderes já sem liderados, um grupo que já cumpriu sua missão, sobreviveu a ela, e fica sobrando. Esta era a nossa situação quando o mais velho de nós tinha 40 anos e o mais jovem 25!
Resolvemos continuar unidos, em uma vigília de oração e análise dos acontecimentos até quando Deus quisesse.
Na pequena sede na rua Martim Francisco que havíamos alugado, reunimo-nos todas as noites sem exceção. Recordação, sem amargura nem orgulho, das glórias da imolação dos dias idos. Análise solícita e entristecida, da deterioração discreta e implacável da situação religiosa. Estudos doutrinários em comum. Convívio fraterno e cordial. Assim a Providência colocava as condições ideais para nos unir. Veio daí um tal enrijecimento de nossa coesão no pensar, no sentir e no agir, como mais seria difícil imaginar. Escondida em terra, a semente germinava.
Ainda me lembro de um dia de janeiro de 1947, em que noticiei a meus amigos que, segundo uma emissora, Pio XII nomeara bispo de Jacarezinho o Pe. Sigaud. Como? O quê? Nossa alegria era grande, mas a dúvida ainda maior. O Pe. Sigaud, durante o vendaval, fora mandado como missionário à longínqua Espanha. Voltaria então? Sim, voltaria. E nossa alegria subiu ao céu como um hino. Uma estrela se acendia, a brilhar na noite de nosso exílio, sobre os destroços de nosso naufrágio!
Contra toda a expectativa, outra alegria nos esperava no ano seguinte. Ao chegar eu, numa noite de março de 1948, à nossa catacumba, um amigo me esperava à porta, efervescente de júbilo. O Cônego Mayer, que passara, durante a tormenta, do alto cargo de Vigário Geral de Arquidiocese para vigário do distante, e aliás tão simpático Belenzinho, acabava de nos comunicar sua nomeação para bispo-coadjutor de Campos. É inútil dizer com que exultação fomos no mesmo instante felicitá-lo.
A sucessão dos fatos tinha um significado iniludível. Essas duas nomeações, uma em seguida à outra, valiam por um testemunho de confiança de Pio XII, que envolvia obviamente a atuação anterior de ambos os sacerdotes...
Essas duas surpresas não foram as maiores. Exatamente um ano depois, um religioso muito amigo, cujo nome não ouso declinar sem consultá-lo (e ele está de viagem), me entregou uma correspondência vinda do Vaticano para mim. Pio XII louvava e recomendava o livro do kamikaze.
Dir-se-ia que, com estes três fatos, a situação voltava a ser para nós o que era antes de 1943. Engano. No que diz respeito aos ex-redatores do “Legionário”, ela ficou inalterada. Surpreendente contradição dos fatos, sobre a qual é cedo para falar. Mas um acontecimento sobreveio mais ou menos paralelamente a essas vitórias, que marcaria a fundo nosso futuro.
O Pe. W. Mariaux, S.J., fundara, no Colégio São Luís, uma Congregação Mariana brilhante. Destinado o notável jesuíta, para a Europa, por seus Superiores, parte dos congregados nos procurou solicitando ingresso em nosso grupo. Eram cerca de 15 elementos jovens, de inteligência e capacidade de ação invulgares.
Conosco, constituíram eles uma só equipe para a qual o valoroso D. Mayer abria as colunas do grande mensário de cultura “Catolicismo”, que fundou em 1951.
Como as circunstâncias do País iam mudando, nosso interesse se ia ampliando cada vez mais para o campo social. Escrevi então, em 1959, um ensaio expondo nossas teses essenciais na matéria. Intitulou-se “Revolução e Contra-Revolução”. O trabalho teve oito edições: duas em português, uma em francês, uma em italiano e quatro em espanhol.
Estava criado o campo para se desprender de todos estes antecedentes uma ação de uma natureza diversa, isto é, tipicamente cívica e temporal.
Em 1960, se constituía a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade, para junto da qual afluíram todos os amigos que o idealismo, a desventura, a fidelidade, e as recentes alegrias tão intimamente haviam fundido em uma só alma253 .
253 “Nasce a TFP”, Folha de S. Paulo, 22/02/69.