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A procura do sublime e do sacral
realidade já sob a luz do laicismo, que a desfigurou ainda mais –, a esfera temporal estaria remetendo continuamente à esfera espiritual, e o espiritual estaria continuamente vivificando a esfera temporal.
Formar-se-ia assim uma espécie de circuito reversível, se quiserem um “8”, que é a síntese não de dois círculos tangentes, mas de duas argolas que defluem uma da outra. Assim seria a relação entre o temporal e o espiritual.
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Que repercussão isto traria para o homem? Tornaria o amor de Deus muito mais praticável, muito mais factível, muito mais ativo, porque a ocasião para amar a Deus estaria por assim dizer onipresente.
Isto tornaria o mundo mais paradisíaco, não no sentido de que ele teria as delícias do Paraíso antigo – ele continuaria sendo um vale de lágrimas –, mas, nas suas próprias lágrimas, teria algo que é a quintessência do Paraíso: estar sempre contemplando, nas culminâncias de tudo, o maravilhoso deiforme.
No período imediatamente pré-conciliar, era comum encontrar pessoas que pensavam da seguinte maneira: “Está bom, para as coisas da ordem espiritual, há um interesse religioso de que tudo nessa esfera tenha uma nota de maravilhoso: as igrejas, o culto etc. Mas, para as coisas da ordem temporal, para mim é inteiramente indiferente que elas estejam imersas na vulgaridade ou empolgadas pelo maravilhoso. É até quase melhor que o maravilhoso fique reservado à ordem espiritual, porque o maravilhoso temporal é gerador de apego e de pecado”.
Pode parecer exagero, mas conheci gente assim. E essas pessoas acabavam concluindo: “A Igreja não é nem um pouco interessada na supressão do prosaico de dentro da sociedade temporal, porque o prosaico faz com que o homem se habitue à pobreza e abandone as exigências temporais, indo então se deliciar nas riquezas espirituais”.
Daí vinha também o corolário: “A vida oficial do padre deve ser esplendorosa, vestindo, por exemplo, capas de asperges magníficas, mas dormindo num pijama sujo e roto, e coisas assim”.
Víamos então certas casas paroquiais as mais horríveis possível. Isto pela falsa ideia de que ali se desenvolvia a vida temporal do padre, e que essa vida temporal tinha de ser horrível também384 .
A procura do sublime e do sacral
Então, no que consiste a essência do meu espírito?
Consiste em um modo de ver a ordem do universo – entendida não só como criaturas do universo visível, mas também do universo invisível:
384 EVP 3/8/80
os anjos, e acima dos anjos, Deus Nosso Senhor –, em que aparece muito claro o quanto essa ordem do universo é sublime. E como cada elemento que compõe essa ordem do universo de algum modo participa desta sublimidade, sendo que, no universo visível, isto se dá sobretudo com os homens.
O amor ao sublime deve ser dominante em nossa alma, e não apenas um traço, de maneira que seja a bem dizer a orientação contínua dela. É o modo específico de amarmos a Deus.
Na menor das coisas nossas entra o desejo de ver o aspecto mais alto delas. E às vezes, pela força dos fatos, é o mal que se apresenta. E a minha ideia é: o contrário deve ser sublime.
Quais são os pontos de sublimidade que sou mais chamado a realçar?
Teoricamente falando, sinto-me mais chamado a realçar o esplendor do poder temporal enquanto todo embebido do poder espiritual, e todo ele vivendo do poder espiritual. Ou seja, a Cristandade, que é a família das nações em que toda ordem temporal está cheia da clorofila da ordem espiritual, e, portanto, é toda segundo a ordem espiritual e vivendo para a ordem espiritual.
Todo esse amor ao sublime perderia qualquer coisa de sua autenticidade, de seu equilíbrio, se não fosse o amor proporcionado ao que é pequeno, com a vontade de o proteger, de o acolher, de ser afável e bom para com o pequeno, por reconhecer que até o pequeno é um irmão dentro da grande ordem do sublime, e que ele tem a sua dose de sublime que faz o conjunto da sublimidade.
O paladino do sublime é protetor do pequeno, gosta de admirar, de respeitar o que não é ele, tem muito afeto, muita compreensão, muita paciência. E, literalmente, volta o outro lado do rosto para a bofetada do adversário, se isto tiver propósito385 . *
Tenho de modo habitual minha alma voltada para a sublimidade386 . Conversando comigo, os senhores talvez notem traços dessa tendência para a sublimidade.
Meu entusiasmo, meu interesse, meu gosto por uma coisa estão sempre na relação direta com o nexo que ela tem com aquilo que é sublime, e não no nexo que ela tem comigo, porque não sou nexo para nada, a não ser em função de Deus. Aí é outra coisa.
385 CA 5/6/91 386 Chá SRM 21/9/89
Um exemplo: nenhuma coroa no mundo determinou em meu espírito a impressão que produziu uma coroa mandada fazer na Boêmia por um imperador do Sacro Império, da Casa d’Áustria. É uma coroa de tal maneira sublime e magnífica que, de todas as coroas do mundo, aquela é, de longe, a que mais arrebata o meu espírito. A tal ponto que pus uma fotografia dessa coroa na parte de dentro de uma espécie de oratório que há no meu escritório, para poder vê-la.
Esse meu entusiasmo vem do quê? Da especial e peculiar sublimidade que aquela coroa tem.
Outro exemplo: a transfiguração de Nosso Senhor no Monte Tabor, tendo a seu lado Moisés e de outro lado Elias, aparecendo para os Apóstolos. Eles de tal maneira ficaram impregnados pela sublimidade de Deus Nosso Senhor que, desceram do Monte Tabor, eles brilhavam, reluziam; e da figura de Nosso Senhor os homens tinham medo, de tal maneira Ele brilhava. Isto gosto de ver.
Também por causa disso, gosto extraordinariamente da luta, pois nela a sublimidade do homem aparece de maneira especial.
Na paz podem aparecer aspectos legítimos do homem, e a paz tem uma beleza própria que até pode ser sublime. Mas, entre imaginar, de um lado, um guerreiro vestido de couraça e lutando, e depois imaginar esse mesmo guerreiro de pijama e de chinelos no seu quarto de dormir, numa manhã de domingo, não é o aspecto que mais gostaríamos de ver nele. Pode estar ali a retidão, pode estar ali o direito, mas não estará a sublimidade.
A sublimidade tem um perfume próprio que, no meu modo de entender, é o que mais de perto nos faz entrever qual é a beleza, qual é a santidade magnífica de Deus Nosso Senhor no Céu.
Por amor ao espírito de sublimidade, procuro constantemente amar o que há de mais magnífico, de mais alto, de mais nobre nas coisas, na medida em que elas são magníficas, nobres, estupendas, excelentes387 . *
A ideia de vir a ser santo se pôs em minha alma de uma maneira relativamente tardia, quando tinha 23, 24 anos.
Já o desejo da santidade se pôs muito cedo. Eu queria a santidade, mas não sabia que isto se chamava santidade. Eu queria ser de um certo modo, sabia o que queria ser, mas não sabia que isto se chamava santidade.
Como é que essa ideia de santidade nasceu na minha alma?
Ela nasceu pelo desejo formal, resoluto, da sublimidade.
387 Chá PS 26/3/93
Quer dizer, como tinha um feitio de espírito pelo qual as coisas sublimes me chamavam muito a atenção, me atraíam muito a alma, eu as olhava, as considerava e notava que elas me modelavam. Olhando-as, vendo-as, analisando-as muito, admirando-as muito, querendo-as muito bem, ia insensivelmente conformando minha alma àquele ideal.
Naturalmente, esse modo interior de agir se aplicava a tudo aquilo que a mim me parecesse de uma bondade, de uma justiça, de uma força, de uma excelência extraordinárias.
E tudo quanto estava nessa categoria de seres, fossem eles seres materiais, fossem seres espirituais, fossem anjos, tudo isto me parecia constituir um mundo que ficava por cima do nosso, e para o qual eu deveria voltar-me com toda força para moldar-me segundo essas coisas sublimes, e por esta forma ir fazendo do meu espírito um espírito feito do anseio dessas coisas e do desejo delas.
Um exemplo disso. Eu praticava ginástica sueca, com muita repulsa de minha alma, num instituto de uma tal Madame Leo. Na sala de ginástica havia uma mesinha onde, fortuitamente, dei com a mão em cima de um objeto de vidro, dentro do qual havia uma fotografia de uma cidade feita de palácios e ruas calçadas de água. Aquilo me pareceu desde logo sublime. Era Veneza.
Mas notem bem: não era sublime no sentido comum da palavra, quer dizer, muito bonito. A ideia da beleza estava presente ali, mas secundariamente. Era sublime no sentido de uma sublimidade moral: aquilo representava um estado de espírito que era, para mim, um primeiro passo para a santificação. Não no sentido de que aqueles objetos, aquelas casas, aquela água, levassem diretamente para a santificação, como por exemplo uma bonita imagem de Nossa Senhora. Mas preparavam-me para querer e admirar tudo quanto é sublime, e com isto querer, em matéria de alma, a sublimidade. E querendo essa sublimidade de alma, querer uma coisa que não sabia que se chamava santidade388 .
Tratar com seriedade até uma bagatelazinha, é sublime. E a possibilidade de colocar a minha vida nessa clave de sublimidade, eu não devo desdenhar.
Mas isto punha todas as minhas cogitações, e a mim mesmo, em um nível de grande gravidade, de grande responsabilidade e de seriedade, quer dizer, levava-me a considerar todas as coisas nos seus mais altos aspectos, nos seus mais altos efeitos, e até nas suas mais miúdas consequências.
388 Chá PS 13/5/94
Isto era o contrário do espírito de Hollywood, para o qual nada é sério, tudo é brincadeira. E viver em função dessa perspectiva de seriedade era viver uma vida sacral.
Uma pessoa que tome esta perspectiva até o seu mais alto píncaro, e tira dela todas as consequências, tem acesa em sua alma a chama da sacralidade.
Meu espírito é voltado para o sacral. Se me examinarem a fundo por qualquer lado, o que encontrarão é isto. E explica até uma porção de reflexos meus.
Isto, graças a Nossa Senhora, transformou-se num hábito. A presença desse espírito é por excelência o que deixa os que me odeiam furibundos, porque é a contradição mais completa da Revolução e do mundo moderno.
Esta é a parte mais interna do meu espírito, da minha mentalidade. O píncaro é este389 .
O sagrado é a própria matriz de meu pensamento a respeito de uma porção de coisas.
Sempre que elogio algo, no fundo da minha mente estou procurando uma analogia desse algo com o sagrado. E sempre que vitupero alguma coisa, é porque tem uma contra-analogia com o sagrado.
No meu vitupério, há uma rejeição, uma impugnação, uma vontade de combater, por ver na coisa vituperada uma recusa do sagrado. Pelo contrário, no que é sagrado, há uma propensão minha a aceitar, a admitir, a servir.
Também na ordem do terreno, as coisas que elogio, as elogio por uma tal ou qual analogia, uma tal ou qual participação que elas têm no sagrado. No fundo, é só por aí que os assuntos me interessam.
Por exemplo, nas Cruzadas, o élan de heroísmo foi muito bonito. Mas se fosse uma cruzada para salvar o S.P.Q.R. (“Senatus Populusque Romanus” – “O Senado e o Povo Romano”), não me interessaria por isto. Bastaria pôr no alto do lábaro uma cruz que eu exclamaria: “Ahhh! o sacral está presente. Sou soldado nesta guerra”.
Se alguém for examinar qualquer coisa que eu faça, encontrará a noção de sacralidade envolta dentro, de todas as maneiras.
Quando pronuncio a palavra “laico”390, aquilo vem em mim acompanhado de uma rejeição, de um gosto mau, de um desprezo, de uma execração, isto porque o laico é o contrário de tudo quanto acabo de dizer. Ele não é sacral, não vale para mim dois caracóis.
Tudo, tudo, tudo na minha mentalidade, no meu modo de ser, é presidido pela ideia do sagrado.
389 Relato Almoço EANS 4/1/89 390 Dr. Plinio toma a palavra “laico”, aqui, no seu sentido derivado e pejorativo, isto é, relativo àquilo ou àquele que é avesso ou hostil à influência da Igreja na sociedade.
Se querem conhecer a minha personalidade, observem-me enquanto ultra cultor do sagrado, e embebido dele até onde eu possa ser. Não nego que outros possam estar mais embebidos do que eu nessa matéria. Aquilo que não for compreensível em mim, procurem explicar por esse lado, que a explicação vem imediatamente391 .
A primeira vez que vi a palavra sacralidade foi no começo das minhas relações com Tristão de Athayde.
Lendo um livro dele, “Esboço de introdução à economia moderna”392 , em determinado momento notei que ele empregava a palavra sacralidade mais ou menos no seguinte contexto: “As civilizações antigas pagãs eram todas civilizações sacrais”.
Isto é inteiramente verdade. A civilização japonesa, por exemplo, nos seus traços dominantes ou nos seus traços ornamentais mais ostensivos, era uma civilização sacral, por oposição à laicidade.
A palavra sacralidade me produziu quase um efeito físico no coração. E pensei: “Mas o que é que fiz para chegar até os vinte e tantos anos e não ter conhecido ainda essa palavra, que é um instrumento de pensamento e de trabalho de primeira ordem? Não vou mais me esquecer dessa palavra, que é um par de asas para mim”393 .
Daqueles tempos para cá, o que aumentou em mim em matéria de consideração da sacralidade foi a convicção de que há uma visão global e coletiva do universo. E que precisa ser vista de dois lados.
Uma é a visão do universo com os seus lados filosóficos e sobretudo teológicos.
Outra seria Deus visto de um modo muito especial, porque se procuraria vê-lO nas flores, nas quedas d’água, mas também no pão preto, na manteiga e no caviar. Poder-se-ia procurar vê-lO também no frescor de um panorama da Suíça, no azulado das águas do lago Leman e daí para frente.
É essa espécie de conjunto de coisas notáveis que dá uma visão de conjunto do universo, a qual tem uma sacralidade própria, no sentido de
391 MNF 13/4/89 392 Ed. Centro D. Vital, 1930. 393 MNF 9/2/90
ser considerada em função dos dados da religião sobrenatural, que é a religião católica.
Tudo isto forma uma visão de conjunto incomparável, em defesa da qual nasce, por exemplo, o verdadeiro espírito militar394 . *
Nossa vocação não é de ser sacerdote, que é o “sal da terra” e a “luz do mundo”, mas é de ser um prolongamento da missão de sacralização do mundo, praticada por indivíduos totalmente leigos, mas que se consagraram a essa tarefa como um sacerdote se consagra à dele. É a de ser um apóstolo de todas as formas de sacralidade, de sublimidade e, por isto, da Cavalaria. Porque, numa sociedade concebida assim, a luta contínua pelo sacral é o ponto característico”395 .
As coisas do império austro-húngaro me tocavam justamente por causa de sua sacralidade muito marcante, entendendo-se sacralidade como algo em que o temporal está profundamente embebido do espiritual, e o espiritual está em certo sentido intimamente vinculado ao temporal.
Essa vinculação reúne, num possante todo, algo que acaba em um cone, que é o estilo de pompa e o estilo de grandeza do império austro-húngaro. em que uma grande cerimônia se fazia num desfile com grande despliegue, com grande desdobramento social, o qual não se vê nas cerimônias oficiais de outros países.
Nesse despliegue de pompa religiosa ia o pálio com o Santíssimo Sacramento, e sob o pálio, antes de tudo, o “Rex regum et Dominus dominantium” – “Rei dos reis, e Senhor dos senhores”, quer dizer, a Sagrada Eucaristia, que o Imperador não tocava porque não era digno e não tinha as mãos sagradas. Mas o Imperador, dignitário supremo do Estado, vinha de vela acesa na mão, acobertado e magnificado pelo pálio que cobria o próprio Deus. Depois, de um lado e doutro, uma presença imponente de tropas.
Pelo meio desfilavam dignitários eclesiásticos, dignitários civis da nobreza, depois os corpos do Estado. E quando o desfile passava diante de certas igrejas, os sinos tocavam; e diante de certos edifícios, os canhões troavam.
394 CSN 21/11/92 395 MNF 7/9/1988