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A reversibilidade do “tal enquanto tal”

Isto é uma coisa que pede a presença de um ápice. Esse ápice é como que um cone. E o alto desse cone é Deus396 . *

Em nossa espiritualidade, o maravilhoso tem muito papel.

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Imaginemos uma balança que tenha em uma de suas conchas um monte de lixo, e na outra concha ouro.

Se quero que a balança penda para o lado do ouro, posso utilizar dois processos: um é diminuir o mais possível o lixo. Outro é ter uma tal quantidade de ouro na balança, que a concha do lixo estremeça e ceda. Então, não será tanto o trabalho de jogar fora o lixo, mas de pôr ouro na balança. E o maravilhoso é essa quantidade enorme de ouro na balança.

Isto não significa que, pondo o ouro, a concha com lixo deva ficar intata. O lixo tem que ser posto fora de qualquer jeito.

Outro exemplo seria o de um indivíduo que tenha uma vontade louca de roubar, por considerar que só roubando ele tem a possibilidade de realizar alguns anseios nesta terra. Se dou a ele uma atração muito mais alta do que o roubo, eu o afastarei do roubo397 .

A reversibilidade do “tal enquanto tal”

A boa ordem que deve existir na Igreja tem possantes analogias com a ordem ideal interna para a qual deve caminhar a sociedade civil.

Há, portanto, certa reversibilidade entre as duas ordens. Isto se fez sentir sobretudo no tempo do feudalismo, porque as relações do senhor feudal, uns com os outros e com o rei, são muito parecidas com as relações dos padres com os bispos e com o Papa.

Ora, pode-se encaminhar o fervor de alguém muito principalmente tanto para a matéria eclesiástica quanto para a matéria temporal. Mas posso ter meu fervor mais ampliado abarcando a reversibilidade das duas ordens, sentindo essa reversibilidade e querendo-a398 . *

O que significa em nossa linguagem “tal enquanto tal”?

396 Jantar EANS 30/4/92 397 EVP 3/8/80 398 CA 27/04/88

Em si, diretamente, “tal enquanto tal” quer dizer monarquista enquanto católico e católico enquanto monarquista. É uma questão de forma de governo e de religião. Ou seja, é uma reversibilidade de valores pelos quais certa coisa, uma vez afirmada no campo temporal, tem no campo espiritual sua reversão em tal outra coisa, e reciprocamente. Essa reversão tem como pressuposto que os dois campos são paralelos, e em certo sentido ── não em todos os sentidos, mas no grosso dos sentidos ── contêm uma reversibilidade, uma complementaridade reversível399 . *

Existe uma organização na Igreja que é a organização hierárquica, à qual corresponde um determinado estado de espírito, que é o espírito hierárquico e que hoje é ocultado, renegado, calcado aos pés, mas é o espírito da Igreja. E que fazia com que a Igreja tivesse toda aquela pompa, aquela majestade, aquela seriedade, aquela capacidade de ensinar, de condenar, de punir, de canonizar que corresponde a uns outros tantos atributos de quem tem a chave do reino do Céu.

Mas a monarquia tem uma organização análoga a essa, que produz uma ordem temporal parecida com a da Igreja e gera um estado de espírito parecido com o da Igreja. Em última análise, a Igreja projeta para a ordem temporal tudo aquilo que é próprio à ordem espiritual, mas não é exclusivo da ordem espiritual.

Há, portanto, entre a Igreja e o Estado, uma analogia muito grande, uma semelhança muito grande.

O “tal enquanto tal” quer dizer monarquista enquanto católico, e “tal enquanto tal”, católico enquanto monarquista. Ou seja, possuidor daquele traço comum ou daquela cordilheira de traços de espírito comuns ao católico e ao monarquista, que fazem com que um indivíduo, sendo católico, tende a ser monarquista e, sendo monarquista, tende a ser católico400 . *

Nasci em 1908, quando São Pio X ainda era Papa. Formei, portanto, o meu espírito numa atmosfera “piodecimal”, em que as coisas ordenadas entre si eram ainda bem numerosas e me encantavam. Percebia que tinham ligações.

399 Almoço 9/1/94 400 EVP 28/11/93

Por exemplo, a questão da monarquia e da Igreja: jamais me pus o problema a respeito de se a Igreja e a monarquia deveriam estar unidas ou separadas; ambas as instituições nasceram no meu espírito como coisas unidas. A afirmação da união entre elas era conatural comigo401 .

Se me acontecer de morrer antes do Reino de Maria, gostaria de, nos meus últimos momentos, pronunciar estas palavras, com o intuito de que cada uma valesse como um tiro de canhão na ordem sobrenatural, na ordem dos planos de Deus, na ordem da expiação, na ordem da distribuição das graças para a Contra-Revolução ir para a frente. Estas palavras se reduzem a uma palavra só: “tal enquanto tal”402 . *

A dificuldade de nosso apostolado junto a certas correntes monarquistas cifra-se na seguinte ideia que defendem: “Restaurado um rei, está tudo resolvido, tenha esse rei que mentalidade tiver. É até uma irreverência perguntar qual é a mentalidade dele. Ele paira acima de tudo. É uma espécie de papa da ordem leiga. Não se tem o direito de analisar a mentalidade dele. Por causa disso, toda a formação do jovem monarquista deve ser de exaltar a fidelidade à dinastia. E a fidelidade à dinastia se exalta mostrando que a família real, vigente ou destronada, é muito simpática”.

Diante dessa posição monárquica, qual era a nossa posição?

Primeira consideração. Fidelidade à dinastia, muito bem. Mas fidelidade à Igreja infinitissimamente mais do que fidelidade à dinastia. De maneira que rei herege ou rei liberal, seja legítimo como for, em tese não pode subir ao trono. Está acabado.

Segunda consideração. A monarquia, mais do que uma fidelidade à dinastia, ou uma saudade do passado – que é também uma coisa boa em seus termos; uma saudade do passado pode ser até muito respeitável – é uma doutrina que põe em realce um princípio. E esse princípio – que importa como corolário do princípio aristocrático – não é um princípio meramente político: é um princípio da ordem universal, um princípio metafísico e religioso.

Terceira consideração. Não adianta implantar uma monarquia em um país religiosa e moralmente podre. É preciso que haja, antes, uma ação religiosa profunda, como ponto de partida de tudo. E uma formação religiosa anti-liberal, ou seja, contra-revolucionária, baseada sobretudo em três devoções: a Nossa Senhora, como canal de tudo; ao Papa, que é o Vigário

401 Almoço EANS 17/7/92 402 SD 31/05/91

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