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capítulo ii – A Casa transportada pelos anjos
capÍtulo ii
A casa transportada pelos anjos
Como chegou a Loreto a Santa Casa?
Nas últimas décadas começou-se a dizer que as pedras (veja bem, as pedras, e não as paredes como sempre se entendeu) da Casa de Nazaré foram trazidas para a Itália pelos homens. Na prática, a trasladação angélica da Santa Casa para a colina lauretana é hoje desqualificada por muitos como uma lenda piedosa. Uma operação como esta, inserida no processo de minimização contínua de eventos milagrosos, parece querer colocar a Igreja em sintonia com os tempos, para ter mais credibilidade aos olhos do mundo. Na realidade, porém, essa atitude mina a fé dos humildes.
Como se verá mais adiante, de fato há mais do que algumas dúvidas sobre a versão “moderna” da questão lauretana. Entendendo-se que não se trata de um dogma de fé, e que o próprio Papa João Paulo II na Carta para o VII centenário de Loreto escreveu que queria deixar “plena liberdade à pesquisa histórica para investigar a origem do santuário e da tradição lauretana”, precisamente em virtude
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dessa liberdade, sentimo-nos no direito de continuar a pensar que a versão da “trasladação milagrosa” é muito mais razoável e até cientificamente fundamentada.
O mesmo padre Giuseppe Santarelli – historiador da questão lauretana, cujos trabalhos também citamos amplamente aqui, dada a quantidade de informações valiosas que oferecem – em apoio ao transporte humano e, portanto, a essa nova versão dos fatos, apresenta apenas sua hipótese, sem nenhuma certeza. No entanto, essa hipótese foi negada com evidências claras por outros estudiosos, conforme se precisará melhor mais adiante.
Até mesmo Dom Giovanni Tonucci, bispo delegado pontifício de Loreto de 2007 a 2017, no prefácio da obra de Santarelli, respondendo ao convite da pesquisa histórica livre, escreve que “erra quem se permite considerar suficientemente os que amam a bela tradição do transporte angélico como se fosse uma credulidade superficial”1 .
Bem, vamos agora tentar entender por que a trasladação milagrosanãoéumainvençãonemumacredulidadesuperficial.
2.1 A trasladação contada historicamente
Historicamente houve pelo menos cinco trasladações milagrosas da Santa Casa de Nazaré, ocorridas entre 1291 e 1296: em Tersatto (hoje um bairro da cidade de Fiume); em Ancona (na localidade de Posatora); na floresta da senhora Loreta (atual localidade de Banderuola); no campo de dois irmãos, situado no Monte Prodo (em frente do atual santuário lauretano), e na via pública que deu lugar não somente à atual basílica, mas acima de tudo a uma cidade construída ao redor da insigne relíquia2 .
1 G. Santarelli, La Santa Casa di Loreto, cit., pp. 6-7. 2 Cfr. G. Nicolini, Le cinque traslazioni “miracolose” della Santa Casa di Nazareth, in Il segno del soprannaturale, nº 216, junho de 2006, p. 28.
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Obviamente, isso não significa que as paredes sagradas de Nazaré não possam ter estado noutros lugares: mas não existe documentação histórico-arqueológica a esse respeito. No entanto, as tradições populares locais de Toscana, Úmbria e Marcas deixam entender que no período em que a Santa Casa partiu de Tersatto (9-10 de dezembro de 1294) e antes de chegar a Ancona (1295), ela viajou e talvez tenha parado em várias localidades da Itália central3 . Não foi por acaso que enquanto nas Marcas se fala de “Chegada”, na Úmbria se fala de “Passagem” e em algumas regiões da Toscana, de “Grande Trajeto”: modos diversos para narrar o mesmo fato milagroso, transmitidos de geração em geração. Além disso, a antiga Via Lauretana e os chamados caminhos lauretanos estão localizados precisamente nessas áreas: portanto, é possível que a Santa Casa realmente tenha feito algumas paradas curtas por lá.
Dos cinco deslocamentos mencionados acima, no entanto, existem razões muito válidas para acreditar que sejam autênticas.
Mas por que razão a Santa Casa teria deixado a Palestina?
As três paredes desapareceram da Basílica da Anunciação em Nazaré no mesmo ano (1291), em que os cruzados, com a derrota de São João de Acre tiveram que abandonar definitivamente a Terra Santa. De fato, sempre se disse que a trasladação milagrosa ocorreu para preservar a Santa Casa do domínio islâmico. Seria, portanto, um claro sinal de defesa contra as conquistas do mundo muçulmano, um tema muito próximo de Loreto, como veremos mais adiante.
Também é significativo que, a partir da Terra Santa, essa grande relíquia da Cristandade tenha escolhido o território dos Estados Papais, governados pelo Vigário de Cristo, como última etapa de sua viagem.
3 Cfr. G. Santarelli, Tradizioni e Leggende lauretane, cit., p. 161.
Representação das sucessivas trasladações da Santa Casa. Autor anônimo do século XVI. Museu da Pinacoteca, Loreto.
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Guglielmo Garratt, professor de arte da Universidade de Cambridge convertido do anglicanismo ao catolicismo e grande historiador de Loreto4, imaginando o interrogatório de um cavaleiro da Terra Santa, se perguntou se Deus permitiria que os muçulmanos transformassem a Santa Casa em mesquita. E respondeu: “Não, Deus não permitirá. A Santa
4 Autor de Loreto, la nuova Nazareth (1893).
Casa desaparecerá se necessário, porque Deus certamente saberá protegê-la da profanação e da destruição. [...] Nazaré embranquecerá os ossos dos guerreiros cristãos; nem sequer um soldado da Cruz permanecerá para defender as paredes sagradas onde o Filho de Deus se tornou homem. O fanatismo dos sequazes do falso profeta profanará todas as outras igrejas cristãs, mas o Onipotente saberá colocar no devido momento um limite ao furor cego dos malvados e, quando mais nenhum braço de homem proteger a Casa bendita, Deus ordenará a seus anjos que intervenham para evitar que ela seja profanada, carreguem-na em seus braços e possamos reencontrá-la em uma terra cristã. Sim, o Criador do Universo […] transportará a testemunha imortal da Encarnação para uma região segura onde milhares de almas acorrerão para venerá-la”5 .
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5 Cit. in G. Gorel, La Santa Casa di Loreto, cit., pp. 49-50.
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2.2 O tríplice milagre na primeira trasladação
Não se pode deixar de notar o tríplice milagre ocorrido na noite da primeira trasladação (9 a 10 de maio de 1291), quando a Santa Casa desapareceu da Basílica da Anunciação. A preciosa relíquia estava localizada embaixo do prédio, na cripta, e já havia sido preservada da destruição islâmica de 1263, comandada por Alan ed-Din Taybar, lugar-tenente do sultão do Cairo, Bajbars Banokan. Mas, em 1291, como puderam as três paredes desvencilhar-se das fundações e sair do subsolo da igreja? E depois há os dados da velocidade do tempo. As paredes sagradas, repentinamente, no espaço de uma noite, se desvencilharam e desapareceram do porão da basílica, daquele lugar seguro e protegido, que até então sempre as protegera, e chegaram à Ístria. Se até 9 de maio de 1291 a Santa Casa estava em seu lugar original, no dia seguinte, 10 de maio, não estava mais lá. E sem que ninguém fosse capaz de dar uma explicação. Como foi possível – caso se tratasse de uma operação humana – realizar o trabalho em tão pouco tempo, isto é, remover as paredes das fundações, fazê-las sair da cripta protetora sem desmontá-las e levá-las em uma única noite a milhares de quilômetros de distância até Tersatto? E por ordem e com a permissão de quem seria essa “trasladação humana”, dada a ausência de documentos e testemunhos a esse respeito?
2.3 As duas tabuletas antigas
Também devemos ter em mente o relatado pelo Bem-aventurado Giovanni Battista Spagnoli, chamado o Mantovano, célebre e autorizado carmelita. Visitando o santuário de Loreto, ele leu numa tabuleta antiquíssima, pendurada em uma das paredes da igreja, a história das trasladações. Em carta enviada ao Cardeal Girolamo Della Rovere em 22 de setembro de 1489 (ou, segundo alguns, em 1479), o
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Mantovano – como já haviam feito Pier Giorgio Tolomei, chamado o Teramano, governador da Santa Casa (em 1472) e Giacomo Ricci (em 1469) – escreveu: “Tendo chegado recentemente à Santa Casa da Santíssima Virgem Maria de Loreto e tendo visto as coisas maravilhosas que Deus opera naquele lugar [...] comecei a observar tudo diligentemente, a admirar a ingenuidade e ler os ‘ex voto’ afixados nas paredes. E aqui vejo uma tábua corroída, por sua longa exposição e antiguidade, na qual estava escrita a razão pela qual aquele lugar alcançara uma autoridade tão grande. Então eu, com zelo piedoso, devido à negligência dos homens que geralmente obscurece até as coisas mais importantes, e para evitar que a memória de um fato tão maravilhoso fosse apagada, queria recolher da tábua consumida pelo altar e pelo pó, a série de fatos”6, ou as trasladações milagrosas da mesma Santa Casa de Nazaré para vários lugares e finalmente para Loreto.
O Beato Giovanni Battista Spagnoli prosseguia, sublinhando: “Todas as coisas que dissemos acima, com exceção de pouquíssimas, que esclarecem e não alteram a história, foram tomadas, sempre salvando a verdade da escrita, a partir de uma cópia autêntica da mencionada tabuleta, à qual se deve dar fé”7. Portanto, na época em que ele escreve (segunda metade do século XV), havia duas tabuletas: uma corroída pelo tempo, e a outra – uma cópia – mais legível. Isso significa que a história das trasladações milagrosas não é uma legenda fabricada naquele período. As duas tabuletas, que para estarem na igreja deveriam ter recebido necessariamente a aprovação eclesiástica, eram certamente muito antigas. Segundo alguns estudiosos8, a tabuleta mais antiga foi obra do Beato Pietro Moluzzi, Bispo de Macerata, a cuja
6 Cit. in G. Nicolini, La veridicità storica della miracolosa traslazione della Santa
Casa di Nazareth a Loreto, La Voce Cattolica, Ancona, 2004, pp. 25-26. 7 Cit. in ibidem, p. 26. 8 Cfr. ibidem, p. 27.
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diocese o Papa João XXII agregou em 1320 o território de Recanati e, portanto, de Loreto, encarregando-o da custódia da Santa Casa.
Baseado em alguns textos e autores antigos, o mesmo Beato Pietro Moluzzi – que viveu na época das trasladações milagrosas e foi testemunha das mesmas – também escreveu sua primeira história, a qual foi usada nas lições escolares para instruir os fiéis e as novas gerações sobre quanto de extraordinário acontecera naquele lugar abençoado. Embora não mais exista o texto original manuscrito, dele subsistem em vários livros antigos extratos ou cópias que autores subsequentes puderam consultar e reescrever.
Para confirmar a antiguidade dos registros – escritos e remontando às origens dos eventos milagrosos –, existe nos Arquivos dos Cônegos de Loreto uma Pequena Crônica da Santa Casa, impressa em 1844, que menciona um documento de 1324, pertencente ao Arquivo do Estado de Pádua. Nele se leem as seguintes palavras: “Triginta abhinc annis Domus Beatae Virginis Mariae de Nazareth per manus Angelorum translata fuit per mare Adriaticum prope Urbem Recineti”, ou seja, “Trinta anos atrás, a Casa da Bem-Aventurada Virgem Maria de Nazaré foi transportada pela mão de Anjos ao outro lado do mar Adriático, próximo à cidade de Recanati”. O autor da Pequena Crônica da Santa Casa que faz menção a esse documento é o Cônego Raffaele Sinibaldi, capelão da Casa Real Bourbon. Ele afirmou que o texto autêntico do documento mais importante foi apresentado a S. Exa. Dom Stefano Bellini, Bispo de Loreto, enquanto este escrevia uma história sobre a Santa Casa.
2.4 Primeira etapa: Tersatto
O primeiro local onde a Santa Casa se estabeleceu depois de deixar Nazaré foi Tersatto, que agora se tornou um distrito da cidade de Rijeka (Fiume, em italiano), na Croácia, e onde
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ainda existe um santuário dedicado a Nossa Senhora, construído em memória da permanência da santa residência. O evento milagroso remonta à noite de 9 para 10 de maio de 1291.
A ligação entre Tersatto e Loreto sempre foi muito forte ao longo dos séculos. Não é por acaso que na praça do santuário da região das Marcas foi construído no século XVI o Palácio Ilírio (Illyria é o nome antigo da Croácia), destinado ao treinamento de clérigos dálmatas e albaneses. Além disso, os peregrinos do outro lado do Adriático sempre foram numerosíssimos em Loreto.
Em Tersatto, os testemunhos da vinda da Santa Casa são inúmeros. Ao longo da escadaria monumental que conduz ao santuário, no meio do caminho, em frente a uma das capelas que se alinham aos degraus, estas palavras, provavelmente datando do século XIV, estão inscritas sobre o mármore: “A Casa da Bem-Aventurada Virgem Maria de Nazaré chegou a Tersatto no ano de 1291, em 10 de maio, e partiu em 10 de dezembro de 1294”9 .
Conforme relatado em sua Historia Tersattana10 pelo frade Francesco Glavinich, franciscano da Ístria, na manhã de 10 de maio de 1291, na clareira da floresta então presente naquele território, alguns lenhadores viram um edifício que nunca haviam visto antes, constituído por uma pequena casa com um altar dentro. O fato não passou despercebido e as notícias da descoberta logo chegaram ao conhecimento do pároco da região, Pe. Alessandro Giorgiewich, que estava na cama doente, gravemente acometido de hidropisia. Ansioso para ver com seus próprios olhos o pequeno edifício misteriosamente chegado ao território de sua paróquia, o sacerdote rezou a Nossa Senhora, que lhe apareceu para curá-lo e informá-lo de que as paredes em questão eram as de sua habitação em Nazaré, afastada das profanações dos infiéis.
9 Cit. in G. Gorel, La santa Casa di Loreto, cit., p. 51. 10 Para uma síntese, cfr. G.M. Pace, Miracolosa traslazione a Loreto della demora della Santissima Annunziata, cit., pp. 8 e ss.
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“Sabes – disse Maria Santíssima – que eu nasci nesta casa; nela cresci na minha infância. Aqui, no anúncio do arcanjo Gabriel, eu concebi o divino Filho por obra do Espírito Santo. Aqui o Verbo se fez carne. Os apóstolos consagraram esta habitação e celebraram o augusto sacrifício... Deus, para Quem nada é impossível, é o autor desse prodígio e, para que tu mesmo sejas disso a testemunha e o apóstolo, sê curado. Tua pronta recuperação da saúde após tão longa doença será a prova deste milagre”11 .
Tendo em vista a natureza excepcional do sucedido, o vice-rei da região, Nicola Frangipani, enviou a Nazaré uma delegação de quatro homens, incluindo o próprio Pe. Alessandro, a fim de certificar-se de que se tratava realmente da Santa Casa de Nossa Senhora. Os enviados puderam constatar que na Basílica da Anunciação, as paredes da habitação onde a Encarnação ocorreu não estavam mais lá: restavam apenas as fundações, cujo perímetro concordava exatamente com o das paredes que chegaram a Tersatto. Tudo foi escrito, com escritura pública, e conservado.
No entanto, entre 9 e 10 de dezembro de 1294, as três paredes deixaram a Croácia tão misteriosamente quanto haviam chegado três anos e meio antes, e foi então que começou a ser construída uma pequena capela para recordar que naquele local havia parado a Casa de Nossa Senhora. Em 1420, o Papa Martinho V concedeu indulgências a todos aqueles que tinham contribuído para a manutenção do santuário croata. Nicolau V, ao aceitar os franciscanos como guardiões da igreja, falou da mesma como de um lugar de culto a Deus que ficou famoso nos séculos passados. O Papa Urbano V, que chegou a Loreto em 1367, pôde ver a dor de muitos peregrinos croatas que ainda lamentavam a saída da Santa Casa de suas terras (“Volta, volta para nós, bela Senhora, com a tua Casa”, era a quei-
11 Cit. in G. Gorel, La Santa Casa di Loreto, cit. p. 53.
Representação das sucessivas trasladações da Santa Casa. Autor anônimo do séc. XVI. Museu da Pinacoteca, Loreto. O autor deste trabalho pinta as cidades idealizadas da maneira medieval e os exércitos do duque de Urbino com o uniforme militar do século XVI. A casa de Nossa Senhora aparece em uma Nazaré cercada por muros (1), atacada pelos infiéis. Em uma segunda representação (2), é transportada por anjos e em uma terceira imagem (3) a casa agora repousa com segurança em outra cidade cercada por muros, do outro lado do mar. (Museu do Vice-reinado do México). O primeiro local onde a Santa Casa pousou depois de deixar Nazaré foi Tersatto, hoje um distrito da cidade de Rijeka (Fiume) e onde ainda existe um santuário dedicado a Nossa Senhora, construído em memória da permanência da Santa Casa.
Tersatto
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xa mais comum)12. Foi para consolá-los pela grave perda que o Papa lhes deu uma imagem de Nossa Senhora13 para ser colocada em seu santuário.
O pesar dos croatas, no entanto, persistiu ao longo dos séculos, como um supremo atestado da autenticidade do lar da Santíssima Anunciada. Martorelli, citando o padre Riera, se refere a uma enorme peregrinação ocorrida em 1559, quando quinhentos fiéis provenientes de Tersatto – entre homens e mulheres, no habitual caminho de joelhos, tanto na igreja quanto em volta da Santa Casa, com as velas acesas na mão –, repetiam em voz alta: “Voltai, voltai para nós, Maria, voltai; por que nos abandonaste, Maria?”14 .
Além disso, a devoção a Nossa Senhora de Loreto, além de Tersatto, continua muito viva em toda a Croácia15 .
2.5 Segunda etapa: Ancona
Segundo a tradição, após a partida de Tersatto, a Santa Casa chegou a Ancona, que sempre foi um importante porto do Estado Pontifício. Sua presença na principal cidade da região das Marcas durou cerca de nove meses durante o ano de 1295. Testemunha-o um documento (do qual existe apenas uma cópia, encontrada em 1732 na caixa das “relíquias autênticas” ainda existentes naquele ano na Catedral de Ancona) de um sacerdote contemporâneo dos fatos, um certo Pe. Matteo, que logo após, nos anos das trasladações milagrosas, deixou um escrito, por devoção pessoal, para que não se perdesse a memória daquele prodigioso evento,
12 Cfr. P.V. Martorelli, Teatro storico della Santa Casa, cit., vol. 2, cap. 4, p. 353. 13 Cfr. G.M. Pace, Miracolosa traslazione a Loreto della dimora della Santissima
Anunziata, cit. p. 29. 14 P. V. Martorelli, Teatro storico della Santa Casa, cit., vol. 2, cap. 4, p. 353. 15 Só para citar um exemplo, em 217 de maio se inaugurou na colina Gaj de Primôsten uma estátua de Nossa Senhora de Loreto de 17 metros, incluindo as escadas de acesso e o pedestal (cfr. Il Messaggio della Santa Casa, nº 7, julho-agosto de 2017, p. 269).
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reverenciado pelos habitantes de Ancona com a construção de uma capela na colina com vista para o porto, onde ficava a Santa Casa.
Assim recita o escrito: “Eu, Padre Matteo, reitor e pároco de Santo Onofre fora da Porta de Campo Marte da cidade de Ancona, por minha devoção, deixo esta lembrança desse milagre, que é do ano de 1295. Na floresta da Contrada de Posatora, a Santa Casa da Mãe de Deus pousou por nove meses e, como estou tão consternado e com um reduzido número de pessoas devido à grande guerra e às pragas sofridas, para recordá-lo queria colocar este texto sob a pedra sagrada da Igreja de Santa Catarina, a fim de agradar a Santíssima Virgem em seu tempo. Humílimo Servo de Deus”16 .
Muito mais probatório do que o fato milagroso é principalmente a evidência manifestada nas três igrejas edificadas pelos bispos locais em memória da permanência da Santa Casa na colina de Posatora de Ancona e as sucessivas trasladações na área de Recanati.
Uma dessas igrejas – na localidade de Barcaglione, nas colinas entre Ancona e Falconara Maritima – permanece no mesmo lugar onde havia uma capela que recordava a visão, pelos habitantes do local, da chegada da Santa Casa proveniente do mar.
Depois, devemos mencionar a atual igreja de Posatora, na mesma área montanhosa onde a Santa Casa esteve por nove meses. O próprio nome da localidade é indicativo e deriva do latim “posat et ora” – isto é, a Casa de Nossa Senhora pousou ali, Ela rezou pela cidade e a população rezou a Ela.
Finalmente, mais importante ainda é a construção, ao lado da Catedral de São Ciríaco, da igreja de Santa Maria de
16 Cit. in G. Nicolini, La veridicità storica della miracolosa traslazione della Santa
Casa di Nazareth a Loreto, cit., p.53. Deve-se notar, como o próprio Nicolini observa à página 54, que a igreja de Santo Onofre era muito próxima à de Santa
Catarina, e que a área de Posadona fazia parte da mesma jurisdição paroquial.
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Nazaré, no início dos anos 1300, agora desaparecida devido à destruição da guerra. Ela foi consagrada pelo bispo de Ancona, contemporâneo e testemunha das trasladações, precisamente para comemorar e celebrar liturgicamente todas as trasladações milagrosas da Santa Casa.
Além disso, na igreja de Posatora, duas lápides testemunharam o milagre. Uma é do século XIII-XIV e existiu até 1957 quando, infelizmente, foi perdida como resultado de obras de restauração, mas ainda há testemunhas oculares que se recordam e testemunham. A outra placa, que remonta a 1545, ainda está presente na igreja: evidentemente traduziu e copiou a primeira. Nela ainda se pode ler: “Nesta floresta, a Casa da Mãe de Deus pousou durante nove meses – MCCXCV”. A primeira placa, na parte legível que as testemunhas lembram, estampava em latim vulgar: “Quita futa freposata a Madonna de Loreta” (ou seja, “daqui fugiu, depois de ter pousado, a Madonna de Loreto”)17. Interessante porque já se usa o termo “Loreto”, que indica o local da floresta da senhora Loreta, da trasladação milagrosa subsequente.
2.6 Terceira etapa: a floresta da senhora Loreto
Também em 1295, as três paredes da Santa Casa chegaram a um bosque na área de Recanati, localizada atrás da atual estação ferroviária de Loreto18. O local, selvagem e pantanoso, era propriedade de uma senhora recanatense chamada Loreta, da qual deriva o nome da cidade que abriga o santuário. Hoje, na área onde a preciosa relíquia foi colocada, há uma pequena igreja em memória. A localidade é
17 Cfr. G. Nicolini, La veridicità storica della miracolosa traslazione della Santa Casa di Nazareth a Loreto, cit., pp. 57-58. Cfr. também G. Nicolini, Le cinque traslazioni
“miracolose” della Santa Casa di Nazareth, cit., pp. 28 e ss. 18 Cfr. G. Nicolini, La veridicità storica della miracolosa traslazione della Santa
Casa di Nazareth a Loreto, cit., p. 68.
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A igreja de Santa Maria Libertadora foi construída no século XVI sobre um edifício sagrado anterior, do século XIII. Segundo os documentos históricos e arqueológicos existentes, de fato, na viagem que conduziu a Santa Casa de Nazaré até as Marcas, os anjos “pousaram” suas três paredes durante nove meses no exato local onde está hoje a igreja.
chamada “Banderuola”, porque alguns devotos, no momento dos eventos milagrosos, ergueram uma bandeira no topo de um pinheiro muito alto para mostrar aos peregrinos vindos de longe, o ponto exato onde se encontrava a Santa Casa.
A Casa de Nossa Senhora permaneceu por alguns meses nesse local. Evidencia-o a já citada antiquíssima tabuleta exposta na mesma Santa Casa e referida nos estudos do mencionado Teramano (em 1472) e do Beato Giovanni Battista Spagnoli (em 1479). Não é só isso. Teramano recebeu o depoimento, sob juramento, de dois velhos moradores locais: Paolo di Rinalduzio e Francesco il Priore19 . O primeiro relatou ter sabido que um seu ancestral havia visto com os próprios olhos a Santa Casa vindo pelo mar do mar e se colocando depois na floresta. O segundo declarou que um de seus antepassados havia visitado a Santa Casa quando esta ainda estava na propriedade da senhora Loreta
19 Cfr. G. Nicolini, La veridicità storica della miracolosa traslazione della Santa Casa di Nazareth, in Il segno del soprannaturale, nº 220, outubro de 2006, pp. 28-29.
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e testemunhado sua milagrosa mudança para o Monte Prodo. Pode-se sorrir para esses testemunhos e considerá-los superficiais e não conclusivos. Mas não há reações válidas para não os levar em consideração, considerando também a seriedade do escritor que os reproduz.
Além dos dois testemunhos de Teramano, houve a confirmação do evento milagroso por São Nicolau de Tolentino, que atestou a chegada da Santa Casa, e de Frei Paolo della Selva, um eremita que morava na vizinha colina de Montorso e também teve a revelação sobrenatural sobre a verdadeira origem das três paredes20 .
Os peregrinos começaram imediatamente a se reunir neste lugar sagrado, apesar de ser uma área desprovida de qualquer equipamento de hospitalidade. Mas havia tanta fé e tanto entusiasmo que eles não se importavam, preferindo ficar no acampamento dia e noite, em oração sob as árvores, a ir embora. Mantovano escreveu que os peregrinos também afluíram de regiões remotas. Todo esse fluxo, no entanto, trouxe problemas. Como Ricci explica em sua Historia Virginis Mariae Loretae (século XV), bandidos e criminosos começaram a se enfurecer, roubando os devotos, de modo a impossibilitar a visita à Santa Casa. Esta foi evidentemente a principal razão da nova mudança, desta vez para um pouco mais ao alto, no Monte Prodo.
No entanto, os milagres naquele lugar prosseguiram. Testemunhas e historiadores como Riera e Angelita dizem que a área onde a Santa Casa passou oito meses continuou a ter flores e grama, ao contrário das áreas circundantes, invadidas por arbustos e espinhos. Infelizmente, tudo desapareceu quando os agricultores locais, por ignorância, começaram a limpar a área e a trabalhar a terra, cancelando aqueles sinais milagrosos. Na operação de recuperação da área, ordenada pelo Papa Gregório XIII em 1575, caíram as
20 Cfr. G. Gorel, La santa Casa di Loreto, cit., pp. 62 e ss.
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árvores que durante trezentos anos se curvaram em direção ao mar, de onde a Casa da Virgem Maria havia chegado21 . No local, contudo, como mencionado, foi construída uma capela, ainda hoje existente.
Quanto ao “milagre das árvores”, julgamos útil ao leitor reproduzir o relato feito em 1790 pelo Pe. Antonio Gaudenti, patrício de Osimo e arquidiácono da basílica lauretana, citando literalmente o que foi escrito na época mais próxima dos fatos pelo célebre Torsellini (no primeiro livro, sexto capítulo de sua monumental e já mencionada obra Lauretanae Historiae libri quinque): “É notório, e não crença vã, que, na chegada da Casa de Maria, as árvores em longas filas se curvaram à sua passagem, e ficariam inclinadas de tal maneira a ponto de cair no chão, seja por sua idade avançada ou pela força dos ventos, ou porque foram cortadas embaixo; e elas se alinharam em longa ordem, inclinaram-se para se mostrarem aos peregrinos como testemunhas de um milagre. A memória ainda está fresca e eu – prossegue o mesmo autor – posso vos assegurar que um homem muito digno de fé me garantiu que não tinha mais de vinte anos e viu frequentemente muitas dessas árvores ficarem tão curvadas, e inclinadas com todo o tronco voltado para o mar, e que as mesmas árvores foram deixadas especialmente lá para fins religiosos cortando-as do resto da floresta, e essas, como foi dito, não mais de vinte anos atrás, pela insensatez e inexperiência dos camponeses, foram deixadas e jogadas ao chão, para não servirem de impedimento ao arado”22 .
21 Cfr. G. Santarelli, Tradizioni e Leggende Lauretane, cit., pp. 160-161. Sobre o milagre da casa também escreveram, entre outros, Torsellini e Martorelli. 22 Cit. in A. Gaudenti, Storia della Santa Casa di Loreto esposta in dieci brevi ragionamenti fra un sacerdote custode di S. Casa ed un devoto pellegrino, segunda edição, Loreto 1790, p. 41.
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2.7 Quarta etapa: o campo dos dois irmãos
As três paredes chegaram ao Monte Prodo, onde na época não havia nada além de poucas árvores e cabanas. O local escolhido desta vez foi o campo de dois irmãos, Simone e Stefano Rinaldi degli Antici23 . Agora é difícil identificar o ponto exato em que a Santa Casa chegou. No entanto, sabe-se que ficava em frente daquele que é hoje o santuário. De fato, ainda há uma pequena pedra esculpida na parede, no final do atual Palácio Apostólico e representando uma imagem de Nossa Senhora sentada acima da Santa Casa. Abaixo estava a inscrição “visitatio custodivit” (ou “este local guarda a visita” da Santa Casa).
Os dois irmãos, felizes por terem sido privilegiados pela Divina Providência, logo começaram a brigar. Os numerosos peregrinos que afluíam à residência sagrada, de fato, deixavam ricos dons votivos em homenagem à Mãe de Deus, e foi assim que os dois, tomados pela ganância e pelo desejo de obter lucro, entraram em conflito.Asituação tornou-se tão problemática que o município de Recanati recorreu ao Papa Bonifácio VIII (informado e ciente das trasladações milagrosas, como atestou no século XVIII o bispo de Montefeltro, Valerio Martorelli, já mencionado), para resolver a disputa e talvez expropriar a terra aos dois irmãos e torná-la terra pública. Na realidade, não havia necessidade de nenhuma intervenção humana, porque a Santa Casa, em dezembro de 1296, deixou o campo e permaneceu onde ainda é possível venerá-la hoje. Foi a quinta e última trasladação.
23 Cfr. G. Nicolini, Le cinque traslazione “miracolose” della Santa Casa de Nazareth, in Il Segno del soprannaturale, nº 22, dezembro de 2006, pp. 28-29.
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Bandidos e criminosos começaram a se enfurecer, roubando os devotos, de modo a tornar impossível a visita à Santa Casa. Esta foi evidentemente a principal razão da nova mudança, desta vez um pouco mais ao alto, no Monte Prodo. Revestimento de mármore. Antonio de Sangallo, 1531-1534
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2.8 Quinta etapa: a via pública
No final de 1296, portanto, a Santa Casa “pelo ministério angélico” pousou no meio da via pública que ligava Recanati a Ancona e Porto Recanati. As três paredes são colocadas na rua, sem fundações próprias. Somente quando suas estáticas foram consideradas inseguras é que se inseriram as infraestruturas e uma grande parede ao redor. Para se entender que a localização da Santa Casa na via pública não era obra humana, bastaria o senso comum mais básico. Como explicar que a autoridade possa ter permitido erguer
Em 1295, as três paredes da Santa Casa chegaram a um bosque na área de Recanati, localizado atrás da atual estação ferroviária de Loreto. Hoje existe ali uma capela como lembrança. O local é chamado “Bandeirola”, porque alguns devotos, no momento dos eventos milagrosos, ergueram uma bandeira no topo de um pinheiro muito alto, para mostrar aos peregrinos o ponto exato onde estava a Santa Casa.
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um edifício em importante via pública ao custo de refazer um trecho considerável da mesma, e que, além disso, esse prédio foi construído sem fundações próprias, uma suposta omissão sanada com subsequentes trabalhos de infraestrutura muito mais exigentes e caros do que as fundações comuns com as quais todo edifício é dotado?
2.9 Algumas precisões
Quanto às datas, deve-se notar que de modo geral se convencionou considerar 1294 como sendo o ano em que Santa Casa chegou a Loreto. Na realidade, porém, a única certeza é a de que naquele ano a preciosa relíquia deixou Tersatto e pousou em solo italiano. De acordo com o mencionado Prof. Giorgio Nicolini24, o erro de cálculo se deve ao arquivista recanatense Girolano Angelita, que no século XVI definiu a data de 10 de dezembro de 1294 como sendo a da chegada a Loreto, confundindo a data do desaparecimento de Tersatto (precisamente em 10 de dezembro de 1294) com a da chegada à área de recanatense, onde depois surgiu Loreto.
No que diz respeito à atestação da autenticidade das trasladações milagrosas ocorridas naqueles anos, é digna de nota a construção da igreja de Forio, na ilha de Ischia. Em 1295, após as notícias sobre a Santa Casa trazidas pelos pescadores locais que retornaram de Ancona, os habitantes de Forio começaram a construir uma igreja dedicada precisamente aos milagres ocorridos na região das Marcas, antes mesmo que esses eventos milagrosos tivessem uma conclusão (em 1296), sinal de que já na época havia um amplo conhecimento do grande acontecimento25 .
24 Cfr. G. Nicolini, La veridicità storica della miracolosa traslazione della Santa
Casa di Nazareth a Loreto, cit., pp. 78-79. 25 Cfr. ibidem, pp. 80-81.
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2.10 Os anjos ou... a família Angeli?
Neste ponto, cumpre fazer alguns esclarecimentos sobre a versão moderna, a qual parece ter substituído quase totalmente a versão tradicional, oficialmente reconhecida durante séculos pela autoridade da Igreja e dos fiéis. O milagroso voo angelical seria simplesmente uma sublimação e um retrabalho popular de um evento meramente humano – mesmo se assistido pela Divina Providência –, atribuível a certa família Angeli ou De Angelis?
A suposta fonte histórica à qual se referem os que apoiam essa hipótese26 (porque é uma mera hipótese) é o chamado Chartularium Culisanense, uma coleção de documentos de vários tipos, dos quais não se possui o original, mas apenas uma cópia (verdadeira ou presumida) de 1859, atualmente preservada na biblioteca dos monges de Montevergine (Avellino).
Esse documento, de acordo com a publicação do Prof. Andrea Nicolotti, a qual será discutida a seguir, é uma farsa histórica criada no século XIX por uma família de Culisano (Palermo), cujo sobrenome é De Angelis, para fazer as pessoas acreditarem que sua família deriva da linhagem principesca “Angeli” de Épiro.
Na folha nº 181 dessa falsificação se faz menção ao elenco dos bens totais que Itamar, filha do déspota de Épiro, Nicéforo I Angeli-Commeno, trouxe a Felipe d’Anjou, príncipe de Taranto e filho do rei de Nápoles, Carlos II d’Anjou, por ocasião de seu casamento, ocorrido em 1294. Entre esses bens, destacam-se as “pedras sagradas” retiradas da casa de Nossa Senhora (“sanctas petras ex domo
26 Quem sustenta com mais força tal hipótese é o padre Giuseppe Santarelli em
La Santa Casa di Loreto, cit., pp. 219 e ss. Para sua refutação, o estudo recente mais importante é sem dúvida de G. Nicolini, La veridicità storica della milagrosa traslazione della Santa Casa di Nazareth a Loreto, cit., pp. 40 e ss. Neste trabalho, as informações são extraídas de ambas as pesquisas.
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Dominae Nostrae Deiparae ablatas”) e uma tábua de madeira pintada com sua imagem, segurando o Menino Jesus nos braços. Mesmo que se queira admitir, sem conceder, uma autenticidade ao documento acima mencionado, dizer que foram retiradas algumas pedras “da Santa Casa” não significa que estejamos nos referindo à Casa de Nazaré, porquanto a Virgem morou em várias casas durante sua vida (como em Jerusalém, Egito, Éfeso).
De qualquer forma, o próprio documento desafia a interpretação de que toda a Santa Casa foi transportada, pois fala apenas de “pedras sagradas retiradas”: portanto, não toda a “Santa Casa”, mas no máximo algumas pedras! Em vez disso, existe em Loreto toda a “Santa Casa”, e não “algumas pedras” da mesma. Além disso, sempre se disse ou se entendeu que, ao deixarem milagrosamente Nazaré, permaneceram intactas as paredes do quarto de Maria, e não algumas pedras. Também porque se fossem simples pedras, tornar-se-ia absurdo falar de “Santa Casa”, pois do contrário não haveria hoje em Loreto parte da residência de Nossa Senhora, mas simplesmente algumas de suas pedras.
Ademais, muitos problemas não são compreendidos. Como pôde Nicéforo Angeli-Commeno dispor a seu bel-prazer da insigne relíquia, que se encontrava então debaixo da Basílica da Anunciação? Nenhuma autoridade eclesiástica local nada tinha a reclamar sobre isso? E depois, admitindo-se que as operações de transporte também foram projetadas para preservar a casa da violência islâmica (a conquista de São João d’Acre ocorreu em 1291), como é que esses bens totais acabaram no território de Loreto, naquela que na época era Estado da igreja? Como é que nada se sabe sobre essa viagem que certamente exigiria dinheiro, tempo e organização?27 A hipótese mais difundida fala de um presente ao Pon-
27 Cfr. G.M. Pace, Miracolosa traslazione a Loreto della dimora della Santissima
Annunziata, cit., pp. 18 e ss.
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tífice, mas não tem fundamento sólido. No entanto, embora exista a possibilidade de se transportar fisicamente por mar grandes quantidades e pesos de pedras (mas não uma casa intacta!), o motivo das cinco trasladações não é realmente explicado e, acima de tudo, não está claro como foi possível reconstruir a relíquia com todas as características verdadeiramente excepcionais (sem fundações, com argamassa do Oriente Médio datando de séculos e séculos antes, na via pública, parcialmente transportadas no vazio etc.), de que já falamos.
Ao longo dos séculos, a trasladação ou, melhor, as “trasladações milagrosas” foram questionadas por personalidades individuais dotadas de um espírito materialista, racionalista e desconfiado em relação a toda intervenção sobrenatural: era o espírito já presente desde o Humanismo.
Mas em nossos dias o Prof. Nicolini denuncia as manipulações que alguns estudiosos contemporâneos fazem das pinturas, representações e xilogravuras dos séculos XV e XVI, acreditando que nessas reproduções as duas “hipóteses” de transporte humano e trasladação milagrosa já são mostradas, como, por exemplo, em uma pintura do século XVI preservada no Museu-Pinacoteca do Santuário.
Sendo uma espécie de mapa geográfico, nesta pintura o autor descreve os navios e a Santa Casa levada pelos anjos acima do mar. A intenção é bem ilustrada na legenda abaixo, onde está expressamente escrito que a pintura mostra tão-somente as “trasladações milagrosas”, enquanto os navios são apenas um embelezamento da obra; além disso, o que algumas pessoas chamam de “Casa Santa” é a cabine que os navios medievais tinham na proa e onde ficavam as ferramentas úteis à navegação. Mas a interpretação “manipulada” nos livros de alguns estudiosos recentes, que publicam apenas painéis parciais sem descrição inequívoca do autor, faz crer aos leitores que realmente queriam representar as duas “hipóteses”: a da trasladação milagrosa
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e o transporte humano, naturalmente dando mais crédito à segunda hipótese que à primeira.
O mesmo vale para uma impressão de 1582-1585, preservada na Galleria degli Uffizi de Florença: os pequenos detalhes de um navio com uma casa e sem vela não mostram nada, uma vez que o autor, também neste caso, nas notas escritas embaixo, fala apenas da trasladação milagrosa.
A existência de céticos sobre a questão lauretana, como sobre muitos outros acontecimentos, não pode, portanto, invalidar sua veracidade histórica. Além disso, se no passado os negadores se concentraram mais na autenticidade da Santa Casa, foi apenas em torno do início do século XX, com o cônego Ulysses Chevalier, que se começou a falar de transporte marítimo e, portanto, de transporte humano da mesma. Mas a autoridade eclesiástica sempre se distanciou dessa hipótese e vários autores católicos a negaram em muitos textos, como veremos em breve.
Voltando ao Chartularium Culisanense, em um estudo de 2012, o professor Andrea Nicolotti28 (do Departamento de Estudos Históricos da Universidade de Turim), acima mencionado, minimizou bastante a suposta importância decisiva do documento, de cuja autenticidade duvida. Em suas conclusões, embora se julgue incapaz de tomar uma posição clara sobre o tema devido à falta de evidências, ele diz claramente que, em sua opinião, “o caráter substancialmente falso da história bizantina e dos documentos produzidos pela família De Angelis [de Palermo, em cujo palácio o Chartularium foi encontrado e que não tem conexão com os governantes de Épiro] deve nos levar a suspeitar fortemente da credibilidade de todas as fontes que eles creditam”29. Se
28 Cfr. A. Nicolotti, Su alcune testimonianze del Chartularium Culisanense, sulle false origini dell’Ordine Costantiniano Angelico di Santa Sophia e su taluni suoi documenti conservati presso l’Archivo di Stato di Napoli, in www.lavocecattolica. it/falseorigini.cartularium.pdf2012. 29 A. Nicolotti, cit., p. 17.
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isso for verdade, toda a hipótese do transporte humano e da sublimação popular da família Angeli nos anjos do Céu é dramaticamente menor.
E, para apoiá-lo, nem mesmo a descoberta no subsolo da Santa Casa de duas moedas cunhadas pela família Angeli e datadas entre 1287 e 130830 é suficiente (nos tempos antigos, havia uma necrópole naquele local), pois era normal fazer doações por ocasião da visita-peregrinação. E porque se algo na presença delas atesta um gesto de devoção de alguns peregrinos, certamente não atesta o transporte humano nem a reconstrução do edifício naquele lugar. Assim, a presença dessas moedas e de cinco cruzes de pano vermelho que pertenciam aos cruzados apenas confirma a autenticidade da Santa Casa, que chegou ao final do século XIII na região das Marcas.
Igualmente inconsistentes são as referências – aludidas entre o final do século XIX e o início do século XX – a supostos documentos do Arquivo Secreto do Vaticano31 , ocultos ou destruídos (não se sabe bem) porque teriam negado a tese do transporte milagroso da Casa de Maria, apoiada por todos os Papas e da igreja até então. É uma insinuação generalizada na época de Leão XIII pelo bispo de Dijon, Dom Landrieux, que saberia de sua existência com o médico Giuseppe Lapponi32, cético em relação a tudo o que estivesse relacionado com Loreto. No entanto, não há evidências em apoio a essa hipótese, apenas rumores de corredor provavelmente interessados em semear confusão. É possível que em muitos anos nem mesmo os inimigos da questão lauretana, como o próprio Lapponi, tenham conseguido provar alguma coisa?
30 Cfr. G. Nicolini, La veridicità storica della miracolosa traslazione della Santa
Casa di Nazareth a Loreto, cit., pp. 47-48. 31 Cfr. G. Nicolini, La veridicità storica della miracolosa traslazione della Santa
Casa di Nazareth a Loreto, cit., pp. 44-45. 32 Cfr. G. Santarelli, La Santa Casa di Loreto, cit, pp. 211 e ss.
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Em suma, embora tudo permaneça envolto em certo mistério (o mesmo podemos dizer de inúmeros outros eventos da história sagrada e de milagres recentes), falar sobre a trasladação “milagrosa” da Santa Casa ainda parece ser o mais racional e razoável, e não se vê a razão de tanta fúria em relação a ela precisamente da parte de certo mundo católico.
2.11 A misteriosa noite entre 9 e 10 de dezembro...
Um atestado adicional da trasladação milagrosa é encontrado em festivais populares. Nossa Senhora de Loreto é a padroeira da região das Marcas, e 10 de dezembro, dia em que a trasladação da Santa Casa é lembrada liturgicamente, também foi proclamada pelas instituições civis “Jornada das Marcas”.
Bem, a este festival estão ligadas tradições seculares que, infelizmente, após as profundas mudanças sociais e culturais ocorridas a partir do final da década de 1960, foram se perdendo. No entanto, deve-se dizer que nos últimos tempos houve uma recuperação, especialmente ditada pelo desejo de conservar o precioso e rico patrimônio folclórico local.
Tradicionalmente é na tarde e na noite da véspera da Trasladação que ocorrem os eventos mais importantes e característicos. De fato, 9 de dezembro é para os marquesianos a noite da “Vinda”, ou seja, aquela em que se recorda a trasladação milagrosa por mãos angélicas de todas as muralhas da Santa Casa de Nazaré para a colina lauretana.
Em nível popular e de modo espontâneo, as comemorações da chegada da Santa Casa começaram quase imediatamente já no século XIV33. No entanto, sua formalização e celebração de forma organizada se deram no século XVII, sobretudo graças à pregação e ao trabalho dos capuchinhos,
33 As informações foram extraídas de G. Santarelli, Tradizione e Leggende
Lauretane, cit., pp. 26 e ss.
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![](https://assets.isu.pub/document-structure/211207224749-f8fac4356634a0ac4b5adfb5e445fd69/v1/1226d4a6013c4da99135b5d401f12993.jpeg?width=720&quality=85%2C50)
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padre Bonifacio de Ascoli e Frei Tommaso de Ancona. Em 1624, o município de Recanati (ao qual pertencia Loreto) ordenou que, na noite de 9 de dezembro, “com o disparo dos morteiros e o som de todos os sinos, se fizessem fogueiras no território do município e se alumiassem lamparinas em todas as janelas da cidade, e os agricultores pelos campos acendessem fogos”34. A partir daí começou a tradição das “fogueiras” (chamadas “focaracci” na área de Macerata e Fermano, “fugarà” na área de Ancona e “fochère” na área de Ascoli), que são acesas no campo, nas praças das igrejas e nos bairros das aldeias de toda a região para iluminar o caminho de Nossa Senhora e do Menino Jesus que chegam fugitivos em sua casa.
Não é por acaso que em inúmeras igrejas da região das Marcas existem grupos esculturais típicos, geralmente em madeira, representando a Santa Casa em forma de uma igreja dotada de pequena torre com sino, sobre a qual estão a Virgem e o Menino. É por isso que, nessa região, Nossa Senhora de Loreto é também conhecida como Madonna del “tettarello” (Nossa Senhora do teto), ou “de li cuppiti”(do telhado), no dialeto das Marcas, porque está representada sobre o telhado da casa.
Embora variem de região para região, de bairro para bairro e também de família para família, os “fogos da Vinda” eram geralmente acesos antes ou depois do jantar, mas, é claro, sempre à noite. As pessoas se reuniam ao redor da fogueira, recitavam o Santo Rosário e cantavam a Ladainha lauretana, acrescentando canções e hinos marianos de devoção popular. Em cada casa também se colocava pelo menos uma vela na janela ou no peitoril. Tudo isso foi recentemente e louvavelmente recuperado por várias paróquias e comunidades locais. Em certa época era tradição os avós ou os pais contarem aos pequenos a história da trasladação mi-
34 Cit. in G. Santarelli, Tradizioni e Leggende Lauretane, cit., p. 30.
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lagrosa, não sendo difícil imaginar o quanto a imaginação fazia cócegas nas crianças.
O momento culminante, no entanto, geralmente acontecia às 3 horas da manhã, quando as três paredes pousaram na região das Marcas. Naquele momento, os sinos tocavam e muitos chefes de família disparavam vários tiros de espingarda das janelas para dar as boas-vindas. Depois se dirigiam à igreja para rezar ou assistir à Missa.