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AnĂ´nimos do bem
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pelas causas sociais
PARA SUBIR, APERTE O BOTÃO.
Trata-se de uma proposta para reunir, organizar e incentivar a produção feita pelo corpo discente. Tal como portfólio, ele deverá ser a plataforma a facilitar a divulgação de produtos que envolvam diferentes meios e linguagens que atravessam a prática profissional. O Portal é voltado tanto à comunidade acadêmica quanto aos membros externos, interessados na produção dos estudantes. O nome QUINTO ANDAR é uma referência ao quinto piso do Centro Universitário 7 de Setembro, pavimento que é associado aos alunos criativos da instituição, os alunos dos cursos de Comunicação Social e Design. Aproveita-se, portanto, esse afeto, já construído em torno da expressão, a fim de invocar esse pertencimento ao setor criativo da instituição de ensino. Acompanhe as produções dos alunos e passei no Portal. Participe. Deixe seu comentário com sugestões para construção do nosso espaço.
VICE-REITOR Ednilo Soárez PRÓ-REITOR ACADÊMICO Adelmir Jucá PRÓ-REITOR ADMINISTRATIVO Henrique Soárez Coordenador do Curso de Jornalismo Dilson Alexandre Coordenadora do Curso de Design Nila Bandeira Editores Chefe Ana Márcia Diógenes e Miguel Macedo Projeto Gráfico Tarcísio Bezerra Direção de Arte Diego Henrique, Humberto Araújo e Tarcísio Bezerra Estagiários do núcleo de design editorial Wesley Galdino Thyago Diniz Robson Marques Editorial Pedro Brito COLABORARAM NESTA EDIÇÃO: Texto Ítalo Falcão, Iury Medeiros, João Ricart, Juliane Cavalcante, Maria Laura Sena, Mairla Freitas, Paulo Mesquita, Pedro Brito, Victoria Franco, Weider Gabriel Design Bruno Silva, Fernanda Borges, Jeane Chaves, Jonathan Silva, Khelvya Carvalho, Lisandra Sousa, Luciana Silva, Marcela Benevides, Robson Marques, Talita Chaves, Thyago Diniz, Weider Gabriel, Wesley Galdino.
Revolução das gentilezas Como enfrentar a aridez das relações humanas que
insiste em ganhar espaço cada vez maior em nosso cotidiano? Noticiários e conversas são pautados quase sempre pela materialização da nossa involução enquanto sociedade. E não é para menos. Vivemos a plena espetacularização de tudo, guiados por um olhar cada vez mais dessensibilizado, avesso a questões humanitárias urgentes e que tem na intolerância e indiferença cabos eleitorais dessa nova (des)ordem mundial. Devemos celebrar, portanto, esses militantes anônimos do bem, das gentilezas, que a revista Matéria Prima nos apresenta na edição deste primeiro semestre de 2017. O leitor verá histórias que abordam temas essenciais da contemporaneidade. O trabalho do Centro de Valorização da Vida (CVV) no apoio emocional contra o suicídio, a Instituição Casa do João que dá suporte a crianças em situação de vulnerabilidade social e o empenho de um grupo na distribuição de sopa no centro de Fortaleza. Em Icapuí, a 202 km da Capital, a iniciativa de pesquisadores traz a tona discussões pontuais sobre sexualidade e gênero. No bairro Jangurussu, projeto ministra aulas de música e nos arredores do Campus da Uece, as palavras rimadas ecoam no enfrentamento da violência. No Bom Jardim um movimento fortalece a autoestima dos moradores por meio do pensamento crítico. Conheceremos a Associação Beija-Flor e sua dedicação na assistência e reabilitação de pacientes com lábio leporino e a “palhaçoterapia” de estudantes de medicina, que torna mais leve a jornada de tratamento de crianças doentes. E ainda tem Dona Estela a cuidar dos bichanos abandonados. Em todas elas há um tema transversal: a opção por ir além de si mesmo. São projetos, instituições, voluntários e pesquisas que sem grandes apoios fazem a diferença em seu entorno. São agentes das sutilezas da bondade, que afora maniqueísmos rasos, promovem revoluções diárias. Basta um olhar atento para perceber que estão por aí. Estes e tantos outros, assim como o senhor de aproximadamente 60 anos que ocasionalmente pode ser visto pelas ruas do Centro ou na Beira Mar, a soltar beijos, sorrisos e acenos, a revelia da sinfonia mecânica do caos das ruas, numa doce insanidade. Diante de um contexto global onde cada indivíduo age como um empresário de si mesmo inclinar-se para o bem com um é mesmo quase uma loucura.
Ótima leitura! Anônimos do bem]
A foto da capa e a aquarela desta página, ambas de autoria de Humberto Araújo, buscam homenagear as pessoas retratadas nesta edição da Matéria Prima, que, assim como as abelhas ao polinizar as flores, espalham anonimamente o bem ao seu redor. 4 // MATÉRIA PRIMA 2017.1
EDITORIAL
Reitor Ednilton Soárez
SUMÁRIO 22
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6 A recuperação por meio de um sorriso 24 No mar, na praia, na comunidade há vida 28 Um dia de cada vez 30 Palavras que pulsam 34 Multiplicando o bem 2017.1 MATÉRIA PRIMA // 5
Trabalho voluntário de estudantes da área da saúde leva cor, brilho, alegria e esperança a crianças que estão em tratamento e lutam para viver Repórter Juliane Cavalcante FOTOS Shutterstock | Juliane Cavalcante DESIGN Fernanda Borges 6 // MATÉRIA PRIMA 2017.1
Desenvolver e entender o lado humanizado, praticado na Medicina, assim como em outras áreas da saúde, é fundamental para o atendimento ao paciente. Esses cuidados não devem se limitar aos sintomas da doença, mas se estender ao psicológico do ser humano. Quando se trata de crianças, a internação e os tratamentos nos hospitais são ainda mais complicados. Levar para o hospital o universo colorido, divertido e acolhedor é uma das formas de aproximar o dia a dia dos pacientes pequeninos de uma infância normal. É por meio desse sentimento que nasceu o projeto Plantão Alegre. O objetivo é levar sorrisos e felicidade aos ambientes, às vezes assustadores, que costumam ser os hospitais. O projeto, que desenvolve a arte da “palhaçoterapia” para modificar a vida dos pacientes e dos alunos, foi idealizado pela professora do curso de Medicina da Unichristus, a médica Anamaria Cavalcante e Silva, junto com as alunas Ana Paula Lopes e Christianne Damasceno. Em vez de remédios, os futuros médicos, psicólogos e fisioterapeutas buscaram brinquedos, sorrisos e amizade para serem seus novos aliados nas visitas aos hospitais. O objetivo é fazer de cada visita uma intervenção solidária,
levando bem-estar, cores e felicidade aos lugares que tradicionalmente são cinzentos e tensos. Anamaria Cavalcante diz que o projeto é um sucesso. A cada ano que passa a adesão dos alunos à iniciativa só aumenta, e as turmas que participaram dessa vivência se renovam. Para ela, não há dúvidas de que o Plantão Alegre é também um marco para vida pessoal e acadêmica dos alunos. “A vocação por cuidar, por meio do voluntariado, acumula muitas lições para os futuros médicos,” acrescenta.
A vocação por cuidar, por meio do voluntariado, acumula muitas lições para os futuros médicos Anamaria Cavalcante Do lado de quem exerce o trabalho voluntário, o sorriso da criança é a recompensa natural pelas horas dedicadas. O projeto tem uma influência tão forte sobre a carreira dos estudantes, que é comum encontrar ex-voluntários, já formados, que se apaixonaram pelo projeto
e até hoje voltam para acompanhar pacientes que lhes marcaram. É o caso da Dra. Ana Paula Martins, que participou durante um ano do projeto e, já formada, volta aos hospitais onde acontecia a palhaçoterapia, para acompanhar alguns pacientes marcantes. Ela destaca que a criança internada precisa de um sorriso em meio a tanto sofrimento. Diz também que desde o primeiro semestre os alunos são super estimulados a participar do Plantão Alegre, a partir do momento em que veem os alunos dos semestres à frente fazendo o trabalho voluntário e falando sobre as experiências vivenciadas. “Durante o Plantão Alegre eu conheci um outro lado da Medicina. Nós somos acostumados a ir a um hospital para a parte clínica. Então aos domingos estamos aqui para ver o paciente, ver o sorriso deles, estimular a felicidade. Isso não tem preço.” A ansiedade das crianças, ao verem os estudantes da área da saúde com os adereços coloridos e rostos pintados, já reflete o quanto elas esperam por esse momento. Conversando com os pais das crianças e observando o carinho que as crianças desenvolvem pelos participantes após uma manhã de brincadeiras, piadas e contação de histórias, per-
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cebe-se uma imensurável positividade do trabalho. Os universitários relatam a melhoria da capacidade de enfrentar as dificuldades do tratamento, e o fato de que as crianças ficam mais à vontade com o ambiente hospitalar, além de mais ativas e motivadas. Observam ainda que aumenta o percentual de colaboração delas com os profissionais da saúde, melhora a aceitação dos procedimentos médicos e da alimentação. Como nem sempre o primeiro contato do plantonista alegre com a criança ou adolescente hospitalizado se dá de maneira fácil ou rápida, há sempre um obstáculo e um objetivo a serem vencidos. Boa parte da resistência imposta por eles à interação com os voluntários se dá pela tristeza e pela amargura da condição vivida, e de que boa parte de seus sonhos e esperanças já ter sido frustrada pela condição da doença. Porém, persistir de forma aceitável, saber lidar e vencer essas barreiras torna o papel do Plantão Alegre ainda mais bonito, diz a médica e professora de Medicina, Anamaria Cavalcante, “pois desenvolver o sorriso no rosto de um paciente e a perseverança para sair da condição em que se encontra e lutar por uma melhor qualidade de vida é uma felicidade imensa para todos os participantes do projeto’’. A estudante de medicina Juliana Mota, voluntária do Plantão Alegre, relata casos em que realmente nem toda fantasia, balões e brincadeiras conseguem diminuir a dor do paciente. “O trabalho que a gente realiza aos domingos no Plantão Alegre
muda a nossa percepção de mundo. Você começa a dar valor aos mínimos detalhes. Com certeza, depois que acabar meu período de trabalho voluntário, vou querer voltar a viver esses momentos.” Participar dessas atividades humanizadas e lúdicas é se permitir sair da zona de conforto, tanto para os plantonistas alegres quando para os familiares e pacientes. Os desafios surgem a todo momento. Em uma brincadeira, por exemplo, que parecia ser bastante legal e os pacientes não deram atenção, os estudantes de Medicina percebem a necessidade do estímulo para retornar, superar-se e ser solidário.
Paródia Plantão Alegre Super Fantástico – A Turma do Balão Mágico | Por Monalisa Pequeno Super plantão da alegria Viemos nesse dia Só para ver você E para fazer companhia Bagunça e Fantasia Com muito prazer Todas as crianças já sabem
Nós somos acostumados a ir a um hospital para a parte clínica. Então aos domingos estamos aqui para ver o paciente, ver o sorriso deles, estimular a felicidade Dra. Ana Paula Martins Os alunos dizem que a gratidão é instantânea. E que sempre surge um simples sorriso, uma demonstração de afeto com o aprendizado de viver com alegria, mesmo nos momentos de dificuldade. Ou ainda com o fato de mesmo que, às vezes, nenhuma brincadeira tenha sido divertida o suficiente, o paciente só queria alguma companhia. Ou seja, alguém que ficasse ao lado dele e conversasse.
Que todas ela cabem No nosso coração Até quem tem mais idade Sente felicidade De ver nosso sorrisão Somos assim Contentes de estar aqui Só pra ver você cantar esse refrão Super plantão da alegria Viemos nesse dia Para ver sempre seu lido sorriso (2x) Super plantão da alegria Seremos sempre os seus bons amigos
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Seus olhos claros refletem a recompensa da luta que decidiu travar nos últimosdez anos. O jeito doce de se expressar, talvez um contraste com o passado cruel, parece ser a recompensa do esforço diário dedicado à Casa do João.
Após perder seu único irmão, em um assalto a mão armada em Fortaleza, Joelma Ildefonso viu seus pais sucumbirem à depressão. João Ildefonso faleceu no dia do seu aniversário, aos 28 anos. “Ele morreu da forma mais bruta, sem aviso ou preparação”, lamentou a irmã. O sofrimento da família só crescia com o
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passar dos dias. A única solução encontrada por Joelma, ávida por ajudar seus pais era “a vontade de fazer algo por alguém, que surgia devagar”. A primeira atitude foi organizar um sopão aos sábados, junto com um ‘racha’ entre amigos. O fogão e as panelas eram emprestados pelo dono do campo de fu-
RepórteR | FOTOS Iury Medeiros DESIGN Talita Chaves
tebol. O quilo de feijão, arroz e farinha substituíam a taxa cobrada para quem quisesse jogar. As verduras “um grande amigo nosso doava”, adiantou Joelma. O pão às vezes tinha, às vezes, não. Com muita paciência, Joelma conseguiu convencer seu Chico e dona Diolina, seus pais, a se envolverem com a causa.
“De início não foi fácil não, mas depois foram criando gosto”, explicou. Aos poucos, o deleite pelo trabalho humanitário foi brotando e dominando o trio. A sopa foi aumentando de 80 para 150 litros, na medida em que curava a ferida da dor e amenizava a saudade. Os frutos não demoraram muito para brotar. Ganharam um fogão. “Não era novo, mas para nós tinha o gosto de brinquedo desejado”. Foi preciso fazer mudanças: a sopa começou a ser servida na varanda da casa de seu Chico e dona Diolina. As ações foram aumentando. Eram festas de Dia das Mães, das Crianças, de Natal. O tempo fez com que Joelma sentisse a necessidade de uma “certidão de nascimento”. Não era João que voltava à vida, mas, sim, seu amor que se multiplicava e fazia surgir, em 23 de junho de 2010, o Instituto João Ildefonso de Oliveira, ou simplesmente Casa do João. “Foi uma realização imensurável! Chegava a hora de colocar em prática várias ideias, para acalmar nossos corações que queimam em abraçar as causas sociais”, comemorou a filha de seu Chico e dona Diolina. Hoje, a Casa do João está em construção e tem como alicerce o amor de cerca de 110 crianças em situação de vulnerabilidade social. Nascidas no bairro Ancuri, a maioria possui pais presidiários ou que não têm condições de pagar por uma creche. Elas têm idade entre três a cinco anos. São assistidas em período integral por oito professoras, todas formadas em Pedagogia. Alimentam-se cinco vezes por dia, tomam dois banhos, chegam às 8h e saem às 17h. Composto por um salão principal, que dá acesso a duas salas de aula, dois banheiros, uma cozinha improvisada, consultório médico e dentário, ainda inacabados, o Instituto sobrevive de doações. “São os anjos sem asas”, define Joelma. Além da creche, a Casa do João entrega todas as sextas feiras, a partir das 17h30min, 360 litros de sopas. 120 famí-
lias são assistidas com três litros. Num mês, um total de 7.000 pratos. A cada três meses é realizado também um bazar de usados, provenientes de doações. Toda a renda arrecadada é destinada para as obrigações sociais.
SAIBA MAIS SOBRE OS PROJETOS DA CASA DO JOÃO Projeto Sopão da Vida Projeto Cestão Projeto Sacola Amiga
Chegava a hora de colocar em prática várias ideias, para acalmar nossos corações que queimam em abraçar as causas sociais Joelma Ildefonso
Projeto Paz no Lar
O caminho a percorrer não é curto. Para manter a Casa do João, a família Ildefonso necessita de material de construção, de higiene pessoal e limpeza, alimentos perecíveis e não perecíveis, móveis novos e usados, roupas, brinquedos. Sobre arrependimento, eles nem pensam. Acreditam que fizeram a escolha certa. “Eu tenho certeza de que quando eu encontrar João, ele vai se orgulhar e agradecer”, afirmou Joelma, com o olhar fixo para o porta-retratos do irmão, exposto logo na entrada do Instituto. É na assistência das famílias do Ancuri que Joelma recarrega sua força motriz para continuar a ser a mola propulsora do Instituto. “Minha recompensa é ganhar um novo coração a cada dia”.
Projeto Leite Meu
Projeto Carnaval da Melhor Idade Projeto Viver Feliz Projeto FeliZidade Projeto Futuro Melhor Projeto Crianças de Luz Projeto Natal Sem Fome Projeto Outubro Feliz Creche Casa do João Ação Social
Mais informações e doações: Conta corrente: 66.939-3 Agência: 1295-5 Banco do Brasil Instituto João Ildefonso de Oliveira – I.J.I.O. – Casa do João Contato - (85) 30231104/ 999023126/ 987211104 Email: ijiocasadojoao@hotmail.com
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Fazer o que puder, até quando puder Aos 10 anos, Elyne jamais imaginaria como a história de seu avô a guiaria no futuro e mudaria muitas vidas Repórter Maria Laura Sena FOTOS Maria Laura Sena DESIGN Wesley Galdino
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Elyne Lacerda Santana Girão, 37, é casada com Mário, 40, e é mãe de duas filhas, Mariana, 7, e Gianna, 5. Formada em Fonoaudiologia e especializada em Disfagia, atualmente é Presidente da Associação Beija-Flor e fonoaudióloga no Centro de Reabilitação de Deformidades Faciais do Ceará (FUNFACE). A Associação Beija-Flor, fundada em 2001, é um trabalho voltado para ajudar o paciente no tratamento de fissura palatina e, entre os projetos que mantém, está o FUNFACE. Desde 2013, Elyne utiliza de sua formação para auxiliar, acompanhar e tratar, sem fins lucrativos, pessoas com fissuras faciais. Ela realiza esse trabalho juntamente com outros profissionais da área da saúde que também fazem parte da instituição. O seu desejo de desenvolver uma ação nessa área vem de longe. Seu avô paterno tinha má formação de face. Ele queria ser mais próximo da família, porém, tinha vergonha de seu problema. Quando ia visitá-lo, ela tinha medo de se aproximar, mas na medida em que foi crescendo, passou a vê-lo somente como avô, sem se incomodar com a má formação. Entendeu que ele tinha vergonha, dificuldade de interação social e que, por isso, se alimentava em uma mesa separada. Quando ela tinha 10 anos, o
Eu entendi que a missão da minha vida era essa. De tentar levar alguma coisa a mais para essas famílias Elyne Girão avô faleceu. Elyne ainda não sabia que profissão seguiria, mas essa situação foi marcante em sua vida. Quando ingressou na faculdade de Fonoaudiologia, nas atividades práticas, teve a oportunidade de ter contato com paciente fissurado. No curso, virou membro do Centro Acadêmico de Fonoaudiologia e novamente teve a oportunidade de conhecer mais sobre o porquê da fissura labiopalatina. O Centro Acadêmico montou uma semana de Fonoaudiologia, na qual um dos workshops era sobre a fissura labiopalatina. Para a escolha do profissional de fissura, Elyne foi ao Hospital Infantil Albert Sabin (HIAS). Lá, conheceu Francisco de Assis Alves Teixeira (in memoriam), cirurgião plástico, e um dos fundadores da Associação Beija Flor. A partir disso, teve noção da área que mais se identificava e conseguiu um estágio no HIAS, com Evelin Ponte Gondim, 63, outra fundadora da Associação, e que também trabalhava no Sabin. “Fazia aquilo e tinha comigo o meu lado fami-
liar. Fui entendendo como cuidar, como compreender a pessoa com fissura e a família da pessoa fissurada”, diz Elyne. Na faculdade, conheceu a área de deglutição, na qual se especializou. Durante a finalização do trabalho de especialização, buscou novamente o HIAS. Começou a trabalhar na área infantil, quando houve um novo despertar para o paciente com fissura. Desenvolvendo essa experiência profissional, teve novamente contato com o trabalho da Associação Beija Flor. Ver a equipe se mobilizar para conseguir uma doação que o fissurado estivesse precisando - como leite, por exemplo - ver situações e perceber como a equipe se comportava a fascinou muito, unindo-a a essas pessoas. Aprendeu a atender o paciente adulto, que até então não era habituada, e a participar da área administrativa da instituição. Iniciou esse trabalho quando a sede da instituição, que antes funcionava em uma sala no HIAS, já tinha um ano. A fonoaudióloga diz que quer fazer pelos outros o que o avô dela não teve a oportunidade de receber. Na época em que ele faleceu, o médico mencionou que se tivesse sido feito algum tipo de reconstituição, talvez ele não tivesse adquirido a pneumonia e morrido em
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decorrência disso. Isso a alegra porque, para o que ela faz, existe um motivo: quer fazer o que puder, até quando puder por alguém. “Eu entendi que a missão da minha vida era essa. De tentar levar alguma coisa a mais para essas famílias”. “É essa a alegria que a gente tem. Eu chamo de alegria porque não tem como ser triste aqui”, destaca Elyne, admitindo que sua força vem da gratidão e que isso é todo o sentido da vida. Diz ainda que tem muito a agradecer pela sua vida e queria fazer muito mais, e que deseja que sempre seja colocada nesse caminho de ajuda. Pede discernimento e sabedoria, agradece e é grata a todas as amizades que forma nesse meio. A Associação Beija Flor foi criada em 17 de dezembro de 2001, por Francisco de Assis Alves Teixeira, cirurgião que trabalhava no Hospital Albert Sabin, e por Eveline Gondim, para dar amparo
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biopsicossocial com o intuito das pessoas terem um local especialmente para elas. O nome vem de “bio” por ser algo orgânico, “psico” por conta de inserção, e “social” por inserir o paciente com deformidades craniofaciais. A associação trabalha com a assistência, a reabilitação e a psicologia na família, para a aceitação da pessoa com a fissura. Possui uma equipe de mais de 20 profissionais, incluindo cirurgião plástico, fonoaudiólogo, dentista, ortodontista, otorrino, pediatra, nutricionista, psicólogo, assistente social, terapeuta ocupacional e também a área de fisioterapia, que aos poucos está sendo inserida. Um leque de profissionais que, de forma voluntária, foram se aproximando do trabalho. Atendem o paciente desde a barriga da mãe até a fase adulta. E ainda articulam projetos de inserção do paciente no mercado de trabalho, como produção de artesanato e coral.
Fazia aquilo e tinha comigo o meu lado familiar. Fui entendendo como cuidar, como compreender a pessoa com fissura e a família da pessoa fissurada diz Elyne
SAIBA MAIS Para mais informações: http://www.associacaobeijaflor.org/ Ou entre em contato com: A associação: (85) 3295.0812 funface@associacaobeijaflor.org Elyne: elynefono@yahoo.com.br Av. Alberto Craveiro, 2222 - Bairro Castelão - Fortaleza/CE
É essa a alegria que a gente tem. Eu chamo de alegria porque não tem como ser triste aqui destaca Elyne
Para entender
Lábio leporino, fissura palatina ou labiopalatina é uma deformidade congênita e de etiologia multifatorial. No Ceará, os casos são de 1 a cada 550 nascidos. Pode ocorrer também uma deformidade adquirida, como em acidentes que ocasionem lesões na região facial. A maioria dos casos que a instituição atende é de pessoas com problemas congênitos. Todos os atendimentos são sem fins lucrativos. Até hoje não possui qualquer tipo de credenciamento, convênio ou financiamento de Órgão Público. Existem duas ONGs internacionais que atuam na área. Uma delas é a Smile Train, americana, unicamente vol-
tada para os pacientes com fissura, e que capta recursos para ajudar os centros que trabalham no Brasil e em outros países. A outra é a Etica, de nacionalidade italiana, que também ajuda instituições. Qualquer colaboração é considerada pelos profissionais voluntários. Se for um objeto é inserido no bazar para ser vendido e transformado em doação para a associação, e em doação para o paciente. Existem também as contas, em que podem ser feitos depósitos, além de doações de equipamentos que podem contribuir na infraestrutura da instituição (como, por exemplo, cadeiras de dentistas, televisões, computadores).
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Pelos
acordes
do coração
REPORTAGEM | FOTOS Victoria Franco DESIGN Khelvya Carvalho
A música tem o poder de sensibilizar e, ao mesmo tempo, de promover mudanças na vida de quem aprende e de quem ensina, voluntariamente, a tocar um instrumento
No interior do bairro Jangurussu, em Fortaleza, a instituição espírita Casa da Caridade Dr. Adolph Fritz abriga um pequeno projeto social que ensina gratuitamente a tocar instrumentos musicais. A Casa da Música foi fundada na segunda metade de 2014, idealizada pelo atual coordenador, Diego Zaranza, 34. As aulas são ministradas por ele e pelo músico Chico Viola. Formado em Arquitetura, Diego sempre gostou de fazer trabalho voluntário, desde o início da faculdade. Ele decidiu ser voluntário quando conheceu a Casa da Caridade, por intermédio de um amigo, em um evento chamado A Pintura Mediúnica. A partir daí, estudou e se aprofundou cada vez mais no tema da doutrina Espírita, e não demorou a se oferecer para participar. Segundo ele, sempre houve em seu interior essa vontade de estar trabalhando e ajudando, desde a época da faculdade. Por algum tempo foi pre-
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sidente do Centro Acadêmico - CA da Arquitetura da Unifor, e também do Diretório Central dos Estudantes – DCE. Mas quando ficava “livre” disso tudo, sentia falta de trabalhar voluntariamente, pois era algo que o completava. Toda essa boa ação se faz não apenas por gosto, mas também porque ele acredita que fora da caridade não há salvação. E que, se cada pessoa fizesse esse tipo de trabalho, se colocaria mais fácil no lugar do outro, como Cristo diz a respeito de amar o próximo, e estaria colaborando para um mundo melhor. A Casa da Música iniciou as atividades apenas com aulas de violão, tendo Diego como primeiro coordenador. Logo depois o músico Chico Viola, que também é colaborador da Casa da Caridade, o sucedeu. Atualmente, Diego voltou a atuar como coordenador. Já as aulas para ensinar a tocar tambores e instrumentos de percussão começaram em novembro do ano passado. Quem ensina é a professora Catherine Furtado, doutoranda em música. Um dos mestres de Cultura do Ceará, Descartes Gadelha, doutor em música, também colaborou bastante com a Casa da Música, doando músicas de sua autoria, feitas especialmente para a instituição. A flauta e o pífano estão planejados para em breve estar entre as opções. Diego fala que a arte da música é um elemento transformador moral, não somente dos estudantes, mas para o geral. Toda a comunidade, até mesmo os professores e trabalhadores da Casa, sentem a mudança. A música tem um quê de tera-
pêutico, musicoterapia, embora não tenha um musicoterapeuta trabalhando lá. “Há três pessoas no grupo de percussão que sofriam com depressão, e depois que começaram a tocar, em um mês reduziram os remédios e em dois meses fazendo aula já estavam boas. Isso paga qualquer coisa”, disse Diego Zaranza.
Tem três pessoas no grupo de percussão que sofriam com depressão, e depois que começaram a tocar, em um mês reduziram os remédios e em dois meses fazendo aula já estavam boas. Isso paga qualquer coisa Diego Zaranza Os alunos são de várias partes da cidade e de todas as faixas etárias. Alguns entram já querendo tocar, outros não sabem ou nem instrumento têm, mas tomam gosto do mesmo jeito. Os professores dizem que os estudantes começam a se transformar, ficam mais felizes por estar tocando, e desenvolvem um hobby. “Não necessariamente tem que se apresentar ou se tornar um músico, mas a música tem muito de mudar, de transformar, e utilizando esse tipo de arte, as pessoas acabam evoluindo”, observa Diego Zaranza.
Para além do voluntariado na Casa da Caridade e no projeto, Diego trabalha e tem remuneração como arquiteto. A especialidade dele é o planejamento de espaços, construções e gerenciamento de obras, como também criação em publicidade e design. Na Casa da Caridade, Diego soma a coordenação da Casa da Música com a oferta de seus conhecimentos de arquitetura quando necessário. Atua ainda como consultor e designer de projetos de arte, cartazes e panfletos para os projetos de publicidade. De quebra, ele faz planejamento de construção, no caso de uma das eventuais reformas ou restauração de novos espaços da instituição. Para quem estiver interessado em se voluntariar, deixa o recado: “Qualquer músico que queira participar é bem-vindo. Qualquer conhecimento em música, seja num coral ou violoncelo, é muito bem-vindo na Casa da Caridade. E outros que não são músicos, acreditem, a gente vai usar suas habilidades, para que sejam aproveitadas aqui dentro. Vocês usarão a sua profissão para fazer caridade e bem ao próximo”.
SAIBA MAIS Horário de funcionamento da Casa da Música Domingo: Violão 16h30 – 17h30 Segunda: Violão 19h30 – 20h30 Quinta: Percussão 19h30 – 21h
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O
bem que
uma voz
faz
Repórter | FOTOS Italo Falcão DESIGN Luciana Silva
Nem todos conseguem se abrir com o próximo e desabafar. Pensando isso, surgiu o CVV que, de voz em voz, faz um bem sem ver a quem Mark Twain (1835–1910) já dizia: “A bondade é uma linguagem que o surdo consegue ouvir e o cego consegue ver”. A máxima se insere e traduz o trabalho do Centro de Valorização à Vida (CVV), que presta serviço voluntário e gratuito pelo número 141. O atendimento inclui apoio emocional e prevenção do suicídio para todas as pessoas que querem e precisam conversar, na intenção de propiciar o bem para quem entra em contato com a instituição. As razões para cometer o suicídio podem ser bem diferentes, por isso, a primeira medida para prevenção é educar. É preciso deixar de ter medo de falar sobre o assunto, compartilhar seus sentimentos com alguém e quebrar alguns tabus, inclusive de que a ansiedade seria uma besteira. O esclarecimento sobre o problema é a forma mais bem-sucedida de combatê-lo. Isto se aplica, por exemplo, nas medidas de combate ao câncer e às doenças sexualmente transmissíveis. Para ajudar as pessoas na prevenção ao suicídio, o CVV — que funciona no Brasil desde 1962, com a instalação
em São Paulo e, no Ceará, a partir de 1987—, conta com inúmeros voluntários espalhados pelo Brasil. Entre tantas histórias de dedicação ao próximo de forma gratuita, chama atenção a que liga Rose Dantas, 55, ao CVV. Ela é voluntária do Centro de Valorização à Vida de Fortaleza há 13 anos e já escutou diversas histórias comoventes, que não podem ser compartilhadas.
Quando você ajuda alguém e sente que ajudou, é onde encontra a satisfação do trabalho Rose Dantas Existe uma política de sigilo bastante valorizada e efetiva, para garantir a confiança de quem liga em busca de ajuda. Ela não trabalha sozinha. O CVV Fortaleza conta com 25 voluntários, que seguem à risca a política de fazer o bem
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sem ver a quem, atendendo os telefonemas e sempre demonstrando satisfação. “O mais gratificante é fazer o bem mesmo. Às vezes é cansativo pela rotina de trabalho, mas quando você ajuda alguém e sente que ajudou a pessoa, é onde encontra a satisfação do trabalho”, comenta Rose. Existem pessoas que ligam para o 141 apenas para contar como foi seu dia. Outros telefonam em busca de desabafar sobre suas angústias e aliviar pressões externas, como a culpa, o remorso e os principais casos, como a ansiedade e a depressão. Rose compartilha um único caso, diante da política de sigilo. A pessoa se identificou após a ligação, porque fez um agradecimento. O caso foi atendido em
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Maringá, no Paraná. Na ocasião, a pessoa ligou para o CVV e se sentiu tão bem após a ligação, que redigiu uma carta para todas as sedes do Centro no Brasil. Embora a temática do suicídio já tenha tido um maior tabu, ainda hoje é algo que necessita de atenção. “Às vezes é um assunto proibido entre as famílias e amigos, pois estes veem a pessoa
Quando a ‘bolha estoura’, o suicídio aparece como a solução da pessoa. Rose Dantas
que pensa no suicídio como um alguém com mentalidade de fracasso. E naturalmente a pessoa perde o conforto em falar sobre o assunto. Quando a “bolha estoura”, o suicídio aparece como a solução da pessoa”, conta Rose. Ela explicou, ainda, o processo de seleção de voluntários. A divulgação é feita por panfletos e na página do Facebook. Para participar é necessário ser maior de 18 anos e ter disponibilidade de tempo. “Às vezes chegamos a ter até 48 voluntários inscritos, mas quando começa o curso e as dificuldades são vistas, e a dificuldade do encaixe de tempo é percebida, as turmas vão diminuindo gradativamente”. O Centro de Valorização à Vida, além de atender às ligações e ouvir desconhecidos,
realiza outras atividades como a elaboração da panfletagem com todos os dados de campanhas. Em alguns centros existem as rodas de diálogo, por meio de grupos de apoio. Em outras unidades, em certos momentos, as portas são abertas para a conversação ao vivo e em particular, como aconteceu em Maringá, em 2016.
Parcerias
O Facebook é uma empresa que apoia ativamente as campanhas contra o suicídio. Em parceria com o CVV lançou uma ferramenta que alerta sobre a possibilidade do usuário estar com algum problema. Para isso, o internauta clica
na publicação, denuncia, escolhe a opção “Isso não deveria estar no Facebook”. Em seguida, responde anonimamente à questão sobre “O que há de errado”. O dono da publicação recebe uma mensagem falando que seus amigos estão preocupados com ele e surge a opção de ligar para o CVV. Uma novidade que está sendo desenvolvida é o serviço de ligações gratuitas do CVV. A partir do momento em que for discado o número do Centro, seja do telefone celular, fixo ou público, nenhuma taxa será cobrada. E a pessoa pode ser atendida por um voluntário de qualquer sede do Brasil.
SAIBA MAIS O CVV é uma associação civil sem fins lucrativos, reconhecida como de Utilidade Pública Federal desde 1973. O Centro tem voluntários disponíveis para conversar sobre a valorização da vida, depressão, autoconhecimento, voluntariado, solidão, angústia, desequilíbrio emocional e prevenção do suicídio. O suicídio é considerado pelo Ministério da Saúde como um problema de saúde pública: uma pessoa morre vítima de suicídio por hora no Brasil, mesmo período no qual outras três tentaram se matar.
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Amor em quatro patas
Repórter | FOTOS Mairla Freitas DESIGN Jeane Chaves
Há 13 anos dona Estela dedica seus dias, carinhos e cuidados aos 400 felinos que vivem em seu abrigo. Um trabalho voluntário voltado especialmente para os animais em situação de rua
e
a
Tudo começou com pequenas porções de comida doadas no vai e vem da praça perto de sua casa. Maria Estela sempre os mimava ao voltar do trabalho. No início eram poucos, três ou quatro, mas foram aumentando com o passar do tempo. A necessidade da mudança do ponto de encontro passou a ser inevitável e ela começou a encontrá-los no terreno baldio próximo a sua casa. Ao longo do tempo, as pessoas começaram a largar, no local, filhotes de gatos, animais doentes ou no fim da vida. Sempre que voltava para alimentá-los, notava que havia mais felinos do que no dia anterior. Diante da situação, dona Estela prometeu para si mesma que, quando a aposentadoria chegasse, viveria para os gatos. A família não apoiava a iniciativa e duvidada que ela levasse a ideia adiante. No entanto, aos 48 anos de idade, Maria Estela Moreira de Souza se aposentou e com um espaço temporário cedido pela Prefeitura, instalou o “Abrigo da Estela”. Na rua estreita de terra batida em meio à Regional VI de Fortaleza, ela agora tem um espaço para cuidar de gatos abandonados, mantido por “vaquinhas” (arrecadação entre amigos e desconhecidos), doações e pela força de vontade dela própria, hoje com 61 anos. Ela conta que, vez por outra, alguém vai adotar um bichinho, mas, infelizmente, o abandono é mais frequente do que as adoções. Relembra que já chegou a receber 20 pessoas em um só dia buscando abrigo para um felino. No entanto, pede a compreensão de todos, pois o espaço está superlotado e não há condições de aceitar mais animais, por enquanto. O cuidado e a manutenção do abrigo são feitos exclusivamente de forma voluntária. A alimentação chega por meio
de doações: são necessários, em média, 15 quilos de ração por dia, contabilizando 450 kg por mês de comida para os felinos. A vacinação dos bichanos é feita durante visitas do Centro de Zoonoses (CCZ) ao local.
Apesar do cansaço, quando olho na carinha de cada um deles, nessa troca diária de carinho, a única coisa que penso é em seguir em frente e continuar lutando por eles todos os dias Maria Estela Quando questionada sobre o cuidado veterinário, necessário à saúde dos animais, dona Estela confessa que alguns veterinários já visitaram o abrigo, mas quando se deparam com a grande quantidade de animais não retornam. Ela diz que entende, porque cuidar dos felinos é uma decisão dela. Foi uma questão de renúncia, de deixar sua vida de lado e viver só para cuidar deles. Por isso, diz que não pode julgar quem não faz o mesmo. Quando um deles fica doente e não consegue ajuda veterinária voluntária, tira do próprio bolso para custear os remédios para tratamento dos bichanos. A mulher que está há 13 anos cuidando e lutando pela vida dos felinos que mantém em seu abrigo, reconhece viver e se sentir melhor depois que fundou a instituição. Confessa que, quando está com eles, não pensa em velhice, doença, morte... Se sente completa. Hoje, vivem aproximadamente 400 gatos e 15 cachorros que estão lá tem-
porariamente até que sejam adotados. Indagada se pensa em desistir, dona Estela olha em volta para todos aqueles gatinhos que foram se aproximando e responde: “apesar do cansaço, quando olho na carinha de cada um deles, nessa troca diária de carinho, a única coisa que penso é em seguir em frente e continuar lutando por eles todos os dias.”
Abandono e descaso
Não existem dados oficiais, mas a última estimativa divulgada pelo Centro de Zoonoses, em parceria com a Secretaria Municipal de Urbanismo e Meio Ambiente (SEUMA), em 2015, contabilizava 30 mil animais abandonados em Fortaleza. Desses, 23 mil eram cachorros e sete mil gatos. Denúncias de abandono e maus tratos a animais devem ser feitas por meio de ligação para o número 190 ou pelo contato com uma Organização Não Governamental (ONG) de proteção aos animais. Abandono de animais é crime desde sete de dezembro de 1940, com base no decreto de lei número 2.848/40, artigo 164, que diz: “Introduzir ou deixar animais em propriedade alheia, sem consentimento de quem de direito, desde que o fato resulte prejuízo: Pena – detenção, de quinze dias a seis meses, ou multa.”
SAIBA MAIS Para contribuir https://www.vakinha.com.br/ vaquinha/ajuda-ao-abrigo-daestela Ou entre em contato com dona Estela e agende uma visita: 85 98707 5489
O empoderamento da mulher e da comunidade LGBT vem despertando a reflexão no litoral de Icapuí. Os voluntários do projeto interlocuções buscam legitimar os saberes da comunidade RepORtAGeM | FOTOSJoão Ricart DESIGN Marcela Benevides
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“Nas ondas da praia, nas ondas do mar. Quero ser feliz. Quero me afogar. Nas ondas da praia, quem vem me beijar? Quero a estrela-d’alva, rainha do mar. Quero ser feliz nas ondas do mar. Quero esquecer tudo, quero descansar”. Manuel Bandeira, em seu poema “A cantiga”, retratou, ainda em 1936, o que o mar representa até hoje para muitos de nós: descanso, sossego e paz de espírito. Porém, o mar, para um grupo de pesquisadores em Psicologia comunitária, representa também trabalho e um grande desafio! Para entender melhor, vamos percorrer um pouco mais de 200 km saindo de Fortaleza, sentido litoral leste do Ceará, pela CE-040, até chegar à pequena cidade de Icapuí. O mar calmo, com paisagens que misturam dunas e falésias, é campo de pesquisa e ações do Projeto Interlocuções, que agrega alunos e profissionais da psicologia. Eles pesquisam e realizam intervenções nas comunidades praianas, com a temática “Corpos, Gêneros e Sexualidades”.
O Projeto Interlocuções, criado em fevereiro de 2015, utiliza-se da Psicologia Comunitária, com estudos feministas e de gênero. Busca entender as vivências de mulheres marisqueiras, que vivem da caça de mariscos no mangue, além de envolver pessoas gays e lésbicas que moram nas comunidades praianas de Icapuí, desenvolvendo trabalhos de discussões e reflexões acerca dos corpos, gêneros e sexualidades no contexto de cada uma delas. O objetivo principal do grupo é a promoção de estudos e intervenções que repensem criticamente a necessidade de desnaturalização dos conceitos já impostos pela sociedade, construídos ao longo da história da humanidade. Para o Interlocuções, esses paradigmas resultam em ações que excluem ou moldam os processos naturais de formação do sujeito na atualidade. O grupo realiza suas intervenções em localidades ou com pessoas em situação de vulnerabilidade e exclusão psicossocial, além de participar
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de uma rede de apoio comunitário, que nidades corroborou com o que ele já peninclui projetos e organizações em defesa sava sobre as questões de gênero e sexuada vida e da promoção da cidadania. lidade. Porém, ao colocar os pés na areia Entre os 12 voluntários atuantes está da praia, percorrendo pequenos vilareFrederico Rafael de Sousa, 22 anos, re- jos, em meio a uma sensação climática cém-formado em Psicologia, que deci- de quase 40 graus, conseguiu o que desediu inserir-se no grupo quando ainda java: “Trabalhar com gente de verdade”. estava na Universidade. Sua ação comuPara o jovem psicólogo, deixar os linitária deu-se com mulheres catadoras vros de lado e aplicar suas técnicas em situações reais, o fez perceber que o code mariscos que residem na comunidade de Requenguela, em Icapuí. O psicólogo nhecimento acadêmico, tão valorizado ressalta que o grupo sempre teve a pre- em grandes instituições, não teria tanto ocupação de, junto com as moradoras, valor se não chegasse às pessoas que refletir acerca dos conceitos de gênero mais precisam. e sexualidades alicerçados na sociedade As ações do grupo são diversas e se ligam de alguma forma. A linha de e no contexto comunitário. E que tenta ter consciência de como os papéis so- ação “Corpo, gênero e sexualidades no ciais são distribuídos e como são incor- contexto da intervenção comunitária” porados no cotidiano. busca compreender como as questões de gênero e as sexualidades orientam Atualmente, o foco das ações de Frederico nas comunidades é para jo- a maneira de agir das pessoas dentro vens gays e lésbicas, em grupos de dis- das comunidades. Já a linha de ação cussões, refletindo junto com os par- “Feminismos e interseccionalidade nos estudos de gênero e sexualidades” reticipantes esses conceitos sociais e percebendo como eles estão reagindo. pensa as desigualdades na produção dos Para Frederico, estar imerso nas comu- sujeitos, e busca resgatar os direitos hu-
manos e a cidadania. A terceira linha de ação: “Expressão da subjetividade nos processos de exclusão psicossocial e trabalho” realiza estudos e intervenções para entender os processos de exclusão psicossocial. Entre as diversas atividades, Frederico destaca o trabalho com as marisqueiras, o primeiro em campo realizado pelo grupo. Ele lembra com carinho das visitas domiciliares e das entrevistas. Nas intervenções junto às marisqueiras, percebeu-se que, ainda que embora elas tenham renda salarial superior aos maridos, pescadores, a percepção de um homem provedor e “dono do lar”, sustenta a relação patriarcal de obediência e submissão. Mesmo reconhecendo as realidades apresentadas, Frederico ressalta que o grupo não modifica a comunidade e que cabe a esta ter a capacidade
Esta palavra “junto” possui um grande significado, tendo em vista que não podemos direcionar o processo. Tentamos legitimar os saberes das pessoas, não direcioná-las ao nosso. Frederico Rafael de Sousa em modificar-se. O papel do grupo é de facilitar esta mudança. Ele diz , ainda, que “nós, enquanto profissionais, temos o papel de facilitar este processo junto à população. Esta palavra “junto” possui um grande significado, tendo em vista que não podemos direcionar o processo. Tentamos legitimar os saberes das pessoas, não direcioná-las ao nosso.” Frederico diz que a ida a campo, junto com as comunidades, o fez agregar o saber acadêmico com o popular. Para ele, o crescimento profissional dentro do projeto é indescritível, o que o fez che-
gar à conclusão de que o trabalho deve ser uma ocupação modificadora. E, por isso, que deve ser semeada a ideia de que o retorno não necessariamente tenha que ser financeiro. Ainda de acordo com Frederico, projetos como este geram conscientização e combatem os diversos tipos de violência. Ele ressalta também que, na atual conjuntura política, a conquista de direitos ganhou um grande peso para as minorias, fazendo-se necessário dar voz aos diversos grupos sociais e legitimar suas vivências. O psicólogo acredita que iniciativas como esta multiplicam processos transformadores que já existem dentro de cada um. Muitas vezes as pessoas não têm consciência, ou estão tão inseridas dentro da cultura heteronormativa, que acabam reproduzindo várias formas de opressão.
Pessoas comuns doam um pouco do tempo e dinheiro do próprio bolso em trabalho voluntário que tenta saciar a fome dos moradores de rua na Praça do Ferreira RepóRteR Paulo Mesquita FOtOS Acervo Pessoal Facebook DeSIGN Jonathan Silva
Segundo o Dicionário Aurélio, a bondade é classificada como sendo um substantivo feminino e significa qualidade ou caráter de bom, benevolência, indulgência, benignidade, boa ação, brandura, doçura etc. Várias dessas palavras podem caracterizar o trabalho voluntário realizado por Maria do Carmo Ribeiro Sena, 42, mãe de um casal de filhos e, como ela mesma afirma, “manicure com orgulho”.
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Há cinco anos ela e mais um grupo de 20 adultos de vários bairros realizam a distribuição de lanches para os moradores da Praça do Ferreira, localizada no Centro de Fortaleza. Quem passa pelo local durante o dia geralmente encontra pessoas dormindo nos bancos da praça, mas é à noite que o número aumenta. Nesse momento, o grupo de Maria começa a distribuição de lanches. No início, eles levavam sucos, refrige-
rantes e 100 cachorros quentes, mas hoje o número já chega a 800 sanduíches distribuídos entre 22 horas de sábado e 3 horas da madrugada de domingo. O dinheiro para a compra dos alimentos não é arrecadado em doações. “No passado já recebemos recusas, principalmente quando nós falamos que o dinheiro é para comprar comida para moradores de rua. Existe muito preconceito”, comenta Maria. Desse modo, sem contar com doa-
ções ou ajuda de empresa ou governo, os próprios voluntários contribuem. Maria, por exemplo, doa R$ 50,00. Mas, quando o valor arrecadado não chega ao necessário para a compra dos alimentos e bebidas, o evento precisa ser adiado. “Ficamos muito tristes quando não conseguimos, mas não vamos desistir”, fala Maria. O trabalho voluntário começou por meio do convite de um amigo, mas Maria admite que no início não foi nada fácil. “Nos primeiros 30 dias chorei muito. Em casa, quando ia, por exemplo, tomar um simples copo d’água ou comer algo, ficava lembrando as mulheres, as crianças e os idosos vivendo nas ruas e catando alimentos de dentro das latas de lixo ou bebendo a água do relógio que fica no centro da praça. Eles estão jogados à própria sorte. Não é fácil”, comenta.
Engana-se quem acha que o morador de rua, incluindo o viciado em álcool ou outro tipo de droga, é um sujeito mal educado. Ao contrário, tratam-nos muito bem e com muita educação Maria Sena A distribuição dos lanches não é algo tão simples e que possa ocorrer a qualquer momento e lugar. É preciso conseguir a confiança do morador de rua e esse processo pode levar muito tempo. Quando chega um voluntário novato, por exemplo, ele é apresentado aos moradores e gradativamente começa a participar das distribuições dos lanches. Desse modo, começa a surgir uma relação de confiança e respeito. Quem passa pela Praça do Ferreira pode achar confusa e desordenada aquela aglomeração de pessoas vivendo nos bancos e no entorno da praça, mas não é bem
100
é o número de sanduíches entregues aos moradores de rua no início da ação voluntária na Praça do Ferreira
800
sanduíches são distribuídos atualmente entre 22 horas de sábado e 3 horas da madrugada de domingo
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voluntários preparam os lanches, recolhem, ajudam e também contribuem para que o alimento possa ser entregue assim. Ali existe uma divisão de território, organizada da seguinte forma: quem tem filho fica em um canto, usuários de drogas em outro, homossexuais em outro e assim por diante. Durante o dia pode até haver interação, mas à noite, na hora de dormir, ninguém pode entrar no território do outro e, caso isso aconteça, o clima pode ficar muito tenso. “Infelizmente já presenciamos algumas discussões bem acaloradas entre os moradores. Ficamos tensos, alguns nervosos e em nossos corações pedimos para aquilo acabar logo e, principalmente, sem nenhum ferido”, comenta Maria. Sobre os usuários de drogas a voluntária destaca que nunca teve problemas. Quando eles observam a chegada do grupo de voluntários, param de usar a droga - a mais comum é a cola - e sempre são respeitosos. “Engana-se quem acha que o morador de rua, incluindo o viciado em álcool ou outro tipo de droga, é um sujeito mal educado. Ao contrário, tratam-nos muito bem e com muita educação”, observa Maria.
Nesse período de trabalho voluntário, Maria já ouviu muitas histórias de pessoas que, por exemplo, têm família, casa, mas que devido a desentendimentos, mágoas, vícios ou até mesmo agressões dos próprios filhos, preferiram “adotar” as ruas como o seu novo lar. “Cada um tem uma história. Às vezes, o alimento que oferecemos é algo que fica em segundo plano. O que eles querem é ser ouvidos e ouvidas e, principalmente, querem o respeito que não encontram em seus lares”, finaliza Maria Sena, manicure com muito orgulho.
SERVIÇO As ações acontecem nos sábados, às 22 horas, na Parça do Ferreira. Perfil no Facebook: facebook.com/anjosda. madrugada.16
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Palavras que pulsam RepóRteR | FOtOS Pedro Brito DeSIGN Lisandra Sousa ILUStRAÇÕeS Noun Project
Jovens de Fortaleza usam a força da arte para superar os desafios impostos pela carência de serviços públicos de qualidade, e promovem a cultura de paz no combate à violência
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Contribuir para transformar a realidade social marcada pela violência e o preconceito, estimulando o pensamento crítico da juventude que reside no entorno dos Campi do Itaperi e do bairro de Fátima, da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Este é o objetivo que norteia o projeto Viva a Palavra. Sob a coordenação da professora Claudiana Nogueira Alencar, do Departamento de Letras da UECE, os voluntários desenvolvem atividades como cirandas de leitura, saraus literários, contação de história, oficinas de produção de poesia e fóruns de diálogos entre movimentos sociais. O público-alvo do projeto é formado por adolescentes e jovens de 13 a 29 anos. Para este primeiro semestre de 2017 três oficinas estão sendo desenvolvidas (círculos de leitura, flauta e percussão), cada uma atendendo a 24 pessoas. Para o segundo semestre a previsão é ampliar para 15 oficinas. São visões de mundo talhadas a cada encontro, preconceitos que se dissolvem e cedem lugar à construção coletiva de jovens cientes das dificuldades existentes, mas fortalecidos por lições de cidadania e cultura.
As diversas práticas de letramento contribuem para conscientização crítica e resistência da juventude, promovendo a cultura de paz e valorização da vida. É pela educação que se enfrenta a violência, que se promove a inclusão social e ampliam-se direitos. “O programa Viva a Palavra pretende mostrar a importância da linguagem para a inclusão social, a necessidade do domínio de recursos linguísticos para a conquista da cidadania e da emancipação da juventude”, ressalta Claudiana. O documento Mapa da Violência 2016 aponta que o Brasil atingiu a marca de 59.627 mil homicídios em 2014, uma taxa de 29,1 mortes por 100 mil habitantes. As estatísticas recortadas para a população de jovens entre 15 a 29 anos mostram que cerca de 61 sofreram homicídio para cada 100 mil. Dentro desse cenário, a juventude negra é a maior vítima. Dos homicídios que ocorrem por ano no Brasil, mais da metade são entre os jovens e 77% destas vítimas são negros. “Sabemos que a conquista da palavra não é tudo. Outros aspectos, como a infraestrutura econômica-social e a distribuição das riquezas devem ser consi-
derados no enfrentamento da violência contra a juventude”, lembra a coordenadora do projeto.
O programa Viva a Palavra pretende mostrar a importância da linguagem para a inclusão social, a necessidade do domínio de recursos lingüísticos para a conquista da cidadania e da emancipação da juventude Claudiana Nogueira
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Cartografias de uma cidade invisível A UECE é cercada por territórios com demandas urgentes, que apresentam índices de alta vulnerabilidade e exclusão social. A Serrinha, bairro onde fica o seu maior campus e a sede administrativa da instituição na capital, tem uma geografia cercada por lagoas e várias ocupações irregulares. Comunidade dos Buracos, Itaperi, Vila Rica, Rampa, Santa Tereza, Parque Dois Irmãos, Cruzeiro e Garibaldi formam a diversidade de comunidades (algumas consideradas áreas de risco), que tecem o bairro. Segundo o último Censo de 2010 a população da região era formada por 28.770 mil habitantes, metade com idade máxima de até 30 anos. O Grande Lagamar, uma das Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis), que compõe o entorno do Campus de Fátima, é constituído por favelas e ocupações sujeitas a enchentes, sobretudo na estação chuvosa, quando o canal do Lagamar
transborda e atinge as casas próximas. Um dos grandes desafios do projeto Viva a Palavra é utilizar essas possibilidades artístico-culturais para estimular nos jovens uma postura de enfrentamento das dificuldades. É o poder da linguagem na resolução dos conflitos.
Melodias e rimas
A estudante Beatriz Pires, 16, mora no Itaperi e participa da oficina de flauta do projeto. Autodidata, foi por meio das aulas ministradas pelos voluntários que aprendeu a ler partituras. “Já pensei em fazer faculdade de música, mas meu foco mesmo é a medicina. Deixo a flauta como um hobby”, reforça. Para Diego Martim, conhecido também como MC Dieguim, fundador do coletivo Enquadro Rap, o projeto Viva a Palavra “é uma ótima iniciativa, atraindo jovens de diversos lugares”. Diego lembra que “a favela carece de educação, cultura, lazer e esse programa representa a luta através das pa-
lavras”. Seu estilo preferido de composição e tradução da realidade é calcado em aliterações. Na música Caneta Carrasca, ele crava: “Convido cada crápula conhecer comunidades carentes, crianças castigadas com correntes, carregando carabinas competentes, cortando cocaína conforme comanda cínicos clientes”.
Já pensei em fazer faculdade de música, mas meu foco mesmo é a medicina. Deixo a flauta como um hobby Beatriz Pires
SERVIÇO Projeto – Viva a Palavra Contato – Prof. Claudiana Alencar E-mail/Telefone - claudiana. alencar@uece.br / (85) 99723-2900
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Multiplicando o Acolhida desde a infância pelo Movimento de Saúde Comunitária – MSMJ, Brena Kelly tomou uma decisão que virou sua missão de vida: retribuir o bem que recebeu por meio do trabalho voluntário 34 // MATÉRIA PRIMA 2016.1 2017.1
RepORtAGeM Weider Gabriel FOtOS Brena Kelly DeSIGN Bruno Silva| Weider Gabriel Conhecido como um bairro violento, com altas taxas de criminalidade, o Bom Jardim criou fama como a região onde mais se mata em Fortaleza. Diante deste fato, o Movimento de Saúde Mental Comunitária (MSMC), desenvolve um trabalho terapêutico com adultos, adolescentes e crianças, visando proporcionar auto respostas para as situações-limite experimentadas por eles. A base do trabalho é a Abordagem Sistêmica Comunitária, que busca equilibrar as múltiplas dimensões biopsicossocioespirituais. Na realidade diária do bairro uma história chama a atenção quando o tema é fazer o bem: Brena Kelly, 23, já foi assistida pelo MSMC desde quando tinha 5 anos de idade e hoje atua como voluntária na própria instituição. Órfã de mãe, vivendo nas ruas e passando por diversas dificuldades com os seus quatros irmãos, todos menores de idade, Brena foi acolhida pelo Movimento e se tornou paciente assistida pelo Projeto, onde recebeu a atenção e cuidado que precisava. Ela participou das terapias, oficinas e rodas de conversação e, com a ajuda de profissionais que trabalhavam na ONG, recebeu o tratamento para superar problemas como a falta de comunicação e a socialização. Brena cresceu participando dos projetos do MSMC, onde desenvolveu seus dons e talentos para a arte, música e audiovisual. Aos 18 anos já fazia parte do grupo como voluntária, apresentando as
peças teatrais e contando histórias para as crianças assistidas pela instituição. Foi nessa idade também que Brena atuou em seu primeiro filme, produzido por um grupo que também atua na região e surgiu no MSMC, chamado de “Bom Jardim Produções”. O grupo tem parceria com o Movimento de Saúde Mental Comunitária. Desde então, Brena já soma cinco filmes atuando como atriz, além de peças teatrais. Aos 19 anos, ela ganhou uma bolsa no Instituto Dragão do Mar de Arte para cursar audiovisual, e, estando desempregada, foi novamente acolhida pelo Movimento. Só que desta vez como Jovem Aprendiz, atuando na área da Comunicação, fazendo fotos e vídeos do MSMC. Brena comemora a alegria que é poder contribuir, mesmo com pequenos gestos: “Até hoje eu me orgulho do trabalho que sai, sabe?! Quando você vê um projeto que você contribuiu, sente muito orgulho!” Todos os irmãos de Brena foram assistidos pelo Movimento. Ela reconhece a importância de projetos como o MSMC: “Antes nós não tínhamos oportunidades. Naquela época tínhamos que pagar cursos, mas não tínhamos dinheiro
Todo o dia estou mudando minha concepção de mundo, de problema, de como solucionar ou o que fazer para mudar alguma coisa Brena Kelly
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e na comunidade também não existiam opções ou projetos como o MSMC. Então todos nós fomos ajudados pelo Movimento. Inclusive minha irmã é formada em Matemática graças à ajuda do Movimento.” Além dos irmãos, o avô de Brena participa dos grupos de escuta e o pai também foi ajudado pelo Projeto, por meio do Grupo de Alcoólicos Anônimos. Ele ainda participava do grupo de autoestima, pois sofria de depressão. “Quando decidi ser voluntária, eu queria agradecer. Tanto ser grata como aprender ainda mais, para estar no mundo do Movimento, para saber do que acontece, pra mudar o meu espiritual, meu emocional. Pra melhorar meu eu enquanto pessoa, meu caráter. Queria dizer para as pessoas do bairro que existia um lugar como o Movimento, pois ainda existem pessoas que não conhecem o trabalho que o MSMC desenvolve”, destaca a voluntária. Ela diz também que “todo o dia estou mudando minha concepção de mundo, de problema, de como solucionar ou que fazer para mudar alguma coisa”. E desabafa, observando que se nota uma crescente alta na violência, no uso de drogas, álcool, fazendo parecer ser normal e fazer parte do nosso cotidiano. Para Brena, dificilmente se vê na mídia a prática do bem. Enquanto, isso, um projeto como o MSMC beneficia todo o bairro com
quase 10 projetos que envolvem crianças, jovens e adultos. “Quantos jovens e crianças não deixariam as ruas se mais projetos como esse fossem ampliados? Quantas pessoas poderiam ser resgatadas através desses projetos?”, questiona. Brena disse também que é incrível poder ajudar uma criança a descobrir os seus talentos: “me sinto eficiente, da mesma forma daquelas pessoas que cuidaram de mim quando eu era uma criança e hoje sentem orgulho. Tornei-me uma multiplicadora, querendo aprender mais, estou passando o conhecimento adiante”. O Movimento de Saúde Mental Comunitária significa, para Brena, libertação e conhecimento. E ela justifica, dizendo que mostra para os pacientes que eles têm um valor e que “mesmo que eles não sejam importantes para família ou amigos; para o Movimento eles são importantes”. “Quando decidi ser voluntária, aos 17, meu pai disse que eu era idiota. As pessoas acham que você não ganha nada. Pra mim não é um trabalho, não é um emprego. Eu adoro passar meu tempo aqui. Os jovens precisam aprender que o voluntariado é uma coisa que te ajuda, é um conhecimento que você vai levar para a vida toda. Você aprende o que o dinheiro não pode te dar. Ser voluntário é uma troca de conhecimento, vou levar
pra minha vida toda, aproveito cada momento”, resume ela.
Sobre o MSMC
Em 1996, como parte da caminhada dos missionários combonianos na região do Grande Bom Jardim, o padre Rino Bonvini reuniu um grupo de lideranças locais e iniciou o Movimento Saúde Mental Comunitária do Bom Jardim (MSMC). Inicialmente com grupos de autoestima, de terapia comunitária e, em casos excepcionais, oferecia acompanhamento psiquiátrico. O primeiro passo foi preparar profissionais para o atendimento à comunidade em parceria com a Universidade Federal do Ceará (UFC). O objetivo dos serviços realizados tem sido favorecer nas pessoas o desenvolvimento individual e comunitário, o aumento da consciência de si e da realidade econômica, social, cultural e política que as envolve. É enfatizado o reconhecimento das potencialidades e da dignidade de cada um, induzindo as pessoas a enfrentarem as problemáticas advindas da situação de exclusão em que viviam.
SAIBA MAIS Nome: Movimento de Saúde Mental Comunitária. Endereço: Rua Dr. Fernando Augusto, 609 - Parque Santo Amaro, Fortaleza - CE Telefone: (85) 3497.0892 E-mail da instituição: msmcbj@gmail.com
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Quantos jovens e crianças não estariam na rua se mais projetos como esse fossem ampliados? Quantas pessoas poderiam ser resgatadas através desses projetos? Brena Kelly
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