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A atuação da Comissão Arns durante o autoritarismo
Vivemos avanços, recuos, combate ao retrocesso, pequenas conquistas, mas sempre em direção ao futuro de uma sociedade mais justa. Ou como diria o Cardeal Arns: vamos de esperança em esperança!
Belisário dos Santos Jr.1
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Logo após as eleições de 2018, em sites radicais de direita, apoiadores do presidente eleito publicaram uma lista de 700 pessoas “indesejáveis” no Brasil. Os nomes que ali constavam eram exatamente daqueles que haviam escrito ou falado em favor da democracia, que alertavam contra o retrocesso e que se posicionaram no segundo turno em favor do outro candidato. As manifestações de ódio se sucederam pelas redes sociais. Indícios do que seria o próximo período presidencial.
Ao mesmo tempo, no final de 2018, um grupo de 22 brasileiros, conhecidos por sua trajetória pública na defesa dos Direitos Humanos, reuniu-se para discutir o que fazer para defender o Estado de Direito e evitar o retrocesso em matéria de direitos fundamentais. Nascia a Co-
1 Belisário dos Santos Jr. é membro fundador da Comissão Paulo Evaristo Arns de Direitos Humanos, membro da Comissão Internacional de Juristas, membro da Comissão Justiça e Paz/SP e Secretário de Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo (1995-2000), e coordenador do Programa Estadual de Direitos Humanos em São Paulo (de 1997 a 2000).
missão Arns.2 A Comissão é composta por “especialistas de variadas áreas: juristas, acadêmicos, jornalistas e ativistas sociais de distintas gerações, religiões e linhas de pensamento político”.3 Desde o início, seus membros agiram de forma suprapartidária e em caráter voluntário. O patrono da Comissão é o saudoso Dom Paulo Evaristo, Cardeal Arns (1921-2016), criador do projeto “Brasil: Nunca Mais”, pormenorizado relato das torturas e execuções extrajudiciais ocorridas no Brasil durante a ditadura civil-militar de 1964-1985.
A iniciativa tem a intenção de dar visibilidade a casos de ofensa aos direitos humanos, notadamente os que envolvem morte ou tortura, e denunciar publicamente graves violações ao Poder Judiciário ou a instâncias internacionais, e combater o discurso de ódio de agentes do Estado e as ações dele derivadas. A Comissão Arns age em rede com distintas organizações da sociedade civil para tornar mais efetiva sua missão. Já no primeiro ano de vida, com a OAB, CNBB e ABI, a Comissão Arns lançou a Mesa Nacional de Diálogo contra a Violência. Com o Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADHu) e o Projeto Liberdade representou contra o Presidente da República ao Tribunal Penal Internacional pelo incentivo de genocídio contra povos indígenas. A representação está sendo analisada pela procuradoria do TPI, o que pode resultar em investigação contra o presidente brasileiro.
A Comissão interferiu também na tentativa de extinção da Ouvidoria das Polícias, colaborando com a Defensoria Pública do Rio de Janeiro no caso da chacina do Morro do Fallet; emitiu notas públicas nos casos das mudanças na Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos; na intervenção do governo no Conselho de Direitos Humanos, nos ataques a instituições de pesquisas científicas; articulou com instituições parceiras em ação de reparação ao povo avá-guarani; enviou nota técnica a congressistas sobre pontos sensíveis do pacote anticrime e em defesa do Estatuto do Desarmamento; atuou também contra a violação de direitos dos waimiri atroari,
2 Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns, lançada em 20 de fevereiro de 2019, na Sala dos Estudantes da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. 3 Relatório Anual da Comissão Arns 2019-2020. Disponível em: https://comissaoarns.org/doc/relatorios/Relatorio-2019-2020-PT-BR.pdf.
no projeto de construção da linha de transmissão elétrica entre Boa Vista (RR) e Manaus (AM). A Comissão emitiu Nota Técnica para a Câmara dos Deputados entendendo como inconstitucionais os pontos do Acordo da Base de Alcântara (Brasil-EUA) que resultariam na remoção de povos quilombolas, para instalação de base aérea americana.
No período da pandemia, a Comissão Arns lançou a campanha em defesa da vida e, no dia Mundial da Saúde, em 7 de abril de 2020, o Pacto pela vida e pelo Brasil, com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns (Comissão Arns), a Academia Brasileira de Ciências (ABC), a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), sendo das primeiras entidades a exigir o pagamento da renda emergencial para os mais desfavorecidos e a pregar o cumprimento das normas sanitárias defendidas pela Organização Mundial da Saúde. Nessas ações, deu-se vida ao G64 como resposta a um convite feito pela Comissão, passando esse grupo de organizações a juntar forças para atuar em ações que contrapõem o discurso de ódio e a violência no país, além de estimular campanhas e articulações e mobilizações em defesa da vida e da democracia.
Um dos membros da Comissão Arns foi vítima do dossiê sigiloso contra professores e ativistas não fascistas, editado pelo Ministério da Justiça, que motivou dura reação contra o Governo Federal e representação ao STF. Aliás, o próprio Supremo Tribunal Federal e o Poder Judiciário em geral foram alvo de inúmeras manifestações de solidariedade desta Comissão Arns, por serem instrumentos de resistência contra o autoritarismo e da manutenção da Constituição Federal.
Contra a tortura nas prisões brasileiras
A situação carcerária no Brasil se agravou, e estima-se que há em torno de 700 mil pessoas presas, segundo dados conservadores, com 250 mil presos a mais do que o número de vagas existentes, sendo 32% dessas pes-
4 G6 = Comissâo Arns, OAB, CNBB ABI, SBPC e ABC.
soas encarceradas sem condenação. O estado das prisões é dramático. Em termos sanitários, constitui uma punição à parte.
Esse panorama levou o Supremo Tribunal Federal, em 2015, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347, a proclamar “estado de coisas inconstitucional”, já que foi identificado “presente quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas”. Some-se a pandemia e também a tortura. Estamos no século XXI e a persistência da tortura nos mantém presos à Idade Média. Como explicar isso às próximas gerações?
Temos providências de caráter civilizatório para combater essa situação. O Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) foi criado, não só em atenção às normas constitucionais e internacionais, mas também em obediência à Lei n. 12.847/2013, que instituiu o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, criou o Comitê de Prevenção e Combate à Tortura e o MNPCT. O extenso rol de atividades atribuídas aos peritos integrantes do Mecanismo, por si, aliado à existência de mandato e outras garantias, incluída sua independência, é indissociável do caráter remunerado do exercício dessas funções e da oferta pelo Estado de condições dignas para o exercício desse trabalho intenso.
Importante dizer que a inspiração desse mecanismo, bem como das convenções internacionais contra a tortura, veio no início dos anos 1980, do Comitê Suíço contra a Tortura, da Comissão Internacional de Juristas e do Comitê de Especialistas para Prevenção da Tortura nas Américas (Cepta), este presidido por Dom Paulo Evaristo Arns, com ideia da instituição de um sistema independente de visitas não anunciadas aos centros de detenção, celas policiais ou quaisquer outros lugares onde pudesse estar alguém privado da liberdade.
Quando o bom senso indicaria a necessidade de um incremento das visitas e do controle da tortura no sistema prisional, veio a suspensão dos trabalhos do MNPCT pelo decreto presidencial 9.831/2019, que eliminou a remuneração dos peritos e a diversidade na composição do Conselho que orienta o Mecanismo, além de desestruturar o sistema. A Comissão Arns e o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) representaram
à PGR após a edição desta norma. A PGR ajuizou, de imediato, a ADPF 607 questionando o decreto. O IDDD e a Comissão Arns levaram ao STF Amicus Curiae em 2020, com os argumentos necessários ao reconhecimento da invalidade do Decreto 9.831/2019.
Até então, os peritos do MNPCT já haviam visitado 169 locais de privação da liberdade e emitido 2.077 recomendações. O enfraquecimento do Mecanismo Nacional é preocupante porque este serve à sociedade e é fruto da Convenção Internacional contra a Tortura. A criação deste mecanismo foi uma das recomendações da Comissão Nacional da Verdade (CNV)5 com a proposição de sua expansão por todos os estados brasileiros, com participação social, em reforço à Lei n. 12.847/2013, que ainda aguarda cumprimento. Um retrocesso neste tema dificulta a garantia de direitos fundamentais. A Constituição Federal traz como fundamentos do Estado democrático de direito a cidadania e a dignidade da pessoa humana. Desses princípios estruturantes da ordem jurídica nacional deriva a vedação ao retrocesso social.
Olhando para o passado para planejar o futuro, a Comissão Arns participou das articulações para revogação da Lei de Segurança Nacional, na Câmara e no Senado, norma de triste lembrança da ditadura militar e que voltou ao debate a partir de 2019 com o governo autoritário de Bolsonaro. O resultado foi a revogação da LSN e a alteração do Código Penal para introdução de um novo Título para prever crimes contra o Estado Democrático de Direito. Aguarda-se a sanção presidencial. A Comissão Arns tem atuado na proteção e defesa dos direitos humanos, em conjunto com outras organizações da sociedade. Vivemos avanços, recuos, combate ao retrocesso, pequenas conquistas, mas sempre em direção ao futuro de uma sociedade mais justa. Ou como diria o Cardeal Arns: vamos de esperança em esperança!
5 A CNV dedicou outras recomendações especificamente ao sistema penitenciário: n. 12) dignificação do sistema prisional e do tratamento dado ao preso; n. 13) instituição legal de ouvidorias externas no sistema penitenciário e órgãos a ele relacionados; n. 14) fortalecimento de Conselhos da Comunidade para acompanhamento dos estabelecimentos penais.