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A política do Estado para a juventude negra no Brasil: vida ou morte?

Diferentes políticas afirmativas inseriram um número considerável de jovens negros nas universidades, o que constitui um passo decisivo na criação de uma cultura de empoderamento e representatividade. Entretanto, não impediram a morte e o aprisionamento de uma parcela significativa deste grupo.

Mônica Dias Martins e Glauber Robson Oliveira Lima1

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Introdução

A expressão “entre a vida e a morte” explicita a duplicidade de ação do Estado, que pode fazer uso de sua soberania de diferentes formas: fomentando a necropolítica por meio de iniciativas e omissões que levam ao extermínio ou encarceramento em massa da juventude negra e periférica; ou estimulando políticas públicas que buscam reduzir os danos causados pela desigualdade racial, tal como o acesso à educação superior.

O motor dos fenômenos que tolhem o direito à liberdade e à vida, parâmetros fundamentais na construção de um campo de lutas, é o ra-

1 Mônica Dias Martins é professora da Universidade Estadual do Ceará. Coordenadora do grupo de pesquisa Observatório das Nacionalidades e Editora da revista Tensões Mundiais. Glauber Robson de Oliveira Lima é membro do Comitê Diretor do Conselho Latino-americano de Ciências

Sociais – Clacso. Mestre em Planejamento e Políticas Públicas e doutorando em Políticas Públicas na Universidade Estadual do Ceará. Bolsista da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento

Científico e Tecnológico (Funcap-CE).

cismo estrutural. Na sociedade brasileira, o racismo se manifesta de diferentes modos e é um dos fatores histórico-estruturais determinantes para as persistentes desigualdades que fazem do país um dos campeões no ranking mundial de concentração de riquezas.2 Residindo em áreas periféricas, as famílias de trabalhadores, desempregados e imigrantes conhecem o Estado, principalmente, pelo seu braço coercitivo. O braço do consenso, que forneceria os serviços básicos de infraestrutura, saúde e educação, não chega a este contingente populacional, ao menos substancialmente. As políticas públicas de promoção da igualdade racial são recentes e parcas, enquanto as repressivas remontam ao passado escravagista e têm amplo alcance, constituindo fato corriqueiro o uso da força física e simbólica como meio de intimidação e extermínio de negros e pardos.3

Apontar as relações entre o racismo estrutural e a persistente desigualdade social é o primeiro passo para compreender o aparente paradoxo do Estado capitalista, que usa sua soberania para decidir quem pode viver e quem deve morrer. Concluímos este breve texto refletindo sobre a esperança na construção de uma sociedade menos injusta.4

Políticas de vida

A educação é uma das principais reivindicações dos grupos subalternizados do país. O movimento negro brasileiro é um dos principais atores no processo de luta pela redução do alto número de analfabetos e pelo aumento de negros em escolas e instituições de ensino superior, que impacta na inserção dessa população no mundo do trabalho. Nos anos 1970, a raça

2 Organização das Nações Unidas. Relatório de desenvolvimento humano do PNUD destaca altos índices de desigualdade no Brasil. Disponível em: https://nacoesunidas.org/relatorio-de-desenvolvimento-humano-do-pnud-destaca-altos-indices-de-desigualdade-no-brasil/. Acesso em: 3 abr. 2020. 3 IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Atlas da violência 2019. Brasília: Rio de Janeiro; São Paulo: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2019. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/190605_atlas_da_violencia_2019.pdf. Acesso em: 20 abr. 2020. 4 MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: Edições N-1, 2018.

passa a ser elemento de mobilização valioso e de mediação das reivindicações políticas educacionais.5

A construção de políticas de caráter compensatório “ressignifica e politiza afirmativamente a ideia de raça, entendendo-a como potência de emancipação e não como uma regulação conservadora”.6 Dessa forma, opera na construção de identidades étnico-raciais. A politização da raça e sua ressignificação pelo movimento negro revelam a expressiva presença do povo negro na história do Brasil e sua contribuição efetiva para a inclusão na Constituição de 1988 de elementos de igualdade formal e material. A diferenciação entre indivíduos para reduzir desigualdades culminaram nas políticas afirmativas que denominamos de “políticas de vida”, por oportunizar chances de reconhecimento social a este grupo.

A implementação destas políticas possibilitou que, de 2003 a 2018, houvesse uma expansão do sistema de educação superior pública, um processo liderado pelas universidades federais. O que assistimos foi uma redução da discrepância entre brancos e negros no acesso à educação superior, em especial pela política de cotas aliada à expansão da rede de Instituições de Educação Superior (IES) federais, através do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Univesidades Federais (Reuni). O crescimento da presença de negros e pardos nas universidades é bastante expressivo, dado o histórico de exclusão desses grupos em espaços de prestígio social e poder, como as universidades públicas.

No intervalo de 15 anos, a quantidade de pardos aumentou 3,8 vezes, enquanto, na categoria de pretos, o crescimento foi de 4,8 vezes. O acesso à educação superior impacta em outros setores da vida destes indivíduos, em especial o econômico, tendo em vista que “o Brasil é um país em que a escolaridade implica altos retornos salariais, em comparação a outros países do mundo”.7 O acesso a bens econômicos e culturais contribui para a

5 GOMES, Nilma Lino. Movimento negro e educação: ressignificando e politizando a raça. Educação e Sociedade, Campinas, v. 33, n. 120, p. 727-744, jul.-set. 2012. Disponível em http://www. cedes.unicamp.br. Acesso em: 6 mai. 2020. 6 Ibid. 7 IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio – PNAD, 2019.Brasília: IBGE, 2019, p. 8. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/es-

redução das desigualdades entre os rendimentos do trabalho das pessoas ocupadas, brancas e negras.

Políticas de morte

No Brasil, o elevado índice de assassinatos de jovens e o encarceramento em massa são os principais indicadores da existência de uma necropolítica. Este fenômeno gera fortes implicações, inclusive sobre o desenvolvimento econômico e social. Conforme o Ipea: “a falta de oportunidades, que levava 23% dos jovens no país a não estarem estudando nem trabalhando em 2017, aliada à mortalidade precoce da juventude em consequência da violência, impõem severas consequências sobre o futuro da nação”.8

É gritante a diferença entre jovens negros e brancos no que diz respeito à morte violenta. A dupla falta de chances para a juventude negra impacta não apenas nos indivíduos e seus grupos familiares, mas ocasiona graves prejuízos econômicos ao exterminar ou encarcerar uma parte significativa da força produtiva que poderia contribuir com o desenvolvimento do país.

O Atlas da Violência 2019 verifica “a continuidade do processo de aprofundamento da desigualdade racial nos indicadores de violência letal no Brasil, já apontado em outras edições”.9 Os jovens negros são os que mais sofrem com a violência policial: em 2018, de cada 100 assassinatos, 11 foram provocadas pela polícia e destes, 77,9% eram jovens, dentre os quais 74,5%, negros. Eles são também as principais vítimas de óbitos causados por homicídios.

A violência letal dizimou, no ano de 2017, 35.783 jovens no Brasil, um fenômeno que cresce de forma ininterrupta desde a década de 1980. Isso equivale a um jovem morto violentamente a cada 15 minutos. Destes, 75,5% foram indivíduos negros, a taxa de homicídios por 100 mil negros “foi de 43,1, ao passo que a taxa de não negros (brancos, amarelos e indígenas) foi de 16,0. Ou seja, proporcionalmente às respectivas populações,

tatisticas/sociais/populacao/9171-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios-continua-mensal. html?=&t=o-que-e. Acesso em: 27 fev. 2020. 8 Ipea, op. cit., p. 6. 9 Ibid, p. 49.

para cada indivíduo não negro que sofreu homicídio em 2017, aproximadamente, 2,7 negros foram mortos”.10

Quando não vitimada pelo extermínio, a juventude sofre pelo encarceramento em massa. Este grupo compõe o maior número de indivíduos privados de liberdade, 54,06%. O encarceramento massivo atinge, sobretudo, jovens negros e pobres, que vivem em situação de vulnerabilidade nos grandes centros urbanos. Aplicando este recorte, os negros representam 63,6% dos que cumprem pena. Enfim, a violência policial e a política de encarceramento são amplamente utilizadas como resposta para os efeitos das desigualdades sociais e raciais.11

Podemos ter esperança?

Há sim espaço para uma esperança, desde que sejamos realistas. O combate aos efeitos do racismo requer uma imbricação entre consciência dos seus efeitos e altivez para ampliar a democratização dos espaços de conhecimento. Os avanços resultantes das políticas afirmativas das últimas décadas nos estimulam a continuar lutando pela vida. Em tempos sombrios, como os de hoje, combater as clivagens é ainda mais importante. Enquanto vidas são ceifadas pela necropolítica de um governo genocida, ativistas de direitos humanos devem levantar suas vozes contra as injustiças que se apresentam sob novas formas.

A ocupação por pessoas negras de lugares de elaboração e propagação de conhecimentos, como as universidades, constitui um passo decisivo nessa empreitada, criando uma cultura de empoderamento e representatividade. Precisamos ter em mente que diferentes políticas afirmativas inseriram um número considerável de jovens negros nesse espaço, mas não impediram a morte e o aprisionamento de uma parcela significativa deste grupo. Tal paradoxo demonstra que essas políticas possuem um relevante papel no combate às desigualdades, mas não podem ser tomadas como medida

10 Ipea, op. cit., p. 49. 11 Carvalho, Salo. O encarceramento seletivo da juventude negra brasileira: a decisiva contribuição do poder judiciário Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, n. 67, p. 623 - 652, jul./dez. 2015; DEPEN – Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. Brasília: Ministério da Justiça, 2019.

central, como observou Michelle Alexander.12 Há muito a ser feito e é no coletivo, ampliando as conquistas democráticas, incluindo cada vez mais os subalternizados, que podemos esperançar um país melhor nas próximas décadas.

Referências

ALEXANDER, Michelle. A nova segregação: racismo e encarceramento em massa. São Paulo: Boitempo, 2017. CARVALHO, Salo. O encarceramento seletivo da juventude negra brasileira: a decisiva contribuição do poder judiciário Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, n. 67, p. 623 - 652, jul./dez. 2015. DEPEN – Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. Brasília: Ministério da Justiça, 2019. GOMES, Nilma Lino. Movimento negro e educação: ressignificando e politizando a raça. Educação e Sociedade, Campinas, v. 33, n. 120, p. 727-744, jul.-set. 2012. Disponível em http://www. cedes.unicamp.br. Acesso em: 6 mai. 2020. IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio – PNAD, 2019. Brasília: IBGE, 2019. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/9171-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios-continua-mensal. html?=&t=o-que-e. Acesso em: 27 fev. 2020. IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Atlas da violência 2019. Brasília: Rio de Janeiro; São Paulo: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2019. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/190605_atlas_da_violencia_2019.pdf. Acesso em: 20 abr. 2020. MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: Edições N-1, 2018. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatório de desenvolvimento humano do PNUD destaca altos índices de desigualdade no Brasil. Disponível em: https://nacoesunidas.org/relatorio-de-desenvolvimento-humano-do-pnud-destaca-altos-indices-de-desigualdade-no-brasil/. Acesso em: 3 abr. 2020.

12 Alexander, Michelle. A nova segregação: racismo e encarceramento em massa. São Paulo: Boitempo, 2017.

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