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A cultura agoniza, mas não morre
AmarElo é também nome da música título do último CD de Emicida, na qual resgata os versos de uma canção de Belchior que virou um mantra para todos os artistas, especialmente os negros, periféricos, LGBTQIA+ e todo o povo que vem sofrendo desde o golpe de 2016: “ano passado eu morri, mas este ano eu não morro”.
Antônio Eleilson Leite1
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A chegada de Mário Frias na Secretaria Especial da Cultura,2 em junho de 2020, pôs fim à instabilidade política na pasta, uma vez que nos 17 primeiros meses do governo tivemos quatro secretários. A razão da permanência de Frias se deve a sua total subserviência aos ditames do presidente. Pragmático, ele não quis implementar um plano de governo como o sociólogo Henrique Pires almejou no início da gestão, em 2019, nem se apoiou numa visão fundamentalista (e inspiração nazista) do dramaturgo Roberto Alvim. Tampouco quis montar uma equipe própria como sua antecessora, a atriz Regina Duarte. Frias vestiu o figurino bolsonarista e adotou uma postura de miliciano, chegando a despachar com um revólver na cintura. A política que temos na Cultura é de intimidação, perseguição e censura, o
1 Antonio Eleilson Leite é historiador, programador e produtor cultural. Coordena a área de cultura da ONG Ação Educativa. Tem graduação em História e mestrado em Estudos Culturais, ambos pela Universidade de São Paulo (USP). 2 A Secretaria Nacional de Cultura manteve-se também no Ministério do Turismo, dado importante a se considerar, uma vez que em 2019 o órgão estava vinculado ao Ministério da Cidadania.
que levou o secretário a ser alvo de denúncia por assédio moral na Comissão de Ética Pública da Câmara dos Deputados.3
Sob o comando de Frias, a Secretaria de Cultura teve um aumento do número de militares no comando das instituições e secretarias do órgão. Assumiram cargos nomes como Fernando Rabello, capitão da Marinha, na diretoria executiva da Casa de Rui Barbosa; Lamartine Holanda, coronel da reserva, como diretor da Funarte; Eduardo Zorats, oficial da Aeronáutica, especializado em controle aéreo, como titular do Departamento de Diversidade Cultural, e o ex-capitão da Polícia Militar da Bahia, André Porciúncula, como secretário de fomento e incentivo, responsável pela Lei de Incentivo à Cultura.4 Tais indicações vieram direto da Casa Civil, por meio do então ministro Braga Neto (depois transferido para o Ministério da Defesa). Frias, além de não se opor, comemorou nas redes sociais as nomeações que lhe foram impostas.
Destaco, neste artigo, a atuação de André Porciúncula. Sob o comando deste militar, a Lei Rouanet, tão combatida pelos bolsonaristas, virou um instrumento para promoção de uma cultura de viés conservador, religioso e “patriótico” e, ao mesmo tempo, de combate a toda expressão artística tida por ele como de “esquerda”. Porciúncula praticamente é quem decide o que pode e o que não pode ser beneficiado pelo incentivo cultural, uma vez que esvaziou a Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC). Além de controlar as autorizações, ele tem estimulado produtores culturais alinhados à ideologia do governo federal a apresentarem projetos.
Um dos exemplos dessa política persecutória que mais chamou a atenção foi a reprovação do Festival Capão de Jazz, da Bahia, em virtude não de questões do projeto, mas devido à militância antifascista dos organizadores do evento manifestada nas redes sociais. O ato de censura ocorrido em julho teve ampla repercussão na mídia e causou enorme indignação no setor cultural. Mas Porciúncula não recuou. Coube ao escritor Paulo Coelho, por meio de sua Fundação, patrocinar diretamente o evento, cuja produção custava
3 Ação protocolada pelo deputado federal Ivan Valente (Partido Socialismo e Liberdade, PSOL/SP). 4 A relação das indicações pode ser lida na íntegra em Medeiros, Jotabê. “A cultura vai à guerra”,
Revista Carta Capital, 7/10/2020.
R$ 140.000. Outro caso de repercussão foi o projeto de uma exposição, denominada Morte e vida, reprovada na fase inicial de avaliação. Apresentado pela Produtora Caboclas, a iniciativa era dedicada à obra do artista plástico Airys Kury, que é portador de HIV, fato abordado na obra. Depois de meses pedindo explicações para o veto, a produtora recebeu o argumento de que se tratava, na visão dos avaliadores, de uma “pesquisa médica sobre HIV”.5
Tamanha disposição de barrar projetos indesejáveis causou uma paralisia do mecenato federal. Mesmo nos dois primeiros anos da atual gestão, manteve-se um patamar próximo a R$ 1,5 bilhão de recursos liberados pela Lei Rouanet. Mas, em 2021, a expectativa é de que não se alcance nem a metade disso, uma vez que, até junho, apenas R$ 140 milhões foram liberados (menos de 10%). Segundo a Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados, há 400 projetos que captaram recursos no primeiro semestre que somam R$ 700 milhões, mas o governo não libera o acesso ao dinheiro. Um dos projetos represados pela secretaria da Cultura é o Plano Anual6 do Instituto Vladimir Herzog, que aguarda há meses sua homologação, em nítido gesto de má vontade. Tal atitude, porém, é seletiva, pois o Grupo Riachuelo, do empresário bolsonarista Flavio Rocha, teve aprovados R$ 12 milhões para o Plano Anual de manutenção do seu teatro e já teve um quarto do recurso captado pela própria empresa, tornando-a uma das principais patrocinadoras em 2021. O mesmo fez o Banco John Deere, ligado à multinacional fabricante de maquinário agrícola. Aprovaram R$ 30 milhões para construir um certo Memorial à Evolução Agrícola, no Rio Grande do Sul, dos quais captaram R$ 2 milhões entre as empresas do próprio grupo, um autopatrocínio, expediente historicamente usado na Lei Rouanet7 e que foi descoberto pelo empresariado de extrema direita. Com isso, cessaram de combater o incentivo fiscal; apropriaram-se dele.
5 Nomura, Eduardo e Medeiros, Jotabê. “Cultura Bovina”. Revista Carta Capital, 9/6/2021. 6 Plano Anual é uma modalidade da Lei Rouanet por meio da qual é possível captar recursos para manutenção de instituições culturais, podendo com isso pagar funcionários, comprar equipamentos e manter uma programação regular. 7 As informações sobre projetos aprovados e patrocínios recebidos podem ser checadas na página na web da Secretaria Especial da Cultura/Ministério do Turismo por meio do sistema Salicweb (www.cultura.gov.br/salic). Utilizo-me aqui das informações sistematizadas por Eduardo Nomura e Jotabê Medeiros em matéria publicada na Revista Carta Capital, anteriormente citada.
Em julho, Frias fez uma reforma na Lei Rouanet instituindo três padrões de arte sob os quais todos os projetos devem se enquadrar: belas artes, arte sacra e arte contemporânea. O primeiro é um conceito em desuso há décadas; o segundo é questionável em virtude da laicidade a que está submetido o Estado e, dado o perfil da atual gestão, certamente privilegiará arte cristã em detrimento da ampla diversidade religiosa existente no país. Já o terceiro é tão amplo que nos leva a supor que é para onde devem ser encaminhados os projetos que não se enquadram nos dois segmentos anteriores, que são os de preferência do governo, pois neles é possível cumprir o dirigismo cultural que apregoam.
Essa conduta de Porciúncula, respaldada por Frias e, em última instância, pelo presidente, colocou a área de fomento no centro das atenções não por suas realizações, mas por sua capacidade de interditar um importante vetor da produção cultural no Brasil, que é a Lei de Incentivo à Cultura, ainda conhecida como Lei Rouanet. Enquanto isso, as instituições vinculadas à Secretaria da Cultura seguem dominadas por gestores reacionários e olavistas, vários deles militares, como foi dito. Cabe aqui nomeá-las: Ancine; Cinemateca, Funarte, Iphan, Ibram, Casa de Rui Barbosa, Fundação Palmares e Biblioteca Nacional. Todas elas estão aparelhadas com ativistas cuja conduta é, invariavelmente, de combate, fazendo dessas entidades trincheiras para a milícia de Frias e Bolsonaro.
O caso mais dramático em face da tragédia que lhe consumiu é o da Cinemateca Brasileira, que teve parte de seu galpão tomado por um incêndio em julho. A instituição, porém, não tem um militar sob sua direção. Gerida há anos por uma Organização Social (OS), a instituição está sem contrato e sua direção, segundo promessa de Bolsonaro, deveria ser outorgada à atriz Regina Duarte, que nunca assumiu o cargo. Fruto do descaso, a Cinemateca vive sob risco iminente de novos sinistros. Um dia após o incêndio, finalmente, o Governo Federal publicou o edital para seleção de uma nova OS para gerir a instituição. A verba, porém, (R$ 10 milhões anuais), é insuficiente para garantir uma boa gestão do equipamento e seu acervo. A fim de solucionar o impasse, a prefeitura de São Paulo e o governo do Estado se prontificaram a assumir a responsabilidade pela Cinemateca, que fica na capital paulista. Mas é muito improvável que o governo
federal ceda à proposta, ainda que não tenha o menor interesse pela preservação histórica do cinema nacional. Bolsonaro não vai assinar um atestado de incompetência para o governador João Dória.
Arte é ocupar!
Enquanto a memória da produção cinematográfica brasileira está sob risco, a produção atual caminha com dificuldade dada a inoperância da Ancine, apesar do saldo bilionário do Fundo do Audiovisual. A censura aqui também se dá pela sabotagem. A vítima mais notável do boicote é o filme Marighella, de Wagner Moura. Finalizado em 2019, o filme foi finalmente lançado em abril, porém, nos Estados Unidos. A obra tem estreia nacional marcada apenas para o segundo semestre. Porém, adiada inúmeras vezes, é incerto que tal programação se cumpra. É possível que Marighella chegue ao absurdo de dois anos de espera para sua estreia, caso ela se confirme na cogitada data do 20 de novembro – Dia da Consciência Negra. Primeiro, a Ancine alegou pendências da Produtora (O2 Filmes) para assegurar a distribuição do filme. Depois veio a pandemia, que já não é mais desculpa há algum tempo, uma vez que as salas de exibição foram reabertas com restrições. Enquanto isso, uma cópia do filme vazou via whatsapp a partir dos Estados Unidos. Parece que o destino do filme é circular clandestinamente como vários escritos de Marighella, como o clássico Manual do guerrilheiro urbano.
Mas outro documentário veio a público no Dia da Consciência Negra de 2020 e repercutiu muito ao longo deste ano. Trata-se de AmarElo: Tudo é pra ontem, de Emicida, que foi produzido pela Laboratório Fantasma (empresa do próprio cantor) e a Netflix, que lançou a obra pela plataforma de streaming. AmarElo é também nome da música título do último CD do artista, na qual resgata o verso de uma canção de Belchior que virou um mantra para todos os artistas, especialmente os negros, periféricos, LGBTQIA+ e todo o povo que vem sofrendo desde o golpe de 2016: “ano passado eu morri, mas este ano eu não morro”.8
8 Da canção Sujeito de Sorte, gravada no LP Alucinação, de 1976. Verso que, segundo pesquisadores, é de autoria de Zé Limeira, poeta popular pernambucano, popular nos anos 1940 e 1950, cuja obra circulava de forma oral.
No filme, Emicida proclama: “arte é ocupar!”. Ocupar é resistir e é isso que os artistas e profissionais da cultura têm feito nestes tempos de bolsonarismo, cujos efeitos foram agravados com a pandemia que deve persistir até o final de 2021, com efeitos que serão sentidos ao longo de 2022. Não fosse a Lei Aldir Blanc (LAB), conquistada pelo movimento cultural e o Congresso Nacional (Lei n. 14.017 de autoria da Deputada Benedita da Silva PT/RJ), a situação estaria ainda pior. Por meio desta lei, cerca de R$ 2,2 bilhões chegaram aos trabalhadores da cultura na forma de auxílio emergencial, apoio a espaços culturais e por editais. Com esse apoio, os artistas aprenderam a usar os recursos disponíveis na internet e inundaram a rede de produções belíssimas, fazendo um excelente uso dos recursos da LAB, oriundos do Fundo Nacional de Cultura.
Cabe destacar o papel de estados e municípios na implementação da LAB, que pouco precisou da Secretaria Nacional de Cultura para se efetivar. Os recursos foram passados direto do Tesouro para os entes federados, conforme determina o Sistema Nacional de Cultura, que acabou, inusitadamente, sendo ativado em pleno governo Bolsonaro. Assim, a exemplo do que ocorreu com a política de enfrentamento à covid-19, as ações se deram no âmbito local. Em alguns casos, como São Paulo (município e estado), o Maranhão e muitos outros, os governos adicionaram recursos, incrementando o fomento à cultura. Todos os estados e o Distrito Federal, além de 4.176 municípios, acessaram os recursos da LAB. Os 1.396 municípios que ficaram de fora geraram um saldo de cerca de R$ 800 milhões, que Mário Frias tentou reter. Precisou uma portaria do TCU para que o recurso fosse liberado. Enquanto isso, encontra-se em tramitação no Senado o Projeto de Lei n. 73/2021, de autoria do senador Paulo Rocha (PT/PA), conhecido como “Lei Paulo Gustavo”, que prevê um outro repasse federal, agora na ordem de R$ 4 bilhões. O Secretário Nacional de Cultura, porém, está em franca campanha contra o projeto.
O efeito distributivo da LAB é extremamente relevante. É possível projetar que um milhão de artistas tenha acessado entre R$ 1 mil e R$ 3 mil, tanto pelo inciso I da ajuda emergencial como pelos incisos de editais e apoio a espaços culturais, já citados aqui. Um exemplo é o Encontro Estéticas das Periferias. Realizado em São Paulo pela ONG Ação Educativa,
o Festival teve uma edição pela LAB em agosto com exibição de apresentações em vídeo. Dos R$ 100 mil recebidos pelo projeto, 90% foram repassados a 44 grupos artísticos periféricos, além de profissionais de produção e comunicação contratados para organizar o evento. É essa capacidade de ação em rede e de ajuda mútua que faz a cultura resistir a esses tempos sombrios que o Brasil há de superar. Parafraseando a composição de Nelson Sargento, morto em 2021 em decorrência da covid, a cultura agoniza, mas não morre.