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Poesias nas redes sociais enquanto prática de resistência
Não é comum perceber a poesia como expressão que, partindo do individual, se expande para uma expressividade coletiva. Com as redes sociais, os sentimentos de escritos poéticos alcançaram um novo patamar de atuação como representação dos povos oprimidos, silenciados.
Amanda Myrella da Silva Gomes e Dayane Queiroz Freitas1
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A poesia há muito que não consegue integrar-se, feliz, nos discursos correntes da sociedade. Daí vêm as saídas difíceis: o símbolo fechado, o canto oposto à língua da tribo, antes brado ou sussurro que discurso pleno, a palavra-esgar, a autodesarticulação, o silêncio. O canto deve ser ‘um grito de alarme’, era a exigência de Schönberg. [...] Essas formas estranhas pelas quais o poético sobrevive em um meio hostil ou surdo, não constituem o ser da poesia, mas apenas o seu modo historicamente possível de existir no interior do processo capitalista.2
1 Amanda Myrella da Silva Gomes é graduanda em Ciências Sociais, pesquisadora do Observatório das Nacionalidades (ON-Uece) e bolsista ICT/Funcap do projeto Colonialismo Português e emergência dos nacionalismos em Brasil, Cabo Verde e Guiné-Bissau - Novos olhares sobre África e Brasil (2020-2021). Dayane Queiroz Freitas é graduanda em Ciências Sociais pela Universidade
Estadual do Ceará (Uece). Bolsista CNPq com o Projeto: Literaturas, nacionalidades e colonialismos: cartografia social das comunidades imaginadas de Brasil, Cabo Verde e Guiné-Bissau. 2 BOSI, A. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, 1977, p. 142. Disponível em: http://paginapessoal.utfpr.edu.br/rogerioalmeida/teoria-da-poesia. Acesso em: 14 ago. 2021.
Nação. O cientista político Benedict Anderson refletiu sobre esta palavra-conceito com especial atenção em sua obra Comunidades imaginadas3 e verificou que muito além de um conceito amplo e não acabado, esse termo-chave transcende o palpável, o dizível. Ao mesmo tempo, esta ideia abstrata afirma-se com tanta força e com tamanha potencialidade que é pauta inegável em diversas áreas de estudo, sejam elas pertencentes às Ciências da Natureza, Matemáticas ou Humanas, e fazem-se inexoravelmente presentes nas principais discussões, sejam acadêmicas ou cotidianas. A concepção de que o processo de formulação de um construto nacional realiza-se através de narrativas, escritas ou orais, passadas de geração à geração, com o intuito de formar um modelo no imaginário de determinada configuração de pessoas é defendida por diversos autores, cada um com suas próprias considerações em relação a esse processo.
A produção de literatura impressa, como afirma Benedict Anderson,4 colabora para a representação da ideia de nação, através do capitalismo editorial.5 Ou seja, a veiculação da literatura impressa permite que a sociedade tome bases sólidas para a construção da nação e do seu próprio modo de pensar. Benedict aponta que “foi o capitalismo editorial que permitiu que as pessoas, em números sempre maiores, viessem a pensar sobre si mesmas e a se relacionar com as demais de maneiras radicalmente novas”.6 Os livros, portanto, eram o principal instrumento para viabilizar a manifestação do pensamento político-social dos grandes pensadores, em diferentes períodos históricos. Os romances, com suas prosas poéticas, atraíam os mais diversos leitores, sendo assim, um meio de divulgação de ideais. O estudo deste gênero literário passou então a ser amplamente difundido. Dentro deste nicho de pesquisa, dos que despertaram seu olhar para os gêneros literários enquanto matéria-prima contributiva à criação de um imaginário nacional, o membro da Academia Brasileira de Letras, Alfre-
3 Anderson, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 4 Anderson, Benedict. op. cit., p. 12. 5 Conceito explorado por Benedict Anderson, em Comunidades imaginadas, onde ele afirma que é por meio do material impresso que a nação se transforma em uma comunidade sólida, sempre recorrendo a histórias previamente selecionadas. 6 Anderson, op. cit., p. 12.
do Bosi,7 estudou com afinco o papel da poesia, o texto lírico, atuando como ferramenta de resistência, possibilidade de narrativa dos que fogem do status quo8 de um sistema de opressão que esteja no poder em um dado momento histórico. As novas formas, as diversas possibilidades, as linhas de fuga que este gênero literário assumiu impressionam e nos questionam: que formato assumiu a poesia em tempos passados? Quais suas novas temáticas e configurações no presente?
O período da ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985) apresentou-se como um dos mais prolíficos para uma ressignificação da literatura dentro do cenário brasileiro. Acerca disso, Alfredo Bosi em entrevista à Revista Adusp,9 disse:
Agora, além dessa visão digamos mais feliz e mais eufórica, que conduz a uma expansão da alma, há uma forma de poesia que me atraiu desde cedo e sobre a qual escrevi bastante: a chamada forma de resistência. Essa ideia de literatura como resistência foi amadurecendo para mim desde principalmente os anos da Ditadura Militar [...] como se tratava do longo período de 21 anos de ditadura, os intelectuais mais sensíveis à luta social [...] se viram confrontados com um baque. Aqueles projetos que estavam amadurecendo foram cortados violentamente. Então me pareceu que a concepção de poesia apenas como expressão da subjetividade, sem dúvida uma visão básica que está na maioria dos autores de estética, poderia ser pensada também como uma forma de resistência à ideologia dominante.
Musicar poemas conferindo-lhes melodia e voz era uma das alternativas para pronunciar-se diante do cenário vivenciado. As letras descreviam uma não conformação ao regime forçosamente estabelecido. Foi nesse contexto que, em 1965, Jorge Mautner10 lançou duas poesias-musicadas, denominadas “Radioatividade” e “Não, Não, Não”, e dois livros, O vigarista
7 Alfredo Bosi, reconhecido por seus estudos com ênfase na Literatura Brasileira, faleceu em 7 de abril de 2021. Em vida, algumas das suas principais atuações foram como Membro da Academia
Brasileira de Letras e da Comissão de Lexicografia e da Comissão de Publicações da Academia
Brasileira de Letras; assim como professor titular aposentado e professor emérito de Literatura
Brasileira da da Universidade de São Paulo. 8 No sentido de “o estado atual das coisas”, o que já está estabelecido. 9 A Revista da Adusp realizou essa entrevista com o crítico literário, entre outras áreas de atuação,
Alfredo Bosi em sua edição de dezembro de 2015. Disponível em: https://www.adusp.org.br/index.php/imprensa/revista-adusp/2449-revista-58 . Acesso em: 7 jul. 2021. 10 Henrique George Mautner, nome de batismo do artista conhecido como Jorge Mautner; compositor, violonista, escritor, é mais reconhecido por suas canções, como “Maracatu Atômico” em
Jorge e Narciso em tarde cinza, que foram classificadas como produções de protesto e censuradas pela Lei de Segurança Nacional (1966). Em decorrência deste fato, Mautner, seguindo os passos de diversos outros artistas brasileiros, retirou-se do país para sua própria segurança. Tais letras falavam de temáticas como o machismo:”Você diz que mulher é ser inferior/ Que dinheiro compra tudo, compra até o amor/Não, não, não quero ouvir mais você falar”;11 e o anticapitalismo:
Você está tão triste/Não dormiu também/Eu sei o motivo/Não conto pra ninguém/Porque todo mundo sabe/É medo que o mundo acabe/E que sobre a Terra/ Venha a Nova Guerra [...] Por isso eu quero viver/Longe da maldade/Do dinheiro que escravizou/Toda a humanidade/Por isto eu quero viver/Com toda a intensidade/Sem ligar pra opinião/De quem não fala a verdade/Eu também não durmo/ Fico a cismar/Se amanhã ainda/Eu hei de cantar.12
Na contemporaneidade, a invenção da nação perpassa pelo poema e a poesia, àqueles que estão embutidos dentro dos livros do gênero romance, e daqueles que são publicados, compartilhados, retuitados nas redes e mídias sociais. A poesia, por ser uma expressão muito singular, particular de um indivíduo, normalmente não tem seu papel transindividual reconhecido, isto é, não é comum perceber a poesia como uma expressão que, partindo do individual, se expande para uma expressividade coletiva. Com o advento das redes sociais – em especial Instagram, Facebook, Blogger’s –, essas externação de sentimentos através de escritos poéticos alcançou um novo patamar de atuação, sendo agora uma representação política dos povos oprimidos, silenciados. Esses espaços dentro do meio virtual foram (re)tomados. Visto que o atual cenário global exige, cada vez mais, a manifestação dos excluídos, esses encontram meios e ferramentas em alguns espaços da internet e das rádios comunitárias que concedem voz aos grupos periféricos que, sem a anuência da mídia institucional, buscam refúgio nas mídias alternativas.
parceria com Nelson Jacobina. Não é difícil encontrar trechos de seus livros, que foram musicados pelo próprio. Acredito que foi uma tentativa dele em atingir maior alcance de público. 11 Trecho da música “Não, não, não”, de autoria de Jorge Mautner, segundo a União Brasileira de
Compositores (UCB). 12 Mautner, Jorge. Radioatividade, 1965.
O capitalismo editorial mantém uma lógica de dominação com o apoio dos monopólios de mídia, que determinam quais artistas se enquadram no perfil da elite intelectual. O campo literário caminha conforme as transformações sociais do país e, em um movimento dialético, transforma realidades sociais a partir de suas produções. O Brasil é solo fértil para a produção de excelentes artistas. Poetas, pintores e escritores somam grandes obras. Entretanto, existe um recorte de raça, gênero e classe quando avaliamos os cânones da literatura no Brasil. Não é difícil evidenciar que são homens brancos e de elevado poder aquisitivo que ocupam o cenário literário e o mural da história literária do país.
A partir do momento em que se estabelece essa elite, as produções que se encontram à margem não são consideradas como literatura. Existe uma grande parcela de artistas que lutaram e lutam para que seus trabalhos sejam reconhecidos dentro do campo literário, embora a hegemonia do capitalismo editorial seja um entrave para os processos de resistência. Tal hegemonia não possibilita que autores de grupos minoritários tenham seus trabalhos publicados e reconhecidos. Essa dificuldade faz com que esses artistas busquem outros meios de levar seus trabalhos à sociedade. Os desafios encontrados refletem a desigualdade presente em nossa sociedade.
Muitos escritores utilizam as plataformas digitais para divulgar seus trabalhos, visto que, majoritariamente, os grandes veículos de mídia não reproduzem escritas que estejam fora de seus escopos. O capitalismo editorial também inviabiliza a publicação impressa das produções de cunho popular. Por esse motivo, muitos escritores traçam estratégias para atuar de forma independente através da comunicação em rede e do compartilhamento via redes sociais. Sendo o capitalismo editorial um grande impeditivo aos escritos periféricos, impossibilitando tantos talentos de publicar seus trabalhos, a utilização do Instagram como plataforma de divulgação e os financiamentos coletivos são alternativas para muitos escritores independentes.
Ma Njanu é um exemplo de escritora que produz conteúdo de forma independente. Ela é poeta, ensaísta e educadora popular. Natural de Fortaleza-CE, publicou de forma totalmente independente um zine intitulado
“Na boca do dragão da América Latina”,13 disponível também em áudio no Spotify. Em 2021, ela lança através de financiamento coletivo o livro de poesias “Olho de tigre com fome: considerações sobre a leitura perversa”. Ma Njanu participa de antologias, zines e outras publicações, também é idealizadora do Clube de Leitoras, na periferia de Fortaleza, e da Pretarau – Sarau das Pretas, coletiva de artistas negras.
Com a proposta de estabelecer novas formas de fazer ecoar sua voz, muitos poetas, incluindo Ma Njanu, buscaram divulgar seus trabalhos de maneira independente. Ma Njanu escreve sobre diversos temas, incluindo críticas ao cânone literário:
É preciso rasurar o cânone/distorcer as regras/as rimas/as métricas/o padrão/ a norma que prende a língua/os milionários que se beneficiam do nosso silêncio/ do medo de se dizer poeta/só assim será livre a palavra.14
As redes sociais são o campo de batalha dos produtores independentes. É por lá que se desenrolam conexões entre autores e com o público em geral. Entretanto, há muitas dificuldades durante a jornada da produção independente, principalmente porque existe uma elite literária já consolidada. Apesar dos desafios, produtores independentes se lançam cada vez mais como grandes poetas contemporâneos, como sujeitos ativos no cenário literário, mostrando a beleza de seus escritos e colaborando para a formação do pensamento nacional.
Referências
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. BOSI, A. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, 1977, p. 139-148. Disponível em: http://paginapessoal.utfpr.edu.br/rogerioalmeida/teoria-da-poesia. Acesso em: 14 ago. 2021. BOSI, A. Poesia como resistência à ideologia dominante. Entrevista concedida a Paulo Hebmüller e Daniel Garcia. Revista Adusp, São Paulo, n. 58, p. 6-8, dez. 2015. Disponível em: https:// www.adusp.org.br/files/revistas/58/mat01.pdf. Acesso em: 7 jul. 2021. IANNI, O. Sociologia e literatura. Rua – Portal de Periódicos Eletrônicos, Campinas, v. 4, n. 1, p. 55-74, 2015. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/rua/article/ view/8640630. Acesso em: 7 jul. 2021.
13 MA NJANU. Na boca do dragão da América Latina. Disponível em: https://issuu.com/ma_ njanu/docs/na_boca_do_drag_o_versaofinal. Acesso em: 2 ago. 2021. 14 Ma Njanu, op. cit.
MA NJANU. Na boca do dragão da América Latina. Disponível em: https://issuu.com/ma_njanu/ docs/na_boca_do_drag_o_versaofinal. Acesso em: 2 ago. 2021. NOJOSA, Urbano Nobre. Gênese do capitalismo editorial: interseções entre as tradições da oralidade e da escrita. Regit, [S.l.], v. 2, n. 2, dez. 2014. Disponível em: http://revista.fatecitaqua.edu.br/ index.php/regit/article/view/REGIT2-A8. Acesso em: 8 jul. 2021.