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O SUS que temos e o SUS que necessitamos: três iniciativas estratégicas da sociedade civil para criar um sistema do tamanho do povo brasileiro
Três iniciativas ilustram uma abordagem de redimensionamento e reorganização do SUS para atender as necessidades das populações em seus territórios no tempo adequado e para alcançar a efetividade na forma de resultados em saúde.
O SUS que temos e o SUS que necessitamos: três iniciativas estratégicas da sociedade civil para criar um sistema do tamanho do povo brasileiro
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Armando De Negri Filho1
No momento em que escrevo, temos mais de 600 mil mortos pela covid-19, somos o segundo país com maior número de mortos no planeta, alcançando 2.787 mortos por milhão de habitantes.
Poderíamos ter menos mortos e doentes se não tivéssemos sofrido e seguíssemos sofrendo com as mensagens e atos que atacam a vacinação, menosprezam o uso de máscaras e o distanciamento físico. Apesar disso, o número de casos e mortes poderia ter sido ainda maior não fosse o enorme esforço institucional e humano que o SUS realizou no âmbito da atenção aos
1 Armando De Negri Filho é médico especialista em Medicina de Emergências. Mestre em Epidemiologia, em Saúde Global e em Gestão Clínica. Doutor em Medicina Preventiva – Área de Políticas e Sistemas de Saúde. Coordenador Geral da Rede Brasileira de Cooperação em Emergências (RBCE). Coordenador do Comitê Executivo do Fórum Social Mundial da Saúde e da Seguridade Social. Membro do Painel Mecanismo de Especialistas em Direito ao Desenvolvimento do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Membro do Grito das Excluídas e dos Excluídos Continental.
pacientes afetados pela covid-19 e suas consequências. Superadas as barreiras para aquisição e produção de vacinas, a projeção é de que quase 147 milhões de pessoas tenham recebido pelo menos uma dose da vacina até o início de outubro de 2021 e mais de 93 milhões estejam com a vacinação completa, totalizando 72% e 43% da população. Números ainda insuficientes, que nos deixam sob permanente ameaça, mas que são uma conquista no cenário de um governo federal que frequentemente obstruiu as soluções requeridas.
Ainda estamos confrontados com a possibilidade de surgimento de novas variantes do vírus e sua expansão em um cenário de coberturas vacinais insuficientes. Mas o que mais nos desafia é o grau de fragilidade que o SUS arrasta para fazer frente a uma pandemia/epidemia que vai se transformar em endemia e requer cuidados permanentes dos afetados e potenciais novos afetados em uma dinâmica de sindemia, ou seja, de uma interação de causas econômicas, sociais, ambientais e de outras patologias nas populações impactadas pela covid-19.
Além de enfrentar as dívidas sociais e as desigualdades estruturais no SUS, é preciso responder à ampliação das necessidades sociais derivadas do adiamento de demandas físicas e mentais derivadas do adoecimento, incapacidade e morte geradas pela pandemia. Calcula-se que 10% dos contagiados irão necessitar de atenção em decorrência da doença, e que 60% dos hospitalizados sobreviventes irão requerer cuidados continuados por razões de doenças crônicas. Há que pensar nas vítimas das ações deliberadas dos governos que negaram e seguem negando a pandemia, como os órfãos, os pais sem filhos, os netos sem avós e os avós sem netos, os esposos e esposas solitários, bem como nas reparações e formas de apoio à vida. Felizmente temos inúmeros exemplos de ações que estão sendo desenvolvidas de forma solidária com visão de futuro.
Destaco três iniciativas que ilustram várias expressões que vivemos. A primeira é a organização do I Congresso Brasileiro de Políticas e Sistemas de Atenção às Urgências e Acesso Hospitalar por entidades e movimentos que lutam pelo pleno desenvolvimento do SUS.2 Ele foi inicialmente pro-
2 Para ver o conjunto das entidades que convocaram e organizaram o Congresso, acesse www.rbce. com.br .
posto pela Rede Brasileira de Cooperação em Emergências (RBCE) e em parceria com o Grito das Excluídas e Excluídos Continental. A intenção foi abordar o conjunto do SUS e promover sua transformação sistêmica. A convocatória destacou que as/os usuárias/os e trabalhadoras/es da saúde são atores fundamentais neste processo.
Com o impacto provocado pela epidemia da covid-19, observamos a intensificação da sobrecarga dos serviços e, apesar de expansão de oferta de leitos de internação em enfermarias e UCIs/UTIs, se observou a desassistência de outras patologias e o precoce fechamento das expansões de serviços com a ideia de que já passamos o pico epidêmico, o que parece desconhecer a insuficiência histórica da oferta como também ignora a possibilidade de novas ondas epidêmicas. Coube ainda destacar a fragilidade das proteções do trabalho em saúde como expressão do desfinanciamento e negligência governamentais (dos poderes executivos e legislativos, assim como os tribunais e órgãos de controle) em relação às necessidades em saúde e nas demais políticas de proteção social.
A RBCE denuncia a violação dos direitos humanos na atenção hospitalar, como em pronto-socorros superlotados, filas de espera demoradas e insuficiência de leitos hospitalares. Lembrando que hoje se aceitam tempos de permanência de até 24h no SUS e existem apenas 1,4 leitos por mil habitantes, porém apenas 0,7 são realmente efetivos e utilizados, muito distante do que é necessário. A dificuldade de acesso a cuidados intermediários e intensivos – UCIs e UTIs – ficou escancarada com a covid, mas é um problema histórico.
A segunda iniciativa corresponde à ideia de materializar uma resposta sistêmica às necessidades da população brasileira que integre o sistema das políticas sociais, institucionalizando um pleno Estado Social de Direito e uma sociedade transformada a partir da consciência dos seus direitos e responsabilidades. Resumimos nossa formulação de convergência como um sistema amplo de proteções sociais que envolva a seguridade nos direitos civis e políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais para produzir justiça social e ambiental.
A terceira iniciativa se refere às associações de vítimas da covid-19 que reivindicam justiça, pois tiveram suas vozes caladas em relação à expe-
riência dos danos gerados pela doença e não tiveram acesso à informação. Quero referir-me particularmente à Associação Nacional Vida e Justiça,3 que congrega pessoas afetadas pela pandemia e apresentaram sua posição ressaltando o direito à saúde.
Essas três iniciativas ilustram uma abordagem de redimensionamento e reorganização do SUS para atender as populações em seus territórios no tempo adequado, para alcançar efetividade. Posicionam a saúde em um sistema abrangente de garantias de políticas sociais. Projetam o protagonismo dos sujeitos de direito reivindicando reparação e perguntando quem se beneficia das desorientações do governo, descortinando a cadeia de responsabilidades a serem cobradas e punidas. Que esses processos nos inspirem a seguir honrando a memória dos que morreram e dos que sofrem as consequências deste desastre humanitário intencionado.
3 Para conhecer a iniciativa, basta acessar o site: https://vidaejustica.com.br.