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Troia: a manutenção de uma prática clandestina na polícia do Rio de Janeiro

Para que ocorra uma infiltração legal ou oficial, a operação precisaria ser controlada, ter autorização da justiça e fazer parte de uma investigação. Nesse caso, não há base legal para que policiais se escondam nas favelas para atirar de acordo com o julgamento deles. Ao matar um suspeito, morrem com ele também as possíveis informações que poderiam ser obtidas a partir de seu depoimento. Não há desarticulação dos criminosos com essa prática. Não há combate ao crime ou aumento de sensação de segurança, apenas mais assassinatos.

Juliana Ferreira Gonçalves e Pedro Paulo da Silva1

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O modus operandi da polícia do Rio de Janeiro2 é o confronto fundamentado no racismo: o uso indiscriminado da força letal com o emprego de fuzis, helicópteros e veículos blindados, por parte das forças policiais, em áreas densamente habitadas. Existe ainda a completa desumanização dos que residem em território favelado. Um local formado por pessoas negras, em sua maioria, que são as mais vitimadas pela letalidade e brutalidade policial – 86% dos mortos pela polícia no Rio de Janeiro são negros. Entre as diversas articulações para garantir a manutenção dessa lógica, há uma prática ilegal e não admitida pelas polícias cariocas: a troia.

1 Juliana Ferreira Gonçalves é jornalista, Coordenadora de Comunicação da Rede de Observatórios da Segurança e mestranda em políticas públicas em Direitos Humanos na Universidade Federal do

Rio de Janeiro (UFRJ). Pedro Paulo da Silva é graduado e mestrando em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Pesquisador do Centro de

Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) e Coordenador de pesquisa do LabJaca. 2 Human Rights Watch. Força letal. Violência policial e segurança pública no Rio de Janeiro e em

São Paulo. Human Rights Watch, 2009. Disponível em: www.hrw.org/reports/brazil1209ptweb. pdf. Acesso em: 12 nov. 2021.

Nas favelas, policiais ficam de tocaia em casas de moradores invadidas, na mata ou em outro local que possam se esconder; aguardam até que um alvo que considerem suspeito apareça e atiram para matar sem aviso de operação, sem voz de prisão, de surpresa. Os agentes atiram sem se importar com quem está passando no momento. Qualquer um pode ser atingido.

Foi dessa maneira que uma mãe negra carregando uma criança negra no ventre foi morta em 8 de junho de 2021. A jovem Kethlen Romeu, 24 anos, caminhava pela comunidade do Lins para visitar a família. Mas uma mulher negra grávida foi vista como um dano colateral na ação em que policiais acharam que era o momento de atirar. Nessa hora, o objetivo é só um: matar. E o objetivo acabou sendo alcançado, levou Kethlen e seu bebê.

A chamada “troia” foi documentada pela primeira vez pela Anistia Internacional em 2015 a partir de relatos de moradores de favelas e de policiais. Trata-se de uma alusão ao cavalo de madeira que escondia soldados gregos em seu interior e que foi aceito pela lendária Troia como um presente. A cidade foi atacada pelos soldados gregos no período da noite, após terem passado o dia escondidos. A polícia carioca tenta reproduzir esse modelo de maneira irresponsável e ilegal:

Policiais ficam escondidos na casa de algum morador e armam uma emboscada para executar uma pessoa específica. Muitas vezes, os agentes entram na favela durante uma operação e se escondem por muitas horas, mesmo depois da incursão ter acabado. Em alguns casos, os policiais chamam o ‘caveirão’ para buscá-los e retirá-los do local.

A prática não é reconhecida pelas polícias, que não se pronunciam sobre o assunto, mas seis anos após o relatório da Anistia Internacional, moradores seguem relatando a atividade e policiais falam anonimamente sobre a ação. No caso de Kethlen, a corporação diz que os agentes estavam em um patrulhamento quando foram atacados por traficantes locais. No entanto, a avó da vítima e vizinhos afirmam que a polícia mente: não houve tiroteio, tudo estava tranquilo até a polícia atirar e matar a jovem. Testemunhas dão conta que nesse dia os policiais estavam escondidos na comunidade desde a parte da manhã.

Em abril de 2021, o vigilante Francisco Lima Paes morreu em uma troia no Morro dos Prazeres quando voltava do trabalho. Outras duas pes-

soas ficaram feridas. E o roteiro é bem parecido com o que vimos na morte de Kethlen: a polícia diz que agentes foram atacados, mas os moradores afirmam que, na verdade, os policiais estavam de tocaia em uma casa na comunidade durante todo o dia. Para que ocorra uma infiltração legal ou oficial, a operação precisaria ser controlada, ter autorização da justiça e fazer parte de uma investigação. Nesse caso, não há base legal para que policiais se escondam nas favelas para atirar de acordo com o julgamento deles. Ao matar um suspeito, morrem com ele também as possíveis informações que poderiam ser obtidas a partir de seu depoimento. Não há desarticulação dos criminosos com essa prática. Não há combate ao crime ou aumento de sensação de segurança, apenas mais assassinatos.

Além da troia, a polícia também regularmente é responsável por outras violências, como invasão de domicílios, torturas e chacinas, como a recentemente ocorrida na favela do Jacarezinho – onde 28 pessoas morreram em ação da Polícia Civil fluminense.3 São por práticas como essas que as forças de segurança contribuem significativamente para o altíssimo índice de homicídios4 no estado. É observável, no gráfico 1, que parte da percepção da violência diz respeito a esse índice.

Olhando para o próximo gráfico, pode-se captar que a parcela de mortes decorrentes da intervenção policial historicamente é superior à 10% do total de homicídios dolosos no estado, chegando em 2019 – mais letal da história – a corresponder a 45% desse número. E é nesse sentido que especialistas da academia e da sociedade civil destacam que o alicerce da intrínseca relação entre cidade e violência é a maneira pela qual as forças estatais agem.5 A prática clandestina da troia somente retroalimenta a violência no Estado: não combate o crime, não investiga, não desmantela

3 Sousa, Bruno. Vi a maior chacina da história do Rio de Janeiro acontecer na minha favela. Labjaca, 11/05/2021. Disponível em: www.labjaca.com/posts/vi-a-maior-chacina-da-historia-do-rio-de-janeiro-acontecer-na-minha-favela. Acesso em: 11/11/2021. 4 Ramos, Silvia. Violência e polícia. Três décadas de políticas de segurança no Rio de Janeiro. Boletim Segurança e Cidadania. Março de 2016. Disponível em: www.ucamcesec.com.br/wp-content/ uploads/2016/03/boletim21violenciaepolicia.pdf. Acesso em: 11/11/2021. 5 Naidin, Silvia. Letalidade policial no Brasil: problema ou projeto? Boletim Segurança e Cidadania, outubro de 2020. Disponível em: https://cesecseguranca.com.br/wp-content/uploads/2020/11/

Boletim-27-Resenha-letalidade.pdf. Acesso em 12/11/2021.

quadrilhas, não é efetiva. Apenas mata e atinge inocentes como Kethlen, seu bebê e o vigia Francisco.

Gráfico 1 – Homicídios dolosos e mortes por intervenção policial no estado do Rio de Janeiro, segundo ano (2001-2020)

O Rio de Janeiro é talvez o estado mais conhecido do país, nacional e internacionalmente. Colabora para isso a circulação da estética e da cultura da capital do estado (a cidade do Rio de Janeiro) por meio de telenovelas, bem como campanhas de turismo que objetivam atrair visitantes ao realçar as paisagens da cidade. Os imaginários e discursos sobre a violência, também – e talvez, sobretudo – figuram como centrais quando a temática é Rio de Janeiro;6 simultaneamente à vontade de participar do carnaval, o medo da chamada violência urbana também emerge quando se pensa sobre o Rio.

Essa sensação é ampliada pela política de segurança pública que tem a troia como símbolo e é fomentada por uma falsa guerra às drogas – que na verdade é uma guerra aos pretos. Sabemos disso ao observar a cor dos que morrem. O combate ao tráfico tenta justificar ações policiais violentas,

6 Telles, Ana Clara. Violência na cidade pós-colonial: imaginações, materialidades e experiências da violência na cidade do Rio de Janeiro. Tese de doutorado em Relações Internacionais). Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2020. Disponível em: https://www. maxwell.vrac.puc-rio.br/48718/48718.pdf. Acesso em: 12/11/2021.

mas escondem práticas em que violência e corrupção se combinam e em que ações policiais ilegais e inconfessáveis se tornaram uma presença constante à luz da vista dos moradores, embora sempre negadas por policiais e comandantes. O presente de grego é para todos nós.

Gráfico 2 – Proporção entre homicídios dolosos e mortes por intervenção policial no estado do Rio de Janeiro, segundo ano (2001-2020)

Referências

FRANCO, L. Caso Kathlen: ‘troia’, a controversa tática policial que pode estar por trás da morte de jovem grávida no Rio. BBC Brasil. 2021. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/ brasil-57496191 HAIDAR, D. Monteiro, J. ‘Troia’: PMs invadem casas em favelas e ficam de tocaia para matar suspeitos, dizem moradores e entidades. G1. 2021 Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/07/15/troia-pms-no-rio-invadem-casas-em-favelas-e-ficam-de-tocaia-para-matar-suspeitos-diz-denuncia.ghtml. RAMOS, Silvia. Violência e polícia: três décadas de políticas de segurança no Rio de Janeiro. Boletim Segurança e Cidadania, n. 21, mar. 2016. Disponível em: https://www.ucamcesec.com.br/wp-content/uploads/2016/03/boletim21violenciaepolicia.pdf. Acesso em: 14 set. 2021. REDE OBSERVATÓRIOS. Você conhece a Troia do Rio de Janeiro? Publicação no Instagram. Disponível em: https://www.instagram.com/p/CQ85UCnpmuZ/ SOUZA, Bruno. “Vi a maior chacina da história do Rio de Janeiro acontecer na minha favela”. Disponível em: https://www.labjaca.com/posts/vi-a-maior-chacina-da-historia-do-rio-de-janeiro-acontecer-na-minha-favela. Acesso: 14 set. 2021. TELLES, Ana Clara. Violência na cidade pós-colonial: imaginações, materialidades e experiências da violência na cidade do Rio de Janeiro. Tese de doutorado em Relações Internacionais). Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2020.

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