NĂşmero 0 Dezembro 2016 Revista da Ordem dos Bardos, Ovates e Druidas - OBOD em LĂngua Portuguesa
Índice
O desenrolar da serpente pág. 5 A tradição do bosque sagrado na espiritualidade druídica pág. 6 Em busca da aura da alma celta pág. 9 Silêncio no Tor de Glastonbury pág. 14
Ficha Técnica Propriedade: © 2016, Zéfiro Editor: Fábio Barbosa Concepção gráfica e paginação: Fábio Barbosa Imagem de capa: Joel Marteleira Colaboram neste número: Alexandre Gabriel, Ana Simões, Carlos Quintino Crow, Francisco Canelas de Melo, Gilberto de Lascariz, Isa Baptista, Joel Marteleira, José Alexandre Frazão Matos, Morgana da Lusitânia, Ollem. ISSN: 2183-9255 Depósito Legal: 419 013/16 Envie-nos as suas contribuições, sugestões ou perguntas através de: ophiusa@obod.com.pt Esta obra não pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer processo à excepção de excertos para divulgação. Reservados todos os direitos, de acordo com a legislação em vigor.
A colheita ao luar — o mistério do orvalho virgem pág. 15 Endovélico: o iniciado e a divindade tópica pág. 17
Eisteddfod pág. 24 Eventos & Blogues pág. 35 Última pág. 36 2
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Ordem dos Bardos, Ovates e Druidas Responsável pelo curso de Druidismo em língua portuguesa: Alexandre Gabriel Morada: Zéfiro, OBOD, Apartado 21, 2711-953 Sintra, Portugal Telefone: (+351) 91 48 48 900 E-mail: obod@obod.com.pt Website: www.obod.com.pt
Editorial
Começar do zero(?)
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enho-me lembrado deles. Dos nossos primeiros antepassados, do tempo em que se inventaram as saudades. Os primeiros com consciência suficiente para sentirem falta do Sol. Para desesperarem na ausência do Sol. Para se regozijarem no seu regresso. Dos nossos primeiros antepassados capazes de observar que havia um padrão: apesar de numa dada estação os dias se tornarem mais curtos e frios, o Sol acabava por se revelar invencível, e voltava sempre a aquecer os seus corpos e a garantir a sua sobrevivência. Graças à tribo, passaram o conhecimento desse padrão às gerações vindouras. E assim, além das saudades, do medo e da alegria, se inventou a confiança. Um laço que só se conhece quando o mito é construído e partilhado por todos, sob pena de os dias parecerem ainda mais curtos e de se maldizer os Deuses até estes se desvanecerem na memória. Também a nossa comunidade atendeu à chamada quando o solstício se aproximou para a revista Ophiusa. Não teria sido possível cumpri-la sem o empenho de várias pessoas que colaboraram neste número, e que nos vão levar em viagem
até Glastonbury, a descobrir os meandros do herbalismo, por entre os bosques sagrados dos Druidas em busca do humanismo dos antigos celtas até um encontro face a face com Endovélico. Ou pelo menos com uma das suas duas faces. Isto além dos inspirados momentos de poesia mais à frente, no Eisteddfod. Começamos do zero como a primeira luz que renasce no solstício de Inverno, mas também como sonho concretizado em pleno como o Sol a pique do solstício de Verão que os nossos irmãos no hemisfério Sul celebram por estes dias. E é esta não-dualidade, este falar para membros e não-membros, druidas e simpatizantes, académicos e leigos, lusófonos de todos os países, que tem sido desde já um desafio apaixonante, e igualmente um sinal da própria Luz que procuramos. Porque na diversidade de todas as coisas, não há outra mestra que não a Natureza. Sejam bem-vindos a esta que é a vossa revista, de todos para todos na comunidade druídica. Começamos dentro de instantes, que é como quem diz, ao virar da página. ■
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TRÍ DE
Três velas que iluminam qualquer escuridão: a verdade; a Natureza; o conhecimento.
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O desenrolar da serpente por Alexandre Gabriel
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esde que em 2011 surgiu o ramo de língua portuguesa do curso de druidismo da OBOD, estava prevista a criação de um boletim ou revista para os membros. Contudo, só agora no Solstício de Inverno de 2016 (no Hemisfério Norte), 5 anos mais tarde, é que este projecto se torna uma realidade, graças à colaboração de vários membros e amigos e, em particular, do Fábio Barbosa, que assume assim a sua função de editor da Ophiusa. Este número zero representa assim, na sua forma de Ouroboros, a serpente que morde a sua própria cauda, simbolizando o infinito e o vazio-pleno. Representa também a semente, lançada em terra fértil neste período solsticial, em que, partindo do ponto de maior escuridão, os dias começarão gradualmente a crescer. Porquê Ophiusa? Ophiusa era o nome atribuído pelos antigos gregos ao território hoje português (ou do extremo-ocidente ibérico) e significa Terra das Serpentes. É também um anagrama de Sophia, que significa Sabedoria em grego antigo. A tradição primordial sempre associou os druidas (e os sábios em geral) às serpentes e é sobejamente conhecida a ligação entre a serpente e a gnose. No coração desta revista-serpente está assim a divulgação de temáticas ligadas – directa ou indirectamente – ao druidismo em língua portuguesa. Pretende-se assim não apenas a publicação de textos, artigos e outras expressões artísticas lusitanas, mas também lusófonas, não restringindo o druidismo a um qualquer confinamento geográfico, o que não faria qualquer sentido no séc. XXI. Desta forma contamos e pedimos a colaboração não só a Portugal, mas também ao Brasil, e a todos aqueles que se expressem na língua de Camões. A língua portuguesa é rica na sua literatura, na sua expressão poética em particular. E a poesia é uma das ferramentas dos Bardos que, imbuídos pela inspiração divina, utilizam para, eles próprios, “ser[em] poema e não poeta” (pegando na ideia de Agostinho da Silva), percorrendo deste modo a Via da Periferia para o Centro. Por fim, esta revista-serpente é também uma revista-clareira. Assim, está aberta à participação e leitura de todos aqueles que se interessem pela temática e não apenas aos membros da OBOD. Bem-vindos! ■ de ze m bro 2016 OPHIUSA
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A tradição do bosque sagrado na espiritualidade druídica
por Francisco Canelas de Melo
«Acredita em mim, aprenderás mais lições nos bosques do que em livros. As árvores e as pedras ensinar-te-ão aquilo que não poderás aprender dos mestres.»1 — São Bernardo de Claraval
“Experto crede: aliquid amplius invenies in silvis, quam in libris. Ligna et lapides docebunt te, quod a magistris audire non possis.” São Bernardo de Clavaral, séc. XII.
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esde os tempos imemoriais que o homem dedicou um culto à Natureza, fonte de toda a sua vida. Um dos locais de especial veneração entre os povos celtas era o Bosque e as suas Clareiras. Conhecido como Nemeton, o Bosque é o “centro de toda a sua religião. É considerado como berço da raça e o lugar onde habita o Deus supremo ao qual todas as coisas estão sujeitas e obedecem.”2 Tradicionalmente estes bosques possuíam uma flora bastante particular; espécies como bétula,
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TÁCITO, A Germânia, trad. Adolfo Casais Monteiro, Editorial Inquérito, Lisboa. 2
O termo druida é originário das palavras de raiz céltica dru (“carvalho”) e wid (“conhecimento”), tornando o druida “aquele que possui o conhecimento do carvalho”.
sorveira, salgueiro, freixo, macieira, pinheiro e carvalho eram facilmente encontradas nestes templos sagrados. É hoje comum a relação entre estas árvores3 e o alfabeto Ogham, também conhecido como “o Alfabeto das Árvores”. Trata-se de um alfabeto “composto por vinte e cinco traços traços simples, centrados numa linha vertical ou dispostos como se fossem ramificações da mesma, e
semelhante, em termos de finalidade, às runas nórdicas.”4 Como símbolo de especial veneração, o carvalho era a raiz de todo o druidismo. O termo druida é originário das palavras de raiz céltica dru (“carvalho”) e wid (“conhecimento”)5, tornando o druida “aquele que possui o conhecimento do carvalho”. Esta árvore era por vezes personificada como o Rei-Carvalho, sendo-lhe associado um
Para além das árvores citadas, o Ogham é composto por: amieiro, espinheiro-alvar, azevinho, aveleira, videira, hera, giesta/feto, espinheiro-negro, sabugeiro, tojo, urze, choupo, teixo, faia, evónio, madressilva, groselheira e faia (CARR-GOMM, Philip, Os Mistérios dos Druidas, Zéfiro, Sintra, 2008, p. 176). 4 CARR-GOMM, Philip, Os Mistérios dos Druidas, Zéfiro, Sintra, 2008, p. 172. 5 CARR-GOMM, Philip, Os Mistérios dos Druidas, Zéfiro, Sintra, 2008, pp. 180 e 181. 3
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Nas imagens: Sintra, Portugal.
carácter perpetuador de toda a tradição druídica. Encontramos ainda noutros locais algumas demonstrações da importância desta árvore. Na GréGerês, Sintra e Bussaco, assim como o cia Antiga havia Carvalho Carvalho de Calvos, em um perto da cidade Póvoa de Lanhoso, são de Tomaros, em verdadeiros templos Dodona, onde que herdámos dos funcionava um nossos antepassados oráculo dedicado de origem celta. ao culto da Deusa-Mãe, Gaia, e posteriormente ao de Zeus. Este oráculo era interpretado pelos sacerdotes e pelas sacerdotisas tendo em conta o som provocado pelo vento nas suas folhas. Nos séculos XVI e XVII, algumas ordens religiosas6 procuraram
locais com características especiais onde pudessem construir os seus Desertos7, lugares onde poderiam comungar com o divino num recolhimento total, procurando uma total fusão entre o homem a sua Mãe, a Natureza. Actualmente encontramos no nosso País alguns lugares de especial semelhança com as descrições acima referidas. Gerês, Sintra e Bussaco8, assim como o Carvalho de Calvos9, em Póvoa de Lanhoso, são verdadeiros templos que herdámos dos nossos antepassados de origem celta. ■ Artigo originalmente publicado em Mandrágora – O Almanaque Pagão – 2011: No Bosque Sagrado dos Druidas (© Zéfiro, 2010. Todos os direitos reservados).
Ordem Franciscana e Ordem dos Carmelitas Descalços. Os casos dos Conventos de Santa Cruz, vulgo Convento dos Capuchos em Sintra e do igualmente Convento de Santa Cruz, no Bussaco. 8 O nome Bussaco presume-se que seja originário da designação latina de Boscum Sacrum, ou seja Bosque Sagrado (SANTOS, Álvaro, Caracterização da Mata Nacional do Buçaco, 1993). 9 Carvalho mais antigo de Portugal com aproximadamente 500 anos. (LASCARIZ, Gilberto, Mandrágora 2009, Zéfiro, Sintra, 2008). 6 7
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Em busca da aura da alma celta por Cláudio Quintino Crow autor e investigador na área das mitologias, cultura irlandesa e espiritualidade celta
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or definição, uma religião é uma forma de reconexão ‘religio’, do latim ‘religare’, reconectar, que permite que reencontremos algo em nós ausente ou perdido. Como tal, em momento nenhum o termo implica na hierarquização, na dogmatização e na estruturação que a maioria das pessoas associa à palavra: afinal, se essas são marcas do pensamento religioso dominante no ocidente, em outras culturas o conceito de religião nem de longe evoca tais elementos. No caso da religião celta – ou druidismo, como muitos a chamam – é fundamental que não apliquemos o conceito dominante de ‘religião’ – institucionalizada, dogmática e hierarquizada – a
uma espiritualidade que deveria ser melhor definida mesmo como uma ‘filosofia’, visto que propõe, fomenta e mesmo exige uma forma diferente de ver, pensar e sentir a vida. Isso só se torna verdadeiramente possível quando compreendemos os processos históricos que dão ao druidismo contemporâneo sua essência e sua identidade. Durante muito tempo, o termo ‘druidismo’, surgido na língua inglesa no século XVIII e em seguida difundido a outros idiomas, foi utilizado para definir as ordens da Grã-Bretanha Victoriana que floresceriam nas décadas seguintes – ordens que, coerentes com sua natureza semi-maçônica, eram hierarquizadas, herméticas, de ze m bro 2016 OPHIUSA
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exclusivamente masculinas e dogmáticas. Como o grande escritor e filólogo JRR Tolkien sabiamente escreveu, “O termo ‘celta’ é uma bolsa mágica, onde tudo pode ser inserido e da qual quase tudo pode sair... tudo é possível no fabuloso crepúsculo celta.” Não causa estranheza, portanto, que tal termo tenha sido usado também para descrever a suposta “herança espiritual celta” No caso do druidismo, revelada na Frané fundamental que não ça do século XIX apliquemos o conceito a Hippolyte Léon dominante de ‘religião’ Denizard Rivail pelo espírito de – institucionalizada, um druida que dogmática e hierarquizada – a uma se identifica pelo nome de Allan espiritualidade que Kardec e que, deveria ser melhor atualmente, é definida mesmo como conhecida como uma ‘filosofia’, visto Doutrina Espíque propõe, fomenta rita. Em nome e mesmo exige uma forma diferente de ver, da economia de tempo e espaço, pensar e sentir a vida. não vou estender a lista a outras correntes filosófico-espirituais que, de uma forma ou de outra, se associam ao termo ‘celta’ – e perceba o amigo leitor que falo especificamente do termo ‘celta’ e não a o que quer que seja que possa ser descrito como ‘religião celta’ – e aqui chegamos, então, ao escopo central deste ensaio. Sabemos que o estudo de um povo da Antigüidade - sua história, sua espiritualidade, seus 10
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valores e costumes – é sempre um grande desafio. No caso dos celtas, a ausência de registros escritos próprios anteriores à chegada do cristianismo torna tal desafio ainda maior. Durante muito tempo, a principal fonte de pesquisa sobre os celtas e sua cultura eram as chamadas “Fontes Clássicas” – os textos de escritores gregos e romanos que descreviam os celtas. Muito da imagem estereotipada que o grande público faz dos celtas como sendo “bárbaros sanguinários e incivilizados obcecados por sacrifícios” tem origem nos exageros e distorções desses autores clássicos. O avanço das pesquisas a partir do século XX vem reduzindo drasticamente a importância das fontes clássicas à medida que algumas crenças são desmentidas pelos achados em sítios arqueológicos – as chamadas “Evidências Físicas”. Anualmente, novos achados são literalmente descobertos em escavações, fornecendo elementos importantes acerca da vida cotidiana dos celtas e ajudando também a lançar luz sobre os aspectos imateriais de sua cultura, como suas crenças, valores sociais e culturais. Somam-se a estes as referências feitas aos celtas em textos posteriores à chegada do cristianismo às terras celtas - a “Evidência Vernacular” – e os códices e manuscritos medievais – a “Tradição Literária.” Mas talvez o mais enriquecedor componente dos estudos sobre os celtas seja mesmo a “Tradição Oral”: o conjunto
de lendas, contos e fábulas que descrevem os feitos de muitas personagens importantes da Tradição Literária sem, contudo, a rigidez do texto escrito – provando, assim, que de fato a Alma Celta mantém-se viva através da palavra falada, nas bocas dos seanachaí (contadores de histórias) e poetas da Irlanda e seus equivalentes em outras regiões celtas. Assim, temos que as muitas – e dramáticas – diferenças do que se tenta definir como uma ‘religião celta’, ao longo de tantos séculos e oriundas de áreas tão diferentes quanto a Irlanda, a Croácia e Portugal, só para citar algumas – dificulta qualquer tentativa de se planificar, estruturar e consolidar um sistema filosófico-espiritual celta nos moldes do que compreendemos como ‘religião’ em nossos tempos. Tomemos como exemplo
a mais arquetípi- O celtismo traz outra ca nação celta de forma de humanismo, nossos tempos: a outra forma de encarar Irlanda. Desde a as coisas, de sentir, de chegada das pri- absorver a realidade, meiras tribos ce- de conceituar a ltas àquela ilha, deidade. É uma outra por volta – e uso forma de viver, outro dados conserva- método de raciocinar. dores – do séc. IX a.E.C., a cultura que ali se desenvolveu atravessou ao longo dos séculos um período de transformações e evoluções naturais a ela intrínsecas, assim como também foi submetida a diversas influências – notadamente, a cristianização e as invasões vikings, normandas e britânicas. O contato com cada uma dessas culturas trouxe incontáveis alterações, enriquecimentos naturais, ao modo de se ver e se trabalhar o sagrado na Irlanda celta. E se hoje a Irlanda
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é de fato a mais importante fonte para quem se dispõe a compreender as origens de uma religião celta, é inegável que tal só é possível graças à disposição dos monges copistas nos primeiros mosteiros cristãos irlandeses em registrar as narrativas outrora transmitidas oralmente, mas também, e a meu ver, graças ao próprio vigor dessas narrativas, dos fascinantes personagens que as povoam e, acima de tudo, graças à relevância dos ensinamentos e lições transmitidos
valores ou enfoques de nossos tempos. E para que isso tenha alguma chance de ocorrer, é fundamental que haja um embasamento historicamente consistente não só de quem eram e no que criam os celtas, mas também, fundamentalmente, do porquê de serem quem foram e de crerem no que criam: é preciso, nas palavras do celtista francês Jean Markale, “abandonar o sistema aristotélico que forma a civilização humanista ocidental. O celtismo traz outra forma de
pelos mitos e lendas – relevância que garante sua sobrevivência e adaptação às influências externas que possam receber. Assim, há algo a que podemos chamar de “Alma Celta” – uma essência, uma natureza, a ser vislumbrada através do estudo dos mitos e lendas preservados ao longo dos séculos, tanto pelas Fontes Clássicas quanto pelas Tradições Literária e Oral acima mencionadas. E eis aqui outro ponto crucial no desenvolvimento de uma versão atual da espiritualidade celta: a necessidade de se compreender as narrativas pelo que elas são, livre de
humanismo, outra forma de encarar as coisas, de sentir, de absorver a realidade, de conceituar a deidade. É uma outra forma de viver, outro método de raciocinar.” Ignorar este fato – voluntária ou involuntariamente – pode turvar o resultado da busca, travar a transmissão dos saberes, embotar a vivência do regenerador legado espiritual celta. Esse legado, pelo quanto visto acima, consegue falar à nossas almas contemporâneas muito mais pela adoção de um enfoque quase nativista, que procure resgatar, com honestidade e consciência, a percepção de vida, os
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valores e princípios dos celtas da Antigüidade – e do Medievo irlandês, e por que não do chamado “Renascimento Druídico” dos séculos XIX e XX do que propriamente através de ritos e estruturas iniciáticas cujas raízes estão na Europa pós-renascentista. E mesmo as correntes neo-pagãs do druidismo, por vezes puerilmente avessas à contribuição cristã à essa Alma Celta, sobretudo na Irlanda, teriam muito a ganhar se, ao invés de renegar os elementos cristãos naturalmente absorvidos por essa forma de ver o mundo celta, percebessem o quanto eles a enriqueceram e a trouxeram a nossos tempos. As bênçãos e preces produzidos pelos monges irlandeses no Medievo preservam em sua essência a lírica ligação que nos une à Natureza e seus ciclos sagrados, e são ecos diretos das celebrações sazonais dos celtas da Antigüidade. Assim, essa visão da sacralidade da natureza, a compreensão dos ciclos e ritmos do tempo, o sentimento de proximidade com o Outro Mundo, a busca de relações inspiradas em nossas vidas e a compreensão de nossa ancestralidade e dos processos históricos que fazem de nós quem somos, aliada à importância atribuída à Honra e aos processos transformadores da vida – alguns dos muitos valores e conceitos originalmente celtas que, quando resgatados, podem nos trazer benefícios – acabam por formar um verdadeiro circuito
que, como sempre no pensamento celta, se entrelaça e possibilita uma compreensão mais profunda dessa Alma Celta e de sua evolução ao longo das eras. É esse ‘circuito’ que ativa e vivifica a experiência da cultura celta, tanto nos rituais dos modernos movimentos druídicos quanto na Literatura, na Música e noutras expressões da Alma Celta que nos cativam e nos equilibram. Esse ‘circuito’, contudo, é a base, a essência, a própria alma celta – sem ela, todo o resto corre o risco de ser mera prática sem conteúdo. Busca-se, pelo restabelecimento desse ‘circuito’, a manifestação da ‘aura’ da Alma Celta, como definida pelo filósofo e crítico cultural alemão Walter Benjamin: aquele diferencial aní- Esse 'circuito' [de mico que evoca a valores e conceitos real presença. originalmente celtas] A nós, busca- é a base, a essência, dores da Alma a própria alma celta Celta, fica o con- — sem ela, todo o vite para que resto corre o risco e n c o n t r e m o s de ser mera prática essa “aura ben- sem conteúdo. jaminesca” da Espiritualidade Celta que está “entranhada na malha de sua tradição”, para que sejamos capazes de “emancipá-la de sua dependência parasítica do ritual.” Então, teremos devolvido à Religião Celta sua real natureza de filosofia: não mais um objeto a ser encontrado, mas sim os próprios olhos que procuram. ■ de ze m bro 2016 OPHIUSA
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silêncio. por Morgana da Lusitânia
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oite profunda, o manto da escuridão cobre a terra. No sopé do Tor de Glastonbury aguardamos em silêncio reverente; o frio enregela-nos e pequenas nuvens flutuam no ar parado a cada expiração. À nossa volta, pequenos animais começam a sua busca nocturna por alimento, e uma leve brisa agita a folhagem. Somos envolvidos pela força poderosa dos grandes Carvalhos Ancestrais que, quais sentinelas atentas, protegem e guardam a entrada. Suavemente, o Tambor começa a tocar em sintonia com o Coração da Terra. Odores de folhagem em decomposição, em conjunto com o odor da terra húmida que pisamos, preenchem-nos a cada inspiração, unificando-nos com aquela Força imensa que nos rodeia. Crescem-nos raízes, os nossos corações batem ao ritmo do Tambor, ao ritmo do Coração da Terra; sentimo-nos crescer enquanto o Awen corre à solta acima de nós,
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debaixo de nós, à nossa volta. Sentimo-lo tornar-se no sangue que nos corre pelas veias, enquanto a grande Linha do Dragão pulsa em sintonia connosco. Por detrás do Monte Sagrado surge Artémis em todo o Seu esplendor, envolta no manto prateado de uma fabulosa Lua Plena. A uma só voz entoámos o Awen! As lágrimas corriam pelos rostos de todos aqueles que viviam esses momentos de Magia absoluta, enquanto uma chuva da mais pura energia nos envolvia. E crescemos, crescemos, em direcção ao Infinito; éramos mais sete grandes Carvalhos que guardávamos o sopé do Tor. Plenos de energia, reverenciámos os Quadrantes e saímos em silêncio, renascidos, fortalecidos e com a Alma em êxtase. No dia seguinte era tempo de voltar a Portugal, mas a Alma, essa, continua a entoar o Awen, algures na Velha Albion. Awen! ■
A colheita ao luar A — o mistério do orvalho virgem
por Isa Baptista
“Não há outro mistério para chegar a esta iniciação, senão mergulharmos mais e mais até às profundezas do nosso ser e não esmorecer até que tenhamos alcançado a raiz viva e vivificante, e a partir de então todos os frutos que gerarmos segundo a nossa espécie produzir-se-ão em nós e fora de nós, como acontece com as nossas árvores terrestres que estão vinculadas à sua raiz primordial e constantemente lhe extraem os sucos” — Louis-Claude de Saint-Martin
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oram várias as civilizações que atribuíram valor à hora ou momento do dia em que eram colhidas as plantas para preparações medicinais. Fases da lua, constelações ou marcos solsticiais e equinociais eram frequentemente tidos em conta na época das sementeiras ou das colheitas e, por vezes, crenças ainda mais específicas e detalhadas eram aplicadas à recolha de elementos para elixires medicinais. A ideia de que a mandrágora só poderia ser apanhada na lua nova ou de a colheita das azeitonas ser ideal quando feita ao luar e as temperaturas são mais
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Fases da lua, constelações ou marcos solsticiais e equinociais eram frequentemente tidos em conta na época das sementeiras ou das colheitas e, por vezes, crenças ainda mais específicas e detalhadas eram aplicadas à recolha de elementos para elixires medicinais.
baixas (o que favorece a presença de todos os aromas e sabores destes frutos) pertence a um leque de tradições que se foram perdendo a partir de meados do século XIX, altura em que estas abordagens começaram a ser encaradas como meras superstições. Contudo, todas estas referências são conteúdos preponderantes preservados na misteriosa arte da espagíria ou alquimia vegetal e em algumas vias já pouco praticadas de herbalismo medicinal, as quais contam com almanaques e calendários que podem seguir várias tradições distintas, tal como outrora. Um dos costumes mais interessantes e antigos passa pela recolha de orvalho para ser utilizado em poções medicinais. Era um ritual tradicionalmente praticado por várias tribos celtas do norte e centro da Europa e obedecia a determinadas especificidades, nomeadamente o baptismo lunar que deveria ser feito por uma lua crescente ou preferencialmente cheia: o lençol que era estendido por sobre
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as ervas e árvores deveria ser de linho branco e a recolha propriamente dita ficava em muitos casos a cargo de mulheres virgens, que poderiam encontrar-se descalças, em nudez parcial ou total. Esta prática estava intimamente associada à pureza necessária para manter a qualidade do orvalho e deveria ser levada a cabo antes da aurora, pois o sol alteraria as propriedades desta condensação atmosférica. Consta que os elixires feitos com a utilização da orvalhada detinham intrigantes propriedades que seriam posteriormente potenciadas pela exposição a determinadas fases lunares ou pela colocação junto de plantas, pedras ou gemas com atributos únicos. Algumas poções medicinais poderiam ser também enterradas em ânforas junto às raízes de árvores sagradas, menires ou nascentes associadas a seres elementais específicos. Poucas reminiscências restam desta tradição. Contudo, a mística associada ao herbalismo tradicional tem em conta aspectos muito semelhantes que têm vindo a ressurgir localmente um pouco por todo o mundo, invocando eras distantes enquanto celebram o mistério da redescoberta... Uma viagem à alma da Natureza vivente... ■
EN DO VÉ LI CO O iniciado e a divindade tópica por Gilberto de Lascariz
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ndovélico tem sido a divindade tópica lusitana que mais tem atraído o interesse da comunidade pagã em Portugal. Não só pelo carácter especial da paisagem envolvente de seus santuários, que se poderia definir como um verdadeiro espaço geosófico, como pela persistente escolha destes lugares para ocupação de carácter religioso e funerário, desde os grupos de antas de estrutura cistóide de Lucas aos santuários
rupestres de Poio Grande e de Rocha da Mina até ao Santuário de S. Miguel da Mota, este de génese romana e posterior utilização cristã. Trata-se de lugares em que a própria toponímia apela para a presença da Luz, dos quais a ribeira de Lucefecit é, provavelmente, a mais interessante. A toponímia como nomeação de pertença a um Númen residente do lugar, como o sufixo supõe, é muitas vezes impregnada pela presença e memória de ze m bro 2016 OPHIUSA
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Andevélico
do Anima Loci. É pelas palavras que nomeiam o lugar, quando elas advêm das raízes ônticas e memoriais do povo e não de uma funcional deliberação política e administrativa, que se manifesta muitas vezes essa entidade tópica e supra-sensível conhecida por Númen Tópico ou Anima Loci. Trata-se de uma vasta área santificada pela forte presença funerária e as propriedades mágicas de seu solo xistoso que propiciam a vocação desta paisagem geosófica para a comunicação com o suprasensível, em especial a sua dimensão avernal. Isso deve-se, segundo os praticantes de magia ctónica, às propriedades dos componentes cristalinos de quartzo presente nos xistos. Entre praticantes de Bruxaria Tradicional Britânica, que mantêm vivas desde o séc. XVII, pelo menos, práticas rituais consistentes de interacção com os Deuses pré-cristãos, tem-se constatado a importância das paisagens xistosas para a comunicação esA mesma Divindade piritual com as expressa-se, muitas divindades ctóvezes, através de nicas e avernais. múltiplas e diferentes Compreende-se, faces e epifanias aeónicas e é necessário assim, a razão da preferência perguntarmo-nos dos povos megahoje qual será a epifania de Endovélico líticos britânicos
no tempo histórico em que vivemos.
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para sepultar os mortos e elevar as suas necrópoles em solos xistosos. Segundo a Tradição o xisto é da natureza do elemento terra, contendo propriedades especiais de condutores com o mundo ctónico tanto em trabalhos psíquicos como mágicos1 , sendo usados ainda hoje como lugares preferenciais de trabalho necromântico em covinas britânicas. No meu livro Deuses e Rituais Iniciáticos da Antiga Lusitânia2 propus uma nova ideia de Endovélico como sendo uma divindade de natureza dupla, jânica, sob a duplicidade teonímica de Andevélico, o Senhor do Florescer e o Endouelico, o Muito Bom ou Onobolicus, o Negro, outra sua designação, contendo simultaneamente uma faceta diurna e nocturna representadas através da Palma e do Javali. Se bem que muitas das eclosões fortuitas de Neo-Paganismo Étnico surgidas em Portugal tenham usado a área rupestre de fundo inspiratório Endovélico do Alandroal como núcleo geosófico de sua referência espiritual e se tenham esforçado, também, por interpretar e limitar essa experiência a um conjunto restrito de elementos canónicos no seu trabalho litúrgico, inspirados a maior parte das vezes nas especulações arqueológicas, ela tem sido feita com uma preocupação tipicamente religiosa e de mera
DRACO, Melusine, “Spirits and Deific Forms”, in Hands of Apostasy. Oakland: Three Hands Press, 2014, p. 118. 2 LASCARIZ, Gilberto, Deuses e Rituais Iniciáticos da Antiga Lusitânia. Sintra: Ed. Zéfiro, 2009, pp. 93-131. 1
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é a Gnose, que se coloca na minha As tentativas de criar opinião o inteum culto religioso à resse do fenóvolta de Endovélico só meno esotérico têm sentido quando de Endovélico. É este é compreendido preciso lembrar, à luz de Endovélico contudo, que como Divindade dos as tentativas de Mortos, isto é, como criar um culto um Culto aos Mortos e religioso à volAncestrais e não como ta de Endovélico Divindade da Natureza, só têm sentido como se tem feito. quando este é compreendido à luz de Endovélico como Divindade dos Mortos, isto é, como um Culto aos Mortos e Ancestrais e não como Divindade da Natureza, como se tem feito. Na verdade, a faceta de Endovélico como Divindade redentora pela Primavera, associada ao termo Andevélico, deve ter-se referido provavelmente não à fertilidade ressuscitadora dos solos, aqui impróprios para a agricultura, mas à redenção eleusínica post-mortem. Porém, poderá perguntar-se como será possível conciliar ou mesmo compreender esta relação de Endovélico aos Mortos face à perspectiva esculapiana defendida por Leite de Vasconcelos e que se revê na natureza xamânica e visionária da incubatio defendida posteriormente pelo arqueólogo Manuel Calado. Isso só se pode compreender diante do facto mitológico conhecido sobre Esculápio: o facto de ele ter o poder de trazer os mortos de volta à
Endouélico
devoção. Há uma outra perspectiva de abordagem a esta questão: a mistérica e iniciática. É aqui, como em todos os Mistérios, que predomina a dimensão ctónica e infernal de Endovélico. A preocupação deste Neo-Paganismo tem sido a de estabelecer um Culto religioso e a médio prazo uma Religião Pagã. A minha é a de explorar as virtualidades iniciáticas deste mitema Endovélico através de processos gnósicos inspirados na Bruxaria Tradicional Britânica. No primeiro caso trata-se de descer à fonte da devoção colectiva passada praticada no lugar, muitas vezes reinterpretada à luz da estatuária e das suas analogias formais com outros cultos dos quais temos informações mais detalhadas, como o dos celtas e dos tartessos. Contudo, no segundo caso opta-se sempre por entrar visionariamente no núcleo transpessoal de poder sapiencial subjacente à figura Endovélico através de técnicas mágicas e gnósicas. Foi nesta última perspectiva e operatividade que o presente autor abordou no contexto de um grupo pequeno e fechado o fenómeno mistérico de Endovélico. Foi com perplexidade, também, que descobri práticas de abordagem semelhante feitas anteriormente por membros do extinto Movimento Nova Era, do qual emergiu uma prodigiosa documentação de carácter revelatório e místico. É, assim, na perspectiva dos Mistérios, cuja quintessência
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vida. Entenda-se os mortos não pelo uso comum da palavra, mas como referência ao Iniciado. Mas, também, como referência ao sonho, a essência gnósica da incubação esculapiana, que na Antiguidade era considerado como sendo o equivalente da experiência da Morte. A Verdade depende da perspectiva do tempo histórico em que vivemos. Mais do que nunca é necessário, por isso, pensar a Tradição Esotérica como uma transmissão ahistórica, interior e vertical, em vez de uma transmissão linear, horizontal e superficial. Símbolos, ritos e doutrinas são apenas guias A mesma Divindade provisórios e a expressa-se, muitas parte exterior vezes, através de das Tradições. múltiplas e diferentes Enquanto transfaces e epifanias aeónicas e é necessário missão vertical vivificada pela perguntarmo-nos experiência inhoje qual será a epifania de Endovélico terior, a Tradição exige permano tempo histórico nentemente um em que vivemos. encontro consciente de natureza supra-sensível e gnósica com a fonte transpessoal de onde emana essa mesma Tradição. Ela exige a todos os Iniciados ousados que a desejem que tenham a capacidade anamnésica de penetrar no Mundo Imaginal e na Memória do Lugar, isto é, uma capacidade de sair de si mesmo, de suas limitações e contingências históricas e beber da fonte eterna onde os Deuses tecem 20
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o Destino. A mesma Divindade expressa-se, muitas vezes, através de múltiplas e diferentes faces e epifanias aeónicas e é necessário perguntarmo-nos hoje qual será a epifania de Endovélico no tempo histórico em que vivemos. Não vivemos no Passado, na época em que viviam os lusitanos, mas no Presente. Cada Presente é um estado fracionado de tempo num continuum infinito. O Presente é uma coagulação ilusória no estreito e comprimido estado consciencial do espaço-tempo. Cada Momento está condenado a repetir o fluxo histórico dos impulsos eternos presos na contingência linear de tempo. Contudo, cada Momento, quando vivido como Eterno Agora, tem a propriedade de nos fazer sair do tempo histórico e entrar no Centro Essencial e Primordial, fonte eterna de todas as faces e máscaras deíficas. Assim, a verdadeira Tradição é como a água que corre permanentemente na ribeira de Lucefecit. Num
período de espaço-tempo de sua vida ela desaparece debaixo do solo condenando-o à aridez e à morte permanente, regressando ao mundo ancestral e subterrâneo, deixando apenas resquícios de sua presença à superfície, mas outras vezes ergue-se abundantemente de sua profundeza abissal alimentando as suas margens. Este fluxo e refluxo perpétuo do rio lucefecitiano espelha a figura do próprio Endovélico na sua duplicidade de Deus Negro e Bom e de Deus do Luminoso Florescer. É necessário para o Novo Paganismo que renasce historicamente no centro do presente momento histórico, caracterizado tanto pelo frio cepticismo científico como pela mais abjecta vassalagem à superstição religiosa, criar novos ritos. Não já de mera reverência e vassalagem aos Deuses, que devem ser entendidos como facetas primordiais inconscientes de nossa natureza eterna expressa na multiplicidade polissémica do mundo, mas de comunhão gnósica com es-
© Joel Marteleira ses Princípios ou Deuses interiores, isto é, infernais. É necessário, também, que esses ritos nasçam não a partir de criações racionais feitas através de sucessivas colagens de outras práticas religiosas antigas, uma espécie de É necessário para o bricabraque para Novo Paganismo [...] entretenimento criar novos ritos. Não mental, como te- já de mera reverência nho encontrado e vassalagem aos no folclore re- Deuses [...] mas de ligioso criado à comunhão gnósica volta de Endové- com esses Princípios lico, muitas vezes ou Deuses interiores, patrocinado por isto é, infernais. É agentes políticos necessário, também, locais como fer- que esses ritos nasçam mento recreati- [....] de uma prospecção vo que leveda a interna e um encontro estupidificação supra-sensível e a superstição, transpessoal que gere mas através de uma nova corrente uma prospecção de Iluminação no interna e um en- presente séc. XXI. contro supra-sensível transpessoal
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que gere uma nova corrente de Iluminação no presente séc. XXI. É necessário que a criatividade ritual nasça de dentro para fora, das profundezas da alma de cada Iniciado capaz de sonhar e sentir através de recolhimentos visionários típicos da incubatio tradicional, como parece estar indiciado, segundo Manuel Calado, na morfologia arquitetónica do Santuário de Rocha da Mina. A função dos Santuários não é a mesma dos Templos, onde se oficiam os ritos colectivos de apelo à Divindade, mas de um lugar íntimo de vivência osmótica com a Divindade. A Divindade deixa expressa a sua Potestas na geotipologia sagrada de seu Santuário. Ela marca esse lugar com a sua Face. Se há uma face da Divindade característica dos antigos santuários rupestres é a de ser sempre caracterizada pelo isolamento no espaço selvagem e não domesticado. Enquanto o Templo é dirigido ao ofício religioso público e implorativo, o Santuário é dirigido ao indivíduo isolado ou ao pequeno grupo. A apropriação destes lugares por formas nefastas de celebrações caricatas com carácter de mero espectáculo recreativo serve apenas as forças da inércia e da entropia espiritual, drenando a força telúrica e epifânica destes lugares sagrados. As zonas dos Santuários do Alandroal são os pontos fortes, isto é, os marmas de toda esta área geosófica, mas não os únicos, onde é 22
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possível aceder, quando o corpo e a mente são colocados na posição e atitude própria da receptividade hipnagógica, a níveis não conscientes da memória ancestral do lugar. Nas minhas experiências em vários pontos da Europa, tanto aqueles que são conhecidos pelos historiadores como lugares onde a tradição coloca fenómenos visionários típicos dos mitemas sabáticos ou outros lugares menos conhecidos e comunicados apenas entre Iniciados, constatei que estes pontos fortes da paisagem sagrada se definiam pela propriedade de induzir a parahipnagogia e a hipnagogia visionária, onde é possível passar do nível lúcido e racional para os níveis supra-sensíveis de realidade perceptiva caracterizados como extra-sensoriais. O Santuário da Rocha da Mina é um desses lugares. Ele promove a experiência de hipnagogia visionária e alucinatória, aquilo que o esoterista Andrew Chumbley chamava a “Quarta Estrada”, em quem tem as qualificações onirosóficas para as receber. O que que venho propor aqui é, também, a necessidade de começar a ver e conhecer Endovélico a partir de um encontro íntimo e solitário com a sua Potestas e desprender-nos, até mesmo ignorar, todo o folclore teatral que vem sendo sedimentado endemicamente à volta dos dois santuários dedicados a Endovélico. Endovélico, na sua dupla acepção de Divindade ou Princípio Espiritual viajando e abraçando
ciclicamente o mundo da obscuridade e da claridade, significa que ele rege a função mercurial e hermética de unir as duas naturezas inconciliáveis presentes na maioria dos seres cegos e profanos. Ele liga e une a dimensão humana, racional e empírica, com a dimensão espiritual, gerando a experiência de conhecimento sapiencial e imaginal. Ele é, num outro sentido, o exemplo do verdadeiro Iniciado, aquele que tem um pé na Terra e outro no Céu e que a ribeira Lucefecit, verdadeira serpente ondulando por entre fragas e vales, também representa ao abraçar, tal como Endovélico, todas as polaridades sem a nenhuma delas se entregar e a todas transcender. A Luz que Endovélico anuncia não é, assim, a das religiões dualistas do velho ciclo aeónico. A luz do velho ciclo aeónico não é a Luz Hermética pois afirma-se constantemente à custa da ruptura e separação das forças atávicas e onirosóficas, da carne espiritualizada, representadas pelas Trevas, mas essa Luz trazida por Endovélico, a Luz Negra do Antigo Paganismo prometeico e sapiencial que nasce da união da Luz e das Trevas. Trata-se de uma outra Luz, a da Gnose Ofídica, que todo o lugar referencia sob a forma de expressões daimónicas como Lucefecit e Azevel. Endovélico não é, por isso, assimilável ideologicamente ao corpus litúrgico cristão, como tem sido feito através de apropriações teóricas delirantes de fundo nacionalista
identificando-o com o Arcanjo Miguel e S. Jorge. Endovélico, na sua A única comu- dupla acepção nidade esotérica de Divindade ou que fez uma pro- Princípio Espiritual funda incursão viajando e abraçando espiritual nas ciclicamente o mundo forças arcaicas da obscuridade e da deste Lugar foi, claridade, significa na minha opi- que ele rege a nião, o Movi- função mercurial e mento Nova Era. hermética de unir Esse Movimento, as duas naturezas note-se a natu- inconciliáveis reza de fluxo e presentes na maioria corrente da pala- dos seres cegos e vra que rejeita a profanos. [...] Ele é, fixação ideológi- num outro sentido, o ca tão típica do exemplo do verdadeiro Velho Aéon, de- Iniciado, aquele que senvolveu dentro tem um pé na Terra de uma comuni- e outro no Céu. dade fechada e secreta uma nova Visão do Processo Espiritual através de uma Teurgia experimental onde imperavam símbolos como o Galo, o Dragão e o Mensageiro Verde, desencadeando uma nova força de transformação espiritual associada aos lugares sagrados de Endovélico. Terá sido, sem dúvida alguma, a única organização, na minha opinião, que terá tocado mais profundamente as forças arcaicas do espaço geosófico do Alandroal e delas bebido novos impulsos mágico-espirituais neste oceano de grupos pagãos onde se privilegia apenas o superficial e o teatral. ■ de ze m bro 2016 OPHIUSA
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EIST EDD FOD Eisteddfod — palavra da língua galesa que significa literalmente "estar sentado", isto é, um momento dos encontros dos Druidas em que se escuta o canto ou a declamação dos Bardos, para despertar a nossa alma e o nosso coração.
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A CANÇÃO DE AMERGIN Eu sou um veado de sete pontas, Eu sou uma corrente ampla na planície, Eu sou um vento nas águas profundas, Eu sou uma lágrima brilhante do sol, Eu sou um falcão no rochedo, Eu sou belo entre as flores, Eu sou um deus que incendeia a cabeça com fumo, Eu sou uma lança guerreira, Eu sou um salmão no lago, Eu sou uma colina de poesia, Eu sou um javali destemido, Eu sou um ruído ameaçador do mar, Eu sou uma onda do mar, Quem senão eu conhece os segredos do dólmen em bruto?
Segundo a História Mítica da Irlanda, o “Povo de Mil” (ou os Milesianos), originário da extremidade ocidental da Península Ibérica, invadiram a Ilha Verde em 1.268 AEC, derrotando os Tuatha Dé Danann (o “Povo da Deusa Dana”). Diz-se que o seu grande bardo Amergin, ao tocar no solo após as inúmeras tribulações marítimas que lhes foram impostas pelos Tuatha Dé Danann, cantou este poema épico. O autor Robert Graves viu na Canção de Amergin uma codificação do calendário celta, atribuindo cada linha a um período determinado do ano. (Tradução e Nota: Alexandre Gabriel)
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A MINHA CANÇÃO Eu sou filha da floresta, Eu sou filha do mar, Eu sou uma carícia alegre do vento, Eu sou um carvalho com mil anos, Eu sou o calor do sol, Eu sou um dos mistérios da lua, Eu sou uma coruja profética na noite, Eu sou a visão perspicaz de um corvo feroz, Eu sou um veado sábio, Eu sou um javali selvagem protector, Eu sou um lobo pelo meu clã, Eu sou um rio que corre livremente, Eu sou música e poesia, Quem conhece os segredos da alma humana? Quem lê a verdade nas cartas e nas pessoas? Quem protege as causas mais dignas? Quem faz amigos entre animais e plantas? Quem se esforça para trazer a iluminação aos outros? Quem é uma onda no Mar? Eu sou, na Floresta, uma árvore. Ana Simões
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CONTRA-LUZ Por agora tens que descansar. Por agora tens que vergar a tua vontade e descer à câmara escura onde se suspendem todos os sentidos e permanece apenas aquela saudade lenta e incómoda do movimento. Pois agora é o momento de descansares o corpo para libertares a mente, e como nos céus, os teus movimentos são cada vez mais estacionários. Mínimos. Primários. Fetais. Faz conforme te foi instruído. Abraça o Inverno. Faz-te Inverno. Por agora tens que te entregar a esse silêncio perturbador da câmara de onde a luz parece esvair-se a cada dia que passa. Irreversivelmente, dirias. Sentes medo. A escuridão é imensamente maior que tu, que os teus planos, que as tuas rotinas. Ela determina o teu tempo e termina os teus tempos. Ela revela todas as tuas sombras. Dolorosas. Julgas ouvir vozes, alucinações várias que chegam através de ti mas não te pertencem. Revoltas-te. Recusas fazer o luto. Como seria de esperar, a negação é sempre a primeira fase do processo. Mas faz conforme te foi instruído. Aceita o Inverno. Faz-te Inverno. Por agora precisas de parar por inteiro e conservar energias. O pior do frio está ainda por chegar, e vais precisar de todas as tuas forças para enfrentar os rigores do tempo de todos os silêncios. Do silêncio em que estás semeado para um dia renasceres em carne viva e espírito desperto. Vais precisar de enfrentar os gritos que te chegarão da tua própria alma, mais claros que nunca, e estar a postos para a aparição de onde poucos conseguiram sair vivos e sãos. Faz conforme te foi instruído. Escuta o Inverno. Faz-te Inverno.
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Do grito da tua alma discernirás um chamamento capaz de trazer de volta o próprio Sol como os rebanhos aos campos. Na câmara escura terás a visita de um pequeno raio de luz que aos poucos banhará a tua fronte, o teu rosto, depois o resto do teu corpo, depois a sala inteira. Não reconhecerás o teu ambiente à primeira vista, e depois verás que tu mesmo mudaste de forma. És outra pessoa, de sobrolho radiante e lábios proféticos. A promessa cumprir-se-á. Tudo porque te fizeste Inverno. À saída, encontrarás um mundo muito diferente do que deixaste no fim do Verão. Poderás sentir uma certa confusão. Poderás não perceber o que foi feito dos montes que agora são vales, sentir que o firmamento se fez oceano e o mar foi sugado pelo céu. E o ar irrespirável, parco combustível para a chama que trazes em ti. Mas persiste. Nem o mar nem a terra nem o ar passarão sem que a roda gire uma e outra vez, até que cada ser encontre a sua nota na Grande Canção de todas as coisas. Então saberás que nada foi por acaso na tua caminhada: o primeiro convite, os sinais, a câmara escura, a manhã seguinte. Então terás que continuar a fazer-te Inverno até que a luz se cumpra por inteiro. Pois que ela nunca tarda em chegar, e enquanto houver sombra no mundo, chegará sempre. A luz invicta. O Sol que em ti habita e irradia para toda a Humanidade. Fábio Barbosa
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ALBAN ARTHAN O momento ansiado que há tanto aguardava Acabou por chegar neste Alban Arthan Foram tempos em que a vida me moldava Em que me destruir tentavam Nesta nova roda do ano que agora se inicia Nesta nova era que agora tem o seu preâmbulo Vejo o caminho em frente que tanto me auspicia Mas ainda não é mais que um vestíbulo Abrindo a porta que os Deuses me oferecem Em paz e segurança atravesso a sua ombreira Uma imensidão de luz em mim se projeta Para que não haja sombras na minha ladeira José Alexandre Frazão Matos
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CÂNTICO DE ALBAN ARTHAN Que haja sempre fogo nas vossas lareiras E alimento na vossa mesa. Quando a escuridão cobrir a terra, Que a luz dos vossos corações seja candeia acesa. Que a vossa vida renasça Das cinzas do tempo escuro. Que arda a Tora de Yule, tornando o Caminho seguro. Que o Ancestral Carvalho durma em paz, O sono profundo que regenera. Guardando em seus braços o Dourado Visco Enquanto aguarda a Primavera. Que o Nobre Druida erga então a sua Foice E no silêncio profundo do bosque adormecido, Colha a Erva Sagrada com sábio recato Reverente, respeitoso, agradecido. Que o Bardo erga a sua voz na noite escura, Contando histórias de nevões e temporais. Contando lendas e entoando canções De tempos idos e de Deuses Imortais. Da sua Harpa afinada com desvelo, As notas puras dedilhadas com destreza Voam no vento, gentis, harmoniosas, Eco mágico da Harpa da Natureza. E quando a Deusa der à Luz a Criança da Promessa Na noite mágica que um ciclo encerra. Que o solo emprenhe de gado e semente, Espalhando abundância por toda a terra. Feliz Alban Arthan. Morgana da Lusitânia de ze m bro 2016 OPHIUSA
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Eisteddfod O S Q UAT R O EL EM EN T O S Eu sou a Terra por onde os vossos pés caminham, Sou o solo que vos sustenta, Sou guardiã do passado longínquo, Do mundo áugure e pétrea profeta Quem senão eu vos poderá suportar? Quem senão eu vos dará abrigo e aconchego? Quem senão eu vos impedirá de cair no abismo sem fim? Eu sou a Água que vos sacia a sede, Sou mar, fonte, e sou nascente, A vós vos purifico, A vós me entrego de coração aberto Quem senão eu fará fluir o rio do sentimento? Quem senão eu vos dará força e tranquilidade? Quem senão eu será um espelho do Céu? Eu sou o Ar cujo infinito horizonte a vossa vista contempla, Canto aos homens e neles insuflo a sua Alma, Para que possam cantar o Verbo, como eu. O Sopro das alturas é nuvem, é mar, é Céu Quem senão eu fará falar as árvores? Quem senão eu assoprará nas montanhas? Quem senão eu vos abre o pensamento? Eu sou o Fogo que aquece todo o vivente, Enquanto ardo, sou fogueira que vos acalenta e afasta o breu, Vela que ilumina as vossas meditações silenciosas, Espada de Luz que vos revela a Verdade! Quem senão eu queima o que deve ser queimado? Quem senão eu vos liberta do que é desnecessário? Quem senão eu vos acalenta e aquece a Alma? Alexandre Gabriel 32
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S AU DA Ç Ã O A O S Q UAT R O A Grande Ursa É o Útero da Terra A viagem à escuridão profunda, O Salmão voa Com Sabedoria p´las águas Rumo à morte Predestinada, O Falcão paira, Flutua No imenso Mar Suspenso, E aquele Ser nocturno, De focinho pontiagudo Ergue as presas Ao luar, Nele corre o Fogo Como lava escorrendo Na ebulição Do (Re)nascimento. Ollem
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TRÍ DE
Três coisas que crescem constantemente: a luz; a vida; a verdade.
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Eventos Fevereiro Dia 4 | 19h30 | Casa do Fauno, Sintra Palestra A Roda do Ano Celta - Imbolc com José Alexandre Frazão Matos.
Abril
Dia 18 | 14-18h | The Hamblin Trust, Bosham, Reino Unido Tertúlia Are you Spiritual or Religious? com Philip Carr-Gomm. 29 Abril - 6 Maio | Borgonha, França Assembleia de Beltane organizada pela OBOD França por ocasião do tricentenário do renascimento druídico, com a presença de Philip e Stephanie Carr-Gomm. Contactos: saille.tuteur@yahoo.fr
Blogues Recomendados O Bosque do Javali obosquedojavali.blogspot.com Do brasileiro Endovelicon. Um caminho celta para o século XXI.
Under the Ancient Oaks www.patheos.com/blogs/johnbeckett/ Reflexões de John Beckett, autor, druida e politeísta.
Fábio Barbosa fabiobarbosa.net/blog Pensamentos sobre a espiritualidade e a chamada "vida mítica".
Philip Carr-Gomm www.philipcarr-gomm.com/blog O blogue oficial do Chefe Escolhido da OBOD. de ze m bro 2016 OPHIUSA
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Última
Estamos já a preparar o próximo número da Ophiusa, e contamos com a vossa colaboração! Como é o vosso druidismo? O que faz a diferença na vossa prática no dia-a-dia? Sobre que tema gostariam de falar? O próximo número sai em Fevereiro — Imbolc no hemisfério Norte, Lughnasadh abaixo do Equador. Como vivem estas estações? Por que novos começos estão a passar nas vossas vidas? Quais as colheitas com que este último ano vos presenteou? Participem. Esta revista é vossa.
Os textos para publicação têm um limite máximo de 1000 palavras. Pedimos que quaisquer fotografias ou ilustrações sejam fornecidas em máxima resolução. As propostas para publicação devem ser enviadas para o endereço de e-mail ophiusa@obod.com.pt 36
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