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Terra demarcada com sangue Xakriabá

x Domingos Nunes

Cacique Xakriabá

“Meu pai falava que preferia ser adubo dessa terra, mas não abandonaria a luta. Com seu sangue derramado, ele realmente serviu de adubo. Nosso território ficou livre, porque em seguida veio a homologação.”

¬ SÃO JOÃO DAS MISSÕES Primeiro, tiros no meio da madrugada. Depois, outro barulho ainda mais estarrecedor. “Escutei o tombo do meu pai caindo atrás da gente”, conta Domingos Nunes de Oliveira, 49. Naquele dia, 12 de fevereiro de 1987, ele viu o pai, Rosalino Gomes de Oliveira, ser assassinado por posseiros, viu o irmão de 11 anos ser obrigado a arrastar o corpo, e a mãe grávida ser baleada com sua irmãzinha de 2 anos nos braços. Outras duas lideranças foram mortas.

O menino, que na época tinha 12 anos, hoje é o cacique do povo Xakriabá, que só conseguiu regularizar a posse de parte das próprias terras debaixo do sangue derramado. “Meu pai dizia que preferia ser adubo do que abandonar a luta. E ele foi, pois, a partir dali, nosso território ficou livre, porque em seguida veio a homologação. A morte desses guerreiros não foi em vão”, conta o cacique.

Domingos lembra que, no dia do massacre, cerca de 15 pistoleiros invadiram as terras da família, na época conhecida como Aldeia Sapé, hoje chamada de Itapicuru, em São João das Missões, no Norte de Minas. Rosalino Gomes, então com 42 anos, lutava pela regularização do território, desagradando a fazendeiros, posseiros e grileiros. A demarcação de parte desse território já tinha sido feita pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) em 1979. Mas faltava a homologação para garantir o reconhecimento e retirar os não indígenas. “A alegação era que não tinha dinheiro para as indenizações. Mas, depois do massacre, o dinheiro apareceu”, conta Domingos. A homologação foi assinada em 14 de julho de 1987, cinco meses depois dos assassinatos.

OUTROS GUERREIROS . Dona Nena, 64, também viu de perto o massacre. Ela era casada com Manoel Fiúza da Silva, cunhado de Rosalino. “Naquela madrugada, ele ouviu os tiros e falou: ‘Tá acontecendo alguma coisa na casa da minha irmã’. Ele saiu. Fui atrás, e ouvi ele dizer: ‘Não atira, seu Amaro, tenho quatro filhos para criar’. Então ouvi: “É para você aprender a tomar terra dos outros’”, lembra dona Nena. O marido ainda conseguiu se levantar e contou quem tinha atirado.

Os irmãos tentaram levá-lo para o hospital. “No caminho, o pneu do carro furou. A gente encontrou com outro irmão. Manoel olhou para ele e falou: ‘Não chora, porque eu já tô morto’. Aquela foi a conversa derradeira”, lembra José Fiúza, que é liderança na aldeia de Itapicuru, onde ocorreu a chacina.

Outro parente da família, José Pereira Santana, que morava na casa de Rosalino, também foi assassinado. No dia seguin- te, os três corpos foram sepultados ali mesmo, onde estão até hoje. Mais ou menos dois meses depois da tragédia, dona Nena perdeu a filha bebê, de 6 meses, em um acidente de carro. A criança está enterrada no mesmo local, ao lado das lideranças dizimadas. “A gente tem esse espaço como sagrado. É palco de luta do nosso povo no passado. Todo ano, no 12 de fevereiro, a gente faz aqui um momento de reflexão”, afirma o cacique Domingos. A arqueóloga e historiadora Alenice Baeta, do Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva (Cedefes), explica que infelizmente esse massacre não é um caso isolado.

“Muitos mártires indígenas já derramaram seu sangue lutando pela terra. O Rosalino é um herói indígena em Minas Gerais que dei- xou muitos frutos e exemplos de resistência”, ressalta. O filho que arrastou o corpo de Rosalino aos 11 anos, José Nunes, foi prefeito de São João das Missões por três mandatos. RIO SÃO FRANCISCO. Agora, a luta dos Xakriabá é pela homologação de outros 43 mil hectares delimitados pela Funai, que vai devolver a eles o direito de viver às margens do rio São Francisco. “Tenho esperança. Rosalino não morreu, ele fez uma viagem que tá brotando e dando frutos que vão produzir coisas boas. Os Xakriabá ainda vão beber água no nosso rio”, diz José Fiúza. Com 12 mil pessoas em 37 aldeias no Norte de Minas, os Xakriabá são o povo com a maior população indígena do Estado.

Retomada teve início em 2006

G O povo Xakriabá tem 96.571 hectares de terra delimitados. Desse total, 53.214 hectares já estão totalmente regularizados. Os outros 43.357 hectares já estão delimitados, mas aguardam homologação. “Os estudos todos já foram feitos. Agora falta só a carta declaratória”, explica Santo Caetano Barbosa. Ele é cacique da Aldeia Morro Vermelho, uma das áreas retomadas pelos Xakriabá.

Com o crescimento da população e sem respostas efetivas do poder público, as retomadas se tornaram a ferramenta de reparação e sobrevivência. “Em 2006, nós saímos da cidade de São João das Missões e viemos para cá, em três fazendas. Eram 45 famílias na época. Foi uma luta muito grande, com muita perseguição contra nossas lideranças”, diz.

Hoje as áreas são reconhecidas como terra indígena, mas a falta da homologação ainda gera transtornos. “A gente já teve vários projetos impedidos de serem implantados aqui, na aldeia, como a construção de um prédio da educação, pois, para levantar uma escola, precisa de legalização da Funai”, explica Santo. (QA)

Direito.

Xakriabá lutam por homologação de 43 mil hectares para poderem viver às margens do Velho Chico

SÃO JOÃO DAS MISSÕES E ITACARAMBI Quem descobriu o Brasil? A resposta que costuma vir tão automaticamente não traduz a realidade indígena. “Na escola, a gente era obrigado a dizer que foi Pedro Álvares Cabral, senão perdia ponto. Mas percebemos que estava errada era a pergunta, que deveria ser: ‘Quem invadiu o Brasil?’”, questiona o cacique do povo Xakriabá Domingos Nunes de Oliveira, 49. Ele lembra que, quando os colonizadores chegaram, os indígenas já estavam lá. E, desde então, vêm sendo obrigados a lutar pela própria terra. E pela água também.

É que, ao longo de séculos, os Xakriabá foram sendo expulsos das margens do rio São Francisco e, agora, lutam para retomar a área que lhes foi tirada por fazendeiros, grileiros e posseiros no Norte de Minas.

“O sonho da gente não é só a terra. É a água também. Hoje, só temos uma nascente aqui dentro, sendo que temos o rio São Francisco limitando com o território. É onde está nossa reivindicação”, ressalta o cacique Xakriabá João Batista dos Santos, 63, que representa as aldeias Vargem Grande e Caraíbas, em Itacarambi.

Agora, a esperança de reaver esse pedaço de terra, e também da água, aumenta. O Ministério dos Povos Indígenas (MPI) já anunciou um pacote de homologação de 14 terras indígenas para este mês de abril. Nenhuma é em Minas, mas a ministra da pasta, Sonia Guajajara, sinalizou que em breve haverá uma nova rodada de homologações. “Sobre as de-

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