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¬ BRUNO MATEUS ENVIADO AO TERRITÓRIO KRENAK RESPLENDOR. Zezão Krenak, 70, navegou por décadas nas águas do rio Doce. Barqueiro por 28 anos, atravessava alunos, moradores e turistas no Uatu – ou Watu –, como o rio é chamado na linguagem Krenak. Ele guarda lindas histórias desse período e ainda sente o sabor do peixe que pescava para comer ou vender. Cascudo era o mais caro, mas a tilápia também tinha bom preço. Certo dia, Zezão escutou o vizinho falando que a lama de Mariana estava chegando. Ele sentiu no coração apertado a maior tristeza do mundo. Em 5 de novembro de 2015, Zezão viu sua vida mudar.

Na tarde daquele dia ocorreu, em Mariana, o rompimento da barragem de Fundão, da Samarco, empresa controlada pela Vale e pela multinacional anglo-australiana BHP Billiton. Dezenove pessoas morreram, e a enxurrada tóxica de rejeitos – cerca de 50 milhões de metros cúbicos de resíduos de mineração – contaminou a vegetação e a fauna do rio Doce, a mais importante bacia hidrográfica do Sudeste. A lama percorreu mais de 600 km até a foz, no Espírito Santo, deixando um rastro de destruição e morte.

O povo Krenak foi atingido com a contaminação e o envenenamento do rio. O que antes era um local sagrado se transformou em tristeza e solidão. Ali, às margens e nas águas do Uatu, os Krenak cantavam e dançavam em celebração a tudo o que o rio representa: fartura, vida, cura, amizade e bem-estar. A relação era de subsistência, mas também sempre foi espiritual. Se a terra é a mãe, o rio Doce era o pai que cuidava, protegia e abastecia. “O rio nos criava. Em tempos de calor, ninguém ficava em casa. Todos iam pescar, conversar. Quando a lama veio, foi uma tristeza só, um choro danado. Tem gente que nem gosta de chegar perto do rio”, diz Zezão, que se recorda da chegada da onda de rejeitos: “Fiquei com a pele ruim, três dias com o estômago embrulhado. A água podre foi subindo, subindo. Água pesada e fedorenta. Eu tinha seis cachorros, eles ficavam comigo no barco e nadavam no rio. Morreram todos. Eu chorava só de lembrar”.

Não há um Krenak sequer que não tenha sido impactado pela agonia do Uatu. “Mataram nosso rio, ele era tudo para nós. Eu também morri, foi como se tirassem tudo que eu tinha. Fiquei de pés e mãos quebrados”, relata João Bugre. Lia Kre- nak, companheira de João há 33 anos, revela sua dor: “Não tem como não se emocionar, né? Hoje, a gente tem até medo de colocar o pé na água”. A neta deles, Sofia, 10 anos, lamenta não poder brincar com as amigas no rio Doce.

“O Uatu é sagrado para nós. Perdemos os peixes e as plantas que a gente tinha na beira do rio. Mas não perdemos a guerra”, avisa Dejanira Krenak, anciã da aldeia. O escritor, ativista e membro da Academia Mineira de Letras Ailton Krenak é só desgosto ao falar das consequências socioambientais da lama da Vale que desceu de Mariana. “É muito triste. Quando você anda pela aldeia, você sente que tem uma densidade ali, tem uma tristeza. E não vai ser com o dinheiro da Vale que essa tristeza vai passar”, anuncia

SAUDADE. A vida de Zezão Krenak mudou muito nos últimos tempos. Há três anos, ele perdeu a visão em função da catarata e espera pelo transplante de córnea. De seis em seis meses,

INDÍGENAGUARDARURAL (1969)INDÍGENA

Empossado no comando do então Serviço de Proteção aos Índios (SPI) em 1966, o capitão Manoel Pinheiro criou dentro da área dos povos Maxakali a chamada Guarda Rural Indígena (Grin), em setembro de 1969, para apaziguar conflitos. Pinheiro usou sua experiência como ex-membro do Serviço Nacional de Informações e do serviço reservado da Polícia Militar de Minas para formar a milícia, originalmente composta por 84 recrutados de aldeias da região. Eles aprendiam táticas de contraguerrilha, investigação e tortura e tinham a missão de manter a ordem em territórios indígenas e impedir o deslocamento para áreas do Estado ou de fazendeiros. No período, houve desarticulação das lideranças, divisões nos grupos locais, denúncias de tortura e favorecimento a posseiros. O Grin foi desmantelado em 1972.

sai de Resplendor e vai a Belo Horizonte para consultas médicas. Zezão recorrentemente sonha que está pescando nas águas límpidas do seu rio Doce. Ele se enche de saudade. Quando desperto, do quintal da casa no território Krenak, o que ouve é o ruído dos trens da Vale que carregam toneladas de minério, sobem e descem trecho cortando as margens do rio que ela envenenou, apitando tantas vezes ao dia. Para Zezão, soa como um alarme para nunca esquecermos de que ali há um rio que morre todos os dias.

Barqueiro Zezão ainda sonha que está pescando nas águas do rio Doce

Rio Doce foi atingido por enxurrada tóxica de lama da mineração

G A situação do Uatu é “um crime que acontece todos os dias desde novembro de 2015”, na avaliação do conselheiro municipal de Saúde de Resplendor, presidente do Conselho Local de Saúde Indígena Krenak e representante da aldeia no Conselho Distrital de Saúde Indígena, Marcelo Krenak. Ele diz que “a falta do rio traz muitos impactos, (pois) aumenta a possibilidade de doenças respiratórias e o consumo de jogos eletrônicos, já que as crianças não têm o rio para brincar”. “Com o sedentarismo, vem o risco de depressão e alcoolismo”, acrescenta. Walison Vasconcelos Pascoal, doutor em antropologia e professor do Instituto Federal de Goiás, publicou, em 2021, na “Ambientes: Revista de Geografia e Ecologia Política”, o artigo “Os Krenak e o Desastre da Mineração no Rio Doce”, assinado também pela professora Andréa Zhouri, do Departamento de Antropologia e Arqueologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich) da UFMG. Ele fez questão de sublinhar que “a história dos povos indígenas em Minas Gerais é marcada a ferro e fogo pelos interesses mineradores” e destacou que a trajetória dos Krenak é forjada na luta: “Cada um deles carrega no próprio corpo o trauma de sua própria história”. (BM)

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