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ISADORA KRIEGER

Poeta e escritora, em 2018 publicou o livro de poemas Explorações Cardiomitológicas (Editora da Casa), suplente no edital de residência artística do SESC em Santa Catarina. Em 2017 publicou a novela O wi-fi da igreja é muito fraco (Editora Urutau). Em 2014 publicou o romance Memória da Bananeira (Carniceria Livros), o livro de poemas O Gosto da Cabeça, na coleção Poesia Menor (Publicações Iara) e a novela Caráter Anal, na coleção Boca Santa (Carniceria Livros). Atualmente trabalha na peça de teatro Amadeleite. Realizou oficinas de escrita em São Paulo, São Carlos, Belo Horizonte e Balneário Camboriú.

[trecho da peça inédita]

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amadeleite

VII Movimento O QUE SENTEM OS TORTURADORES DIANTE DO NASCER DO SOL?

Náusea. Assim? Do nada? É, um baita enjoo. Você comeu alguma coisa diferente? Não que eu lembre. Alguém então? Tá me chamando de viado seu filho da puta? Credo. Foi só uma piada. Chega de papo furado. Vamos prosseguir com o leilão. E sobrou alguma parte que preste do corpo da vagabunda? Que preste, que preste, não. Mas rende um troco. Com o quê? O coração. O CORAÇÃO? É, a gente dá os braços e as pernas de brinde. Acho que nem assim. Vai dizer que você não curte umas coxas. Só se forem grossas. Ah vai, pro cafezinho dá.

(pausa)

Ok, senhores. Leiloaremos o coração da fêmea. CORAÇÃO? Que caralho faremos com um coração? Ok, ok. Os braços e as pernas vão de brinde. Essa eu vou pular. Fico com os braços e as pernas. O coração eu passo. CORAÇÃO? Que caralho faremos com um coração? Senhores, os braços e as pernas são brindes. Não acho justo ter que levar o pacote todo. Essa coisa de coração sempre acaba mal. Verdade. Ainda mais o coração de uma mulher. CORAÇÃO? Que caralho faremos com um coração? Senhores, as regras são claras e precisam ser respeitadas. Alguém tem de ficar com o coração. Por que alguém tem que ficar com o coração? Porque alguém sempre tem de ficar com o coração.

(pausa)

A Senhora que Deu O Último Lance negocia com O Senhor que Deu O Último Lance. Combina o pagamento do aluguel da machadinha: as coxas da Amadaleite que Eles Supõem que Veem. A Senhora que Deu O Último Lance se aproxima da Amadeleite que Eles Supõem que Veem. Tenta decepar as suas pernas. Mas não tem força suficiente. O Senhor que Deu O Último Lance segura a sua mão e lhe ensina a manusear a machadinha: vai mulher, assim, decepa logo! A Senhora que Deu O Último Lance treme: eu não consigo. O Senhor que Deu O Último lance se irrita: Porra! Lá vem vocês de novo. A Senhora que Deu O Último Lance dá um longo suspiro: você não está exausto disso não? O Senhor que Deu O Último Lance gargalha: exausto? Mas a brincadeira está só começando. A Senhora que Deu O Último Lance escuta a Música: a machadinha também é uma ponte. O Senhor que Deu O Último Lance decepa as pernas e os braços da Amadeleite que Eles Supõem que Veem: olha aqui pra que serve a ponte de vocês. A Senhora que Deu O Último Lance sorri: silêncio. O Senhor que Deu O Último Lance arranca o coração da Amadeleite que Eles Supõem que Veem: olha aqui pra que serve o silêncio de vocês. A Senhora que Deu O Último Lance sorri: silêncio. O Senhor que Deu O Último Lance sufoca com o coração A Senhora que Deu O Último Lance: o coração fica sempre com o mais fraco.

[poemas do livro Explorações cardiomitológicas]

*nunca soube ao certo o que fazer com o centro da catedral este monumento magnânimo/ opressor erguido por mistérios e partículas nunca soube discernir o oco da claraboia amar sempre implicou em abrir caixões cheios de espelhos, debruçar-se no impronunciável, atirar-se em poços secos, entrar numa casa na qual os lençóis brancos sobre os móveis não conseguiriam impedir o acúmulo de poeira

todos os dias homens e mulheres ajoelham-se diante dos fachos que emprestando-lhe luz tornam a poeira visível e revelam a sua beleza — os olhos atônitos todos os dias homens e mulheres amam todos os dias homens e mulheres descobrem que a beleza antecede a perda — e não houve sequer um que encontrou nela um cílio de horizonte muitos se suicidaram após tal revelação não sem antes por vergonha e terna cautela assassinarem os próprios filhos enquanto estes dormiam profundamente

todas as noites homens e mulheres se refugiam na posição de feto repudiam as paredes frias do transitório escondem-se debaixo de camas hospitalares empilham garrafas vazias, brinquedos quebrados e compêndios sobre a fatalidade do nada todas as noites e todos os dias homens e mulheres são arremessados uns pelos outros na encruzilhada que não apresenta direções a não ser para o lugar mais inóspito e indesejado: o centro da catedral.

acrobatas cegos criados por algum demiurgo comovido pelo tédio passarão os restos de suas vidas fazendo de absolutamente tudo para ludibriá-lo (ou seja: ludibriarem-se): trabalharão tarde da noite em edifícios comerciais investigarão os confins da célula e da psique elaborarão formas sutis de decodificar o inconsciente serão displicentes com os próprios sonhos

lerão com voz altíssima as parábolas de cristo declararão guerras e mais guerras escreverão grandes romances contarão histórias ao lado de uma pequenina cama educarão crianças - erigirão mais leis para elas reformarão bancos e cartórios assinarão milhões de vezes um vago nome entrarão em casa sem nunca de fato abrirem a sua verdadeira porta menosprezarão as estrelas que contam segredos de galáxias distantes e extremamente próximas dizimarão florestas inteiras por menosprezá-las tramarão contra os irmãos para herdarem as terras dos pais que não amaram — ou que amaram demais darão festas para os filhos desejarem algo antes de apagarem a vela desejarão nunca terem nascido — e, paradoxalmente, desejarão nunca morrer

nunca soubemos ao certo o que fazer com o centro da catedral nunca soubemos discernir o oco da claraboia — precisa amálgama mas sempre haverá dois jovens muito jovens sentados na calçada beijando-se pela primeira vez, enquanto o sol se põe.

“Noite sem luz, velas acessas” Nankin sobre caderno A5. 2015.

*a maneira como morremos diz muito sobre nós (só não diz mais do que a forma como amamos) o pai, por exemplo, morreu sentado na privada a mãe para verificar se estava viva beliscava-se alguém dizia: enquanto houver dor haverá vida.

tu tinhas medo de morrer nas estradas: “os homens úteis e os seus carros”. mas morreste através das próprias mãos. as ameixas secas, as passas e as tâmaras que alinhei indicaram com precisão o caminho até o revólver. alguém dizia: enquanto houver culpa não seremos esquecidos.

soube que a criança morreu atingida por uma cruz exibida no topo da igreja como a bandeira da Redenção Apenas pelo Sofrimento a multidão curvada diante do cristo crucificado. diante do cristo gargalhando, ninguém. ardilosas são as mãos de Deus sobre nós. conforme os homens úteis (e a morte da criança) esta é a Sua forma de amar: Ele também alinha frutas secas. Ele também exalta a culpa. Ele não será esquecido. Ele não será esquecido: alguém repetia.

de que forma amamos? de que forma o pai, a mãe e a criança amavam? e, sobretudo, de que forma tu amavas? a Igreja e o Estado não tem competência para responder tais perguntas vislumbramos vestígios de luz nos pássaros que não se refugiam da tempestade mas as sutilezas têm dimensões muito pequenas até para os que encontraram no silêncio uma forma próxima e concreta de amar.

soube que a criança morreu atingida por uma cruz o pai e a mãe guardaram as suas roupas durante longos anos ele morreu sentado na privada ela para verificar se estava viva beliscava-se alguém doou as roupas dos mortos a um bazar beneficente.

*nunca alguém nos amou tanto quanto O Anjo da Face Invertida repitam comigo quatro vezes o nome de nosso verdadeiro Pai:

Shai'tan, Shai'tan, Shai'tan, Shai'tan.

afinal, o que seria da Criação sem a condição de irromper na superfície com o ar dos próprios pulmões? o obscuro propósito se cumpre de maneira paradoxal: a única sobrevivente ao ataque de serpentes foi a mulher que usurpou do veneno o antídoto. a aldeia a acusou de loucura e charlatanismo. o esposo a responsabilizou pela herpes que devastava o seu pênis. os filhos sugeriram o imediato apedrejamento. a mulher envelheceu na mais completa solidão.

Shai'tan, Shai'tan, Shai'tan, Shai'tan.

há mais generosidade no precipício do que na infância que boia eternamente em alto mar uma criança doente não é mais a mesma criança — nenhum doente é. os doentes veem: cortejos fúnebres de caracóis, velhas benzedeiras derramando mel e sangue de porcos sobre cabeças nuas, bebês sendo empurrados das estrelas por uma gigantesca mão desprovida de amenas linhas, sóis sendo paridos por luas no último suspiro de Ivan Ilitch.

Shai'tan, Shai'tan, Shai'tan, Shai'tan.

mas as famílias mesmo em torno dos seus moribundos insistem: carros, televisores, churrasqueiras e piscinas. repitam comigo quatro vezes o nome de nosso verdadeiro Pai.

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