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FERNANDO MONTEIRO

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SILVANA GUIMARÃES

SILVANA GUIMARÃES

Nasceu no Recife (1949). Um dos principais nomes da chamada “Geração 65”, estreou como poeta em 1973 (Memória do Mar Sublevado, Editora Universitária). Seguiu publicando poemas longos até 1997, dentre os quais o livro Ecométrica — de 1983, publicado por Massao Ohno Editor —, ganhador do prêmio nacional da União Brasileira de Escritores/RJ). Nesse ano, fez a sua estreia como romancista, em Portugal, com o também premiado Aspades, ETs Etc. A seguir, o seu A Cabeça no Fundo do Entulho foi distinguido com o primeiro prêmio de Literatura da revista BRAVO! (1998), e vieram, no anos seguintes, A múmia dourada do Rio de Janeiro, Armada América, O grau Graumann, As confissões de Lúcio. Em 2009 — ano em que foi o Homenageado do 7º Festival Recifense de Literatura — Monteiro retornou ao verso com o poema longo Vi uma foto de Anna Akhmátova, ao que se seguiu Mattinata (2012). O Prêmio Pernambuco da SECULT/CEPE foi reencontrá-lo como romancista, através de O Livro de Corintha, lançado em 2013. É colaborador fixo com coluna (“Fora de Sequência”) no jornal literário Rascunho — de Curitiba — desde 2000. Em 2017, foi o Homenageado da XI Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, ocasião em que lançou a coletânea Contos Estrangeiros de Fernando Monteiro, pela Editora Confraria do Vento (RJ).

dorset

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Dentro do carro, umidade e chuva penetravam com o cheiro de couro velho de alguma parte do interior do veículo avançando na noite para sempre gravada nas paredes de afrescos velados do interior da sua cabeça exposta como a pele de um animal caçado por si mesmo, fantasma de si próprio, assombração de uma história que ficaria para sempre inconclusa entre pequenos buquês humildes boiando nas ondas, enquanto a onda intranquila de desordem amplificava a conquista que também significava nada, não era uma legenda, não havia dourados, cortinas de veludo apertadas por nós de ouro cujo brilho não chegaria, nunca, aos desvãos das tumbas e muito menos às covas rasas abertas para tantos que haviam ficado pela estrada e esperavam apenas pela solicitude da Lua como quem espera uma carícia da amada

O olhar “vazado” se erguera acima dos muros para uma moeda fria refletida longamente na água

Era só isso? Uma sensação de absoluto vazio no meio do triunfo que não importava?

Havia sido loucura, obsessão trazida de pequenas relíquias catadas há muito tempo, tão distante dali quanto era possível e numa atmosfera oposta, de ordem e religiosidade transida de gelo debaixo das pontes da cidade que boiava na infância

Fora considerado “impossível”, porém estava feito, era preciso redesenhar mapas, prosseguir com aquilo, ser como não vinha mais sendo debaixo da antiga roupa – pois não era possível sumir agora e deixar a embriaguez da vazia vitória nas mãos dos anões maculados por onanismo e ressentimento ocultos nas palavras e nos atos hesitantes de “criaturinhas a construir abrigos na sombra Poluta da Tua Dádiva”.

Podia voltar os olhos para as folhas queimadas da vida — essa frase solene; podia aceitar solenidade e apertos de mão demorados para sinalizar que era “muito bom” conhecer alguém numa recepção de taças quebradas pelos sons das bocas que diziam nadas sorridentes entre mesuras e piadas das quais seria de bom tom rir

Mais do que de “bom tom”, o futuro de qualquer um poderia depender do risco de um sorriso adequado no momento certo sob as lianas de flores de mau gosto do quiosque das bebidas de cores indefinidas

O olhar de alguém o confirmaria, havia um código como também vigoravam etiquetas não escritas e que, uma vez quebradas, significariam o expurgo, a discriminação, o fim

Então, desaparecia — voluntariamente desaparecia (e isso não é poesia), o que as pessoas não compreendiam, franzindo o cenho, fazendo um pequeno gesto com as comissuras dos lábios que não terminavam de pronunciar as frases

Qualquer frase alusiva... educadamente (isso deve ser reconhecido), oh, sim, porque a maldição era ser educado e disputar futuros com baixos golpes próprios do modo avião na perseguição das alturas afundadas a prosseguir educado e mau quando era preciso (“muito mau”) por sobre a paisagem lá embaixo: as salas vazias do palácio arruinado longe da Torre do Relógio próximo da qual quis morrer (tentou seriamente) e apenas pegou um resfriado da lama do rio que era realmente nojento

Você não esquece, quando quer morrer

Você não morre, quando quer esquecer

Um dia cheio de frases, versos, sabedorias difíceis e fáceis, um dia de velocidade bom para desaparecer na curva da idade, de maneira que, então, tudo estivesse consumado, evaporado como a fumaça das folhas queimadas

O circo que saiu da cidade. Sua roda na poeira de entulhos por momentos iluminada. Os cães — alguns — que acompanharam os carroções pintados na estrada de névoa que cortava para uma das sete colinas cuja visão havia sido borrada pela noite da longa corrida em busca de nada.

“Diário: Passeio no jardim em frente de casa” Acerola e cola sobre papel A6. 2014. 79

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