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MARIA AZENHA

Nasceu em Coimbra (1945) — Portugal. Licenciou-se em Ciências Matemáticas pela Universidade de Coimbra. Exerceu funções docentes nas Universidades de Coimbra, Évora e Lisboa e na Escola de Ensino Artístico António Arroio. Membro da Associação Portuguesa de Escritores e Membro de Honra do Núcleo Académico de Letras e Artes de Lisboa

Obras: Várias obras individuais publicadas desde 1987, em poesia, destacando as três últimas: — A Casa de Ler no Escuro, Editora Urutau, São Paulo, Brasil (1ª. Edição Esgotada | 2ª Reimpressão, Maio de 2017), finalista do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’ Anna 2017 — As Mãos no Fogo, Escrituras Editora, São Paulo, Brasil — Xeque-Mate, Editora Urutau, São Paulo, Brasil.

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Participação em Antologias de Poesia desde 1982. Com outras participações e cooperação em Recitais de Poesia.

Mais informação: https://pt.wikipedia.org/wiki/Maria_Azenha

a hora da demÊnCia dos espelhos

A DEMÊNCIA DOS ESPELHOS

I Por vezes julgo chegar a um pequeno deus em que acredito como a um aroma no meio do poema. E há um verso de inverno que cerca o nosso coração no meio da noite. E há vento. E é um exercício flutuante de espelhos.

Outras, há momentos incandescentes onde o poema aflora às suas artérias iluminado por uma pedra de âmbar. E aí morrem os amantes e os seres caídos do silêncio.

É então o tempo onde os poemas se devoram a si mesmos. O ar está cheio de sangue.

II A guerra procura o seu rosto junto ao muro dos nomes. O seu deus é o último Espelho.

III No rosto de Arendt há uma lágrima suspensa das letras de uma floresta. A elas ficámos indiferentes. E tudo se resume a pedras.

O gelo, em sua terrível demência, e o véu branco do nevoeiro cobrindo as nossas cabeças

Ó MINHA IRMÃ VIOLÊNCIA! Ó MINHA IRMÃ GUERNICA!

Oh o amor é uma flor exótica como uma granada carnívora. o amor é um chiclete. e somos as tuas crianças pobres degoladas do medo sem tripas somos as tuas crianças negras nas ogivas nos mísseis a revolução se analisa como um míssil rentável os nossos rios correm pela estética das armas o nosso sangue corre pelas estrelas de Guernica são corrosivas!

e as crianças morrem pelo sangue dos cadáveres as crianças morrem aos irmãos do medo às granadas plásticas.

onde estão os humanistas? para onde foram as toilettes barbitúricas das armas?

e trazemos astronautas a solidão negra dos pássaros, os robes pretos nas goelas politécnicas das armas trazemos os cadáveres.

são os novos códigos das morgues de Santiago. são os novos códigos do Iraque. são as novas naves guatemaltecas programáveis de ítems!

artigo I. Tenho medo! artigo 2. Tenho medo! Artigo 3. “Où est ma valise?”

oh a pele habita o medo e o medo habita as margens,

a pele habita o medo o medo habita as margens.

são os rios negros do terrorismo!

e somos os traficantes das drogas nas ogivas nas armas somos os traficantes dos dólares nos cachets dos chiles, no nosso sangue correm as estrelas de granada no nosso sangue correm as estrelas terroristas

onde estão os humanistas? onde estão os meus irmãos artistas?

e marchamos tristes sobre a ditadura dos átomos trazemos as cicatrizes numa ogiva inteligível. são os bordéis dos Chades! são as páginas das Líbias!

para onde foram as paralelas brancas de Descartes do “penso, logo existo”? para onde foram as estrelas infinitas?

Ah, e no bairro do terror somos os assassinos! fazemos o amor como caves terroristas. são as flores que crescem nos bairros ensanguentados, sinistras, nos jardins políticos!

é o pavimento lustrado. é terrorismo.

Ó minha irmã Violência! Ó minha irmã Guernica! a solidão mudou de cave como uma nave terrorista!…

MAMÃ! MAMÃ FEDERAL!

Mamã: o meu corpo caiu na pia batismal. Foi um percalço. recebi a tua bênção com os óleos santos em algodão de rama.

mas que faço agora eu neste bordel das lágrimas, com tantas orlas com tantos véus, a fabricar poemas nas morgues do Céu?

que faço agora eu, artesã do sangue, com a minha mão profana que ficou grávida? e a minha mão direita é ainda uma têmpora num país distante com lágrimas de sal .

mamã!: envia um telegrama a todos os jornais, anuncia com o meu coração em febre, com todos os meus punhos cerrados como que a rezar, que eu fumo Cambodja, liamba, Hiroxima, armas nucleares, que rendilho a ferros todos os meus cárceres com as palavras brancas do medo que saltam dos meus olhos.

roubei a todos os arcanjos as palavras do ódio! fumo cachimbos, goelas de bairros, narcóticos, drugstores democráticas; mato vinte e sete pessoas por cada prato, faço massacres na América Central cravo balas nos vestidos amarelos das crianças estrangulo o tempo com o sexo dos elétricos ilumino as fezes com feiuras sacrossantas faço ícones com toda esta tristeza humana.

mamã, eu rasgo «cânceres» de papel, trabalho as sombras com as lágrimas de plástico, mexo na história com cadáveres brancos

estendo os meus braços em tecnicolor como numa tela circular humana.

mamã, eu encolho os ombros, espirro, bebo cafés evangélicos, grito com os filhos. mamã, vivemos juntos!, isto é o meu mau génio.

ah, mas o Vaticano, esse grande gangster de robe, que anuncia a paz para os domingos, essa pia batismal onde eu também caí com fome foi um percalço. e o pavimento lustral da carnificina humana pisando o sangue, os incensos da guerra, onde não cabe agora aí o trigo! mamã, e os uniformes azuis, a dizer tão bem com as velas, e os pássaros e as Indochinas e os vitrais da esperança com tanta luz difundindo as trevas com vapores de chumbo... e os trigais maduros a vencer o chão, a curvar a terra aos anéis do mundo; e as lutas armadas e as recitações de tréguas e as missas solenes lidas à breviário, cantadas por gorilas com sapatos d’anjos.

e a guarda civil e as patrulhas e os ofícios e as escolas e as embaixadas anfíbias nas tuas nádegas onde fica agora aí toda a tua força política. (e os tribunais de togas a julgar os crimes a barricar as fomes esquecendo as dívidas! ) mamã, onde fica o grande rio das palavras onde [fica Guatemala onde fica a noite-dos-tantãs onde [fica a esperança com os olhos de napalm?!

onde fica a vida mamã-sacrário? mamã! mamã federal, esta manhã eu mijei todas as rimas todos os versos brancos,

nessa pia batismal!

“Diário: Garatuja da espada de São Jorge” Grafite sobre caderno A6. 2014.

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