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ALEJO CARPENTIER – POR LIVIA DEORSOLA
from Intempestiva n.01
LIVIA DEORSOLA
(1979) — Cursou jornalismo na Universidade Estadual Paulista (unesp) e letras na Universidade de São Paulo (usp), completando seus estudos em literatura espanhola na Universidade de Barcelona. Como jornalista, foi colaboradora da revista Entrelivros. Iniciou a carreira de editora de livros na Cosac Naify. Trabalhou na Companhia das Letras e voltou a integrar a equipe editorial da Cosac Naify, até seu fechamento. De família argentina, voltou-se sobretudo à literatura latino-americana, publicando no Brasil os argentinos Selva Almada, Diego Vecchio e Rodrigo Fresán, os chilenos Lina Meruane, Jorge Edwards e Hernán Rivera Letelier e a uruguaia Inés Bortagaray, entre outros. Atua também como tradutora do espanhol, assinando as traduções de autores como Adolfo Bioy Casares, Daniel Sada (indicada ao prêmio Jabuti 2018) e Hernán Ronsino, além de obras infantojuvenis.
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[apresentação e tradução por Livia Deorsola]
aleJo Carpentier
O leitor tem em mãos a tradução do primeiro capítulo de El reino de este mundo, de Alejo Carpentier, novela histórica, publicada em 1949, em que o autor cubano, profundo conhecedor da tradição literária europeia, volta seus interesses a um universo algo irmanado, porém, segundo ele, infinitamente mais rico e “desburocratizado”: o real maravilhoso, por meio do qual ele cria uma particular narrativa sobre a revolução haitiana. Carpentier conheceu a ilha em 1943, quando visitou o delirante palácio de Sans Souci em La Ferrière, construção empreendida por Henri Christophe, o escravo liberto que se autoproclama imperador em 1806. A partir dessa experiência — histórica e cultural —, escreve o livro e passa a tratar o real maravilhoso como criação latino-americana por excelência, gênero em que a realidade e o extraordinário convivem sem distinção. Assim, o autor dá forma a uma visão de todo o continente, sua complexidade e contrastes com a Europa, a ponto de fundar uma espécie de paradigma para muito do que foi escrito depois e que foi identificado com tanta força com o modo de apresentar as cores hispano-americanas: os mitos, a mestiçagem, os acontecimentos históricos. No militante e programático prólogo do livro, ele afirma: “Para começar, a sensação do maravilhoso pressupõe uma fé”, fé na ampliação “das escalas e categorias da realidade”. Para ele, a crença era tão real quanto os fatos, o milagre, tão atuante quanto o cotidiano.
Em El reino de este mundo, que se inicia um pouco depois da Revolução Francesa e termina na década de 20 do século XIX, Carpentier nada de braçadas num estilo barroco, elegante, de longas frases e imensa riqueza vocabular, recursos adotados para descrever as aventuras do escravo Ti Noel ao lado de Christophe, “monarca de incríveis empenhos”: uma brava e apurada recriação literária a respeito do sincretismo cultural e religioso do Caribe em séculos passados.
[Primeiro capítulo da novela O reino deste mundo, de Alejo Carpentier]
as CaBeÇas
Entre os vinte garanhões trazidos para o Cabo Francês pelo capitão de barco, que era intermediário de um criador normando, Ti Noel escolhera sem hesitação aquele reprodutor argel, de garupa redonda, bom para remonta de éguas que estavam parindo potros cada vez menores. Monsieur Lenormand de Mezy, conhecedor da perícia do escravo em matéria de cavalos, sem reconsiderar a decisão, tinha pagado em sonoros luíses.1 Depois de fazer-lhe um freio de cordas, Ti Noel desfrutava de toda a largura do sólido animal mosqueado, sentindo em suas coxas a ensaboadura de um suor que logo se transformou em espuma ácida sobre a espessa pelugem percherona. Seguindo o amo, que gineteava um alazão de patas mais finas, tinha atravessado o bairro do porto, com seus armazéns cheirando a salmoura, suas lonas retesadas pela umidade, os biscoitos tão duros que tinham que ser partidos com o punho, antes de sair na Calle Mayor, furta-cor àquela hora amanhecente, por causa
1 Antiga moeda francesa de ouro, equivalente a vinte francos. Fonte: Real Academia Espanhola. (N.T.) dos lenços xadrezes de cores vivas das empregadas negras que voltavam do mercado. A passagem da carruagem do governador, toda empetecada de rocalhas douradas, arrancou uma grandiosa saudação do Monsieur Lenormand de Mezy. Em seguida o senhor e o escravo amarraram os animais em frente à barbearia, que recebia La Gaceta de Leyde, para a distração de seus frequentadores mais cultos.
Enquanto o amo fazia a barba, Ti Noel pôde contemplar à vontade as quatro cabeças de cera que adornavam a vitrine da entrada. Os cachos das perucas emolduravam semblantes imóveis, antes de se espalhar, em um remanso de caracóis, sobre o carpete carmesim. Aquelas cabeças pareciam tão reais — embora tão mortas, pela fixação dos olhos — quanto a cabeça falante que um charlatão de passagem tinha trazido ao Cabo, anos antes, para ajudá-lo a vender um elixir contra dor de dente e reumatismo. Por uma divertida coincidência, o açougue ao lado exibia cabeças de novilhos, escalpelados, com um talinho de salsa sobre a língua, e que
de Cera —
tinham o mesmo aspecto ceroso, como se estivessem adormecidas entre caudas escarlates, patas em gelatina e panelas repletas de tripas cozidas à moda de Caen. Apenas uma divisória de madeira separava ambos os mostradores, e Ti Noel se divertia pensando que, ao lado das cabeças dos novilhos descorados, serviam-se, na toalha da mesma mesa, cabeças de brancos senhores. Do mesmo modo como se costuma enfeitar as aves com as próprias plumas para presenteá-las aos comensais de um banquete, um cozinheiro hábil e bastante glutão teria vestido as cabeças com suas melhores perucas. Não lhes faltava mais que uma orla de folhas de alface ou de rabanetes cortados em flor. De resto, os potes de goma-arábica, os vidros de água de lavanda e as caixas de talco, vizinhas das caçarolas de bucho e das bandejas de rins, completavam, com singulares coincidências de frascos e recipientes, aquele quadro de um abominável banquete.
As cabeças naquela manhã abundavam, já que, ao lado do açougue, o livreiro tinha pendurado em arame, com pregadores de varal, as últimas estampas chegadas de Paris. Em quatro delas, pelo menos, ostentava-se o rosto do rei da França, em moldura de sóis, espadas e lauréis. Mas havia muitas outras cabeças emperucadas, provavelmente de altos personagens da Corte. Os guerreiros eram identificados com seus trejeitos de quem parte para o ataque. Os magistrados, pela carranca de meter medo. Os poetas de talento, porque sorriam sobre duas plumas cruzadas no alto de versos que nada diziam a Ti Noel, pois escravos não sabiam ler. Também havia gravuras em cor, de fabricação menos elaborada, em que se viam fogos artificiais que festejavam a tomada de alguma cidade, bailados com médicos armados de seringas enormes, uma partida de cabra-cega em um parque, jovens libertinos metendo a mão no decote de uma camareira, ou a inevitável astúcia de um apaixonado que, recostado na relva, descobre, arrebatado, os íntimos recessos da dama embalada inocentemente num balanço. Mas Ti Noel fora atraído, naquele momento, por uma gravura em cobre, a última da série, que se diferenciava das demais pelo tema e pela ex-
ecução. Nela estava representado uma espécie de almirante ou de embaixador francês, sendo recebido por um negro rodeado de abanadores de plumas e sentado sobre um trono adornado de figuras de macacos e lagartos.
— Que gente é esta? — perguntou atrevidamente ao livreiro, que acendia um comprido cachimbo de barro na soleira de sua loja. — É um rei do seu país.
Não teria sido necessária a confirmação do que ele já intuía, porque o jovem escravo tinha se lembrado, de repente, daquelas histórias que Mackandal cantava em salmos na moenda de cana, nas horas em que o cavalo mais velho da fazenda de Lenormand de Mezy fazia girar os cilindros. Com uma voz fingidamente cansada, para melhor preparar certos acabamentos, o mandinga costumava se referir a feitos transcorridos nos grandes reinos de Popo, de Arada, dos nagôs, dos fulas. Falava de vastas migrações de povos inteiros, de guerras seculares, de prodigiosas batalhas nas quais os animais tinham ajudado os homens. Conhecia a história de Adonhueso, do rei de Angola, do rei Dá, encarnação da Serpente, o eterno princípio do retorno infinito, e que se entretinha misticamente com uma rainha que era o Arco-íris, senhora da água e de todos os partos. Mas, sobretudo, era prolixo na narração das façanhas de Kankán Muza, o feroz Muza, criador do invencível império dos mandigas, cujos cavalos eram enfeitados com moedas de prata e caronas bordadas, e relinchavam mais alto que o fragor das armas, levando o estrondo na pele dos tambores suspensos ao cangote. Aqueles reis, além disso, armados de lança, à frente de sua tropa, tornados protegidos pela ciência dos Preparadores, só caíam feridos se de alguma maneira ofendessem as divindades do Raio ou as divindades da Forja. Eram reis, reis de verdade, e não esses soberanos cobertos de cabelos alheios, que jogavam a bula e só se faziam de deuses nos palcos de seus teatros da Corte, exibindo a perna afeminada ao compasso de uma contradança. Esses soberanos brancos ouviam mais as sinfonias de suas rabecas e as arengas de seus libelos, os mexericos de suas favoritas e os cantos de seus pássaros de corda, do que os estampidos dos canhões disparando sobre o contraforte de uma meia-lua. Embora não tivesse estudo, Ti Noel tinha sido instruído nessas verdades pelo profundo conhecimento de Mackandal. Na África, o rei era guerreiro, caçador, juiz e sacerdote; seu sêmen precioso engrossava, em centenas de ventres, uma vigorosa estirpe de heróis. Na França, na Espanha, ao contrário, o rei enviava seus generais para o combate; não tinha competência para dirimir litígios, era reprendido por qualquer frade confessor e, quanto à virilidade, não fazia mais do que gerar um príncipe retardado, incapaz de abater um veado sem a ajuda de seus caçadores, a quem chamavam, com inconsciente ironia, pelo nome de um peixe tão inofensivo e frívolo como era o golfinho. Além, no Grande Além, ao contrário, existiam príncipes
durões como a bigorna, e príncipes que eram como leopardos, príncipes que conheciam a linguagem das árvores e príncipes que reinavam sobre os quatro pontos cardiais, donos das nuvens, das sementes, do bronze e do fogo.
Ti Noel escutou a voz do amo, que saía da barbearia com as bochechas cheias de talco. Sua cara agora, surpreendentemente, se assemelhava às quatro cabeças de cera que se alinhavam na estante, sorrindo um sorriso estúpido. Monsieur Lenormand de Mezy aproveitou para comprar uma cabeça de novilho no açougue e a entregou ao escravo. Montado no garanhão já impaciente para pastar, Ti Noel apalpava aquele crânio branco e frio, pensando que deveria oferecer ao tato um contorno parecido ao da cabeça calva que o amo ocultava sob a peruca. Mas a rua tinha se enchido de gente. No lugar das negras que voltavam do mercado, agora eram as senhoras que saíam da missa das dez que estavam na rua. Mais de uma mestiça, concubina de algum funcionário enriquecido, faziase seguir por uma empregada de cor tão desbotada como ela, e que levava o leque de folha de palmeira, o breviário e uma sombrinha de borlas douradas. Em uma esquina os fantoches de um teatro ambulante dançavam. Mais adiante, um marinheiro oferecia às damas um macaquinho do Brasil, vestido à espanhola. Nas tavernas desarrolhavam-se garrafas de vinho, refrescadas em barris cheios de sal e areia molhada. O padre Cornejo, cura de Limonade, acabava de chegar à igreja matriz montado em sua mula cinzenta.
Monsieur Lenormand de Mezy e seu escravo saíram da cidade pelo caminho que ia à beira-mar. Soaram tiros de canhão do alto da fortaleza. La Courageuse, da Armada Real, acabava de aparecer no horizonte, de volta da Ilha da Tartaruga. Em suas bordas, brancas nuvens de fumo ecoavam os estampidos. Assaltado por recordações de seus tempos de oficial pobre, o amo começou a assobiar uma marcha para flauta. Ti Noel, em contraponto mental, tatareou para si mesmo uma quadra marinheira, muito cantada pelos tanoeiros do porto, na qual se mandava à merda o rei da Inglaterra. Disso tinha certeza, ainda que a letra estivesse em créole. Por isso mesmo sabia. Afinal, quase nada significavam para ele o rei da Inglaterra, o da França ou o da Espanha, que mandavam na outra metade da ilha, e cujas mulheres — segundo dizia Mackandal — avermelhavam as faces com sangue de boi e enterravam fetos de crianças em um convento cujos subterrâneos estavam coalhados de esqueletos rejeitados pelo verdadeiro Céu, onde não eram bem-vindos mortos ignorantes dos deuses verdadeiros.