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MÁRCIO MARKENDORF

Publicou contos de forma esparsa em coletâneas: Vanishing point, do livro Decálogo (SESC/SC, 2008), organizado por Carlos Henrique Schroeder; Introdução casual ao pensamento sujo, projeto de três mini contos em Só muda a roupa (SESC/SC, 2009), organizado por Manoel Ricardo de Lima; Deslizamento do gozo, O circo invisível e O delicado cadáver do leão, do volume Todos os livros do mundo (SESC/SC, 2010), organizado por Tabajara Ruas e Rozi Oesterreich; A história do cílio caído do olho, narrativa para o projeto artístico de Fabulações reminiscentes (Cultura e barbárie, 2015), idealizado pela artista plástica Juliana Crispe; O coração de Manassés e O gobêri, reunidos em Entre estantes e entre tantos – histórias inusitadas na biblioteca (UFSC/Biblioteca Universitária, 2017). Escreveu a novela Soy loca, Lorca, feito um chien no chão (Urutau, no prelo). Livremente inspirado em narrativas epistolares, desde 2005 mantém o blog Incorrespondencias (http://incorrespondencias.blogspot.com/).

o pinguim

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Para o Garoto parece vívida, agora, a recordação da noite em que o Homem e ele foram ver a lua elevar-se do mar, majestosa, como o olho amarelo de um anfíbio.

Era a primeira vez que os dois estavam ali. Sós, os dois. Uma praia deserta, como o cenário bem enquadrado de um filme. Seria bonito se não fosse perigoso: o amor entre dois homens, altos e masculinos. Tudo porque nos frames das películas, esse enlace é sempre uma tragédia sem anúncio, violenta e bárbara. A ironia do destino esmaga os enamorados e apodrece a carne como se não fossem possíveis delicadezas masculinas em nenhum tempo. Por isso, havia o medo se espraiando na escuridão como um gatuno, tremulando na sombra dos dois, já trêmulas de tanta tensão.

Enquanto a lua não vinha, tudo estava muito escuro. Inclusive os corações dos homens. O mar tinha algo de ameaçador no negrume, a areia era sangrenta de espuma. A água quebrava como se cascos de éguas trotassem na praia, impetuosos, selvagens. Nada era tranquilo: em breve haveria a grande maré oceânica, subindo até a restinga, envolvendo os pés até as canelas ou pouco mais. Lá do outro lado, um tanto distante, umas poucas luzes assinalavam a tumultuada baía, cheia de carros e gente, tão oposta e tão indisposta àqueles homens.

Quando eles olhavam demais para as águas acreditavam ter visto, de relance, pescadores com arpão, peixes satânicos saltando nas cristas salgadas, imagens metafóricas de uma sensação de perigo — mas nada comentavam. Entre eles havia aquele silêncio domesticado: o Garoto era uma ostra fechada; o Homem, uma rocha cheia de cracas, um rostofalésia suportando açoites marinhos.

De repente o Homem, agachando-se, desenhou na areia da praia a silhueta de uma ilha e contou com voz solene: “Dia desses sonhei com um lugar assim, povoado de sereias coxas e marinheiros bêbados. Havia um gigantesco navio apodrecido, com a quilha soterrada por gaivotas e, de tempos em tempos, visitado por um polvo nebuloso. Eu sabia que estava perdido, exilado em uma terra devastada, imóvel, e sabia que iria morrer lentamente, fora do mundo”. Depois lançou um olhar sombrio para o horizonte viscoso, fantasmático. Parecia saber que não era sonho, era mensagem cifrada, simbólica, sobre o futuro.

O Homem perguntou ao Garoto se ele tinha medo, algo respondido com um tímido aceno negativo de cabeça.

Mas o Garoto mentiu quando disse que não estava com medo. Não era medo dali, daquele lugar, da cor noturna do céu, do marulhar raivoso das ondas, da praia deserta, sem vivalma. Ele estava com medo do silêncio, o silêncio inumano de dois enamorados. E com temor da sinuosa podridão no ar, misturada ao que se sabe do sal e da maresia suja.

O Homem já sentira o cheiro da morte antes. Repetidas vezes, por ser perito da polícia. E por ter estado naquela mesma praia, próximo daquela restinga, tantas outras vezes encarando os defuntos que ali jaziam, temeu por ambos. Ainda assim, nada disse para o Garoto, com medo de que aquela história de nascer da lua fosse contaminada pelo odor do mal. Entretanto, o Mal já estava feito — os dois tinham segredos se encastelando resistentes, fossos que impediam os corpos de se aproximarem e experimentarem algo a mais.

Nascia dessa separação a inquietude — ainda que se desejassem e estivessem sozinhos, não se atreveram a qualquer gesto afetuoso. Permaneciam próximos um ao outro, dentro de um limite de espaço que, quem os visse a distância, diria serem apenas amigos. Ou um pai e seu filho.

Só que não havia nenhum outro alguém além dos dois. Exceto uma coruja presenciava a cena. Observava-os do chão, ao lado de um tronco de palmeira caído, abotoando os olhos como para medir os homens e sua lentidão, pescando tudo com o cinismo de sua sabedoria.

De resto, havia conchas doentes na areia, uns ossos de gaivota, uma luminosidade de algas, babas brancas de mar cuspindo hidras secas.

Embora o espetáculo fosse para ser o de um nascimento, a praia cheirava, cada vez mais, a morte. Quando se aperceberam disso, os raios refratados do sol sob a superfície do satélite lunar começaram a subir das águas como uma placenta luminosa. Os dois sorriram um para o outro e depois, em pé, lado a lado, acompanharam a lenta ascensão do astro. Sem palavra, sem palavras — um intervalo mudo que se prolongou por muito mais tempo do que parecia ter durado.

Quando a lua já ia alta, decidiram voltar. Foi quando, inesperadamente, tropeçaram em um cadáver na areia. E como ignorar os sinais da terra? A pele podre, os ossos, a cabeça mutilada — um pinguim pequeno, morto na praia, era um presságio, um mau agouro. Naquela época do ano, rumando para o Norte, os pinguins saíam de colônias da Patagônia e, por vezes, surgiam ali no litoral. O Homem inclinou-se, remexeu o corpo, frio, com a mesma frieza com que viera até ali com o Garoto. Era tudo muito simples, sem surpresas nem carícias — dois caras que olham, pela primeira vez, a lua surgir do mar — algo que poderia ser poético, mas não foi nada.

O Homem lembrou-se, então, de que lera em algum lugar que o pinguim é um animal que pode fazer casal com outro macho. Podem seguir juntos, dividir o mesmo ninho, adotar um ovo abandonado e cuidar de um filhote. O que aquele pinguim fazia ali?, perguntou-se, dentro de si mesmo, o Homem. Ele fez uma viagem muito longa e se perdeu, como eu já me perco, como já me perdi, concluiu com certo terror.

O Homem mordeu os lábios, quase obsceno, pedindo paz a qualquer deus que pudesse se agarrar. Pediu que sua alma não demorasse a se entregar e perdesse logo a batalha, pois se deixar levar não é perder. Quis, a despeito do grande esforço, não se esfregar mais contra as pedras e o muro, parar de se enroscar nas mortalhas e no monturo. Rogou à lua alta do firmamento que a alma se amansasse, que o corpo se deixasse amante e se deitasse com o Garoto em uma cama branca e limpa. À espera deles.

Foi quando olhou para a inscrição no seu braço esquerdo: ‘O desejo me fez fraco’.

Não se podia, àquela altura, imaginar que aquilo era a verdadeira anunciação de um perigo, o sinal que antecipava o final dramático de tudo. As coisas, mesmo displicentemente, significam muito mais do estão dispostas a revelar, guardando em si os espasmos de uma lenta profecia. A tatuagem sob uma pele queimada de sol dizia muito, declarava abertamente que o desejo da carne o havia deixado frágil, fraco e, também, muito pouco franco.

O Homem, por um instante, quase chorou um destino sem o Garoto, sem alguma mulher, sem ninguém. Tudo porque seu segredo, o mais escuso, subia e descia o corpo, carregado por um irreversível pacto de sangue. Contagioso.

O Garoto, inquieto, pediu para voltar para casa. Quem sabe os pais já o procurassem, temerosos de algum incidente. E os dois partiram em um silêncio ríspido que só o Homem sabia ser de partida e em definitivo. Um silêncio daqueles que nunca mais voltam a se encontrar, como um pinguim muito distante de casa, nadando debilitado e fraco, infectado pelo ódio, separado dos outros, sem norte, longe demais do continente gelado do amor.

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