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GABRIELLE ALBIERO

É jornalista, professora e coautora do livro-reportagem PANGEIA — Fragmentos da guerra da Síria no Brasil.

plutão ainda é um planeta

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há aqueles que avançam na escuridão para se tornar mais íntimos da luz, do claro — os monges no claustro

uma vez olhei tão fundo um poço que reconheci minha própria imagem ali só pude emergir quando percebi que eu não era mesmo igual a mim

quando eu era criança e minha mãe quebrava os pratos no chão eu logo me debruçava sobre a superfície dos cacos — admirava todas as formas que contém um prato e pensava como não o tinha olhado bem

quando eu era criança e ficava mais doente do que já tinha estado, sôfrega pensava o meu enterro exagerada, lamentava: “tão nova, tão nova...” quando cresci um pouco mais doei-me aos venenos — só queria destilar antídotos — ninguém entendia de química ou de alquimia e chamavam-me suicida “tão nova, tão nova...”

somente pela apneia se percebe o pulmão frente à face da morte se mede a dose: veneno ou salvação não se pode desviar quando imerso os monges ainda não sabem o segredo. no claustro, fabricam a luz mas há dias em que o dia nasce e há outros em que não

aos iniciados cabe retornar do reino de hades — entre o dia e a noite ver o invisível vão

uma mulher marítima

(para luiza aguiar)

eu sempre sonho com o mar e o mar afogando em enchentes. na orla da praia um outro mar, de gente

eu sempre sonho um sonho em que altas ondas se quebram em meus rostos conhecidos meu pai minha mãe minha irmã outros parentes e alguns amigos

eu sempre sonho com uma mulher que tem garras para agarrar o fundo do oceano onde qualquer tsunami é apenas um balanço e ela repousa, longe dos danos

até que, no meu sonho, ela desperta do seu útero marítimo e volta à praia como se se voltasse aos seus filhos e se põe a parir os filhos da tragédia, tarefa sobre-humana de ser mãe e ser mulher.

Sísifa se inclina, filho a filho — mas nunca tomba até que chega uma outra onda

*instruíram-me logo na iniciação: há duas ou três tarefas para depois do amor

a principal consiste na delimitação dos dois corpos fundidos

deram-me uma navalha sem corte e uma navalha afiada para o trabalho

mas não me ensinaram (e só percebi na hora) a coordenação depois do amor

por isso sobra sempre um tanto de carne em um corpo e um tanto de ausência noutro

não tenho culpa e há sempre um risco mortal em traçar cartografias anatômicas

no fim da separação o que resta é ou o sangue e a vertigem (já estava previsto) ou a inocência da criança que desenha na parede da sala de estar sem prever consequência

tudo depende da divisão dos espólios

imagem maike

*a trezentos e setenta passos a oeste de ti está o meu deserto

quarenta dunas desenham parábolas de silêncio

percorro o caminho como quem abandona a cidade os transeuntes os pedintes o barulho a pressa os automóveis e os cães a fome

um sem-número de grãos me afunda um sem-número de grãos me sustenta metade do corpo é terra a outra metade é azul

e andar é mais pesado e lento do que quando nas esteiras do metrô mas não tão penoso quando nos vagões

o alívio de que no deserto não é preciso chegar nem sequer percorrer — o deserto se atravessa —, o que na cidade seria só o atraso na trigésima sétima duna percebo que tudo é miragem

afundo

na trigésima oitava que o deserto é excessivamente minimalista

afundo

na quadragésima a cidade parece uma peça barroca

mas só quando ouço dois violinos conversando sobre o concreto percebo que o deserto e a cidade são extensões sucessivas

retorno a você com o assombro de um milagre urbano visto por um peregrino

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