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CARLOS MOREIRA

Autor do livro Corpo Aberto3 (Patuá, 2016), Carlos Moreira é poeta e compositor. Publicou Evangelho Segundo Ninguém e Duas Palavras, pela Edufro; Tetralogia do Nada pelo Clube dos Autores e, recentemente, Cardume, pela Editora Valer. Publicou também Viagem de Cores e Sonhos, comemorando uma década de Festcineamazônia. Teve poemas seus publicados nas Revista Ciência e Cultura, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Revista Germina, Revista Expressões e Revista Blecaute. É autor de roteiros poéticos para filmes com Jurandir Costa e Fernanda Kopanakis, entre eles os premiados Nada é Longe e Quilombagem.

*homero não conseguia ver por que o chutavam de um lado para o outro: na feira o chutavam e esfregavam em seu focinho as frutas podres que ninguém mais queria: mal abria a boca e enfiavam nela algum inseto ou uma porção de terra: homero engasgava e seguia sem rumo: diante dos pórticos os meninos apostavam quem acertaria em suas pernas: homero coberto de feridas seguia em silêncio até que as pedras deixassem de zunir em seus ouvidos velhos: homero não conseguia ver por que no cemitério não o escutavam: nem conseguia ver que em várias covas o nome homero também estava: tantos homeros sem nada a dizer: depois seguia apalpando o muro e saía pelo portão entre a cal e o sol queimando sua pele: homero não conseguia ver por que arrancavam sua roupa e no meio da praça não via por que as gargalhadas não cessavam para que ele pudesse dizer o canto para que havia nascido e para ali enviado: rasparam sua cabeça enquanto tentava iniciar uma parte qualquer da rapsódia mas o escorpião que lhe deram dizendo que eram moedas cortou com a lâmina do grito a estrofe ao meio as palavras engasgadas se misturando em sua garganta e devorando umas às outras: homero não conseguia mais ver a diferença entre os lugares e as pessoas: os juízes e os mendigos as crianças e as prostitutas os loucos e os comerciantes eram todos agora a mesma matilha sem destino: homero não conseguia ver se o empurravam agora contra as pedras ou contra o mar e quando brincavam de afogá-lo sentia por entre a boca e a barba o sabor antigo dos sargaços e o reflexo distante das viagens que ainda corriam nele: tanto mar tanto mar: depois amarravam nele alguma água-viva e cobriam sua cabeça de algas como se ele fosse uma sereia dançando entre o ácido e o sal na beira daquele mar: depois amarraram seu pescoço e seus pulsos e pés e fizeram dele marionete no meio da festa e todos morreram de rir quando o levaram para dançar sobre as brasas da fogueira enquanto jogavam na sua cara as últimas taças de vinho: homero não conseguia ver o suficiente para chegar até a muralha nem para encontrar o punhal que por tantos anos lhe fez companhia: homero não viu o silêncio que se fez naquela tarde nem o copo que lhe davam solenemente depois de tudo: mas sentiu o velho odor por entre as bordas e no segundo gole homero viu a que porto imundo havia dedicado tanto canto e tanto corpo e bebeu a taça até o fim como quem gargalha por enfim ter entendido a mais óbvia das piadas

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*uma cobra comendo um lagarto é um espetáculo: uma ninfa devorando um sátiro não faria o mesmo teatro: a espiral certeira: as escamas contra a pele: as caudas entrelaçadas: os espasmos a princípio frenéticos: depois pausados: primeiro a cabeça na boca úmida dilatada: depois as patas lentamente uma a uma dobradas entre a mucosa fímbria: depois cada vez mais líquido o tronco sendo engolido passo a passo no que agora é o fim e o início de um caminho: réptil de repente anfíbio dentro de um túnel primeiro vermelho depois escuro e íntimo: a língua agora inútil tateando o que é covil e cova mergulho e infinito: por fim a ponta da cauda língua às avessas entre o verde e o limo: depois as contorções do que ainda vivo tenta abrir no escuro o que não é nem areia nem muro: apenas fibra dormente que a cada giro muda a natureza da parede: o viscoso muco: e de repente o frio contra o frio e a falta de ar como última sede: não há como ir para voltar nem voltar onde tudo é círculo: a cobra se apóia contra a pedra e espera a última contorção o último coice o derradeiro pulso: minutos depois está repleta e satisfeita: cansada como se houvesse parido às avessas: é dois em uma agora e não deixa de pensar no que de íntimo ficou da troca: demora a ser cobra novamente: só cobra na paisagem que se desenrola: há um lagarto a menos na paisagem e uma serpente por mais algum tempo: o processo agora se desdobra dentro dela por conta própria: cumpriu seu destino de cobra e um lagarto a menos pouco importa: na sombra ou dentro dágua vai dissolvendo do lagarto o que antes era olho unha cauda sorriso e força: não lhe ocorre pensar se num último ato o lagarto tenha nela se camuflado

e ocultado: prenhe agora do fantasma devorado se aproxima do lago e se fosse dado a cobras sonhar talvez tivesse sonhado: o movimento inverso o lagarto inteiro vomitado e a cena toda num início impossível e recomeçado: desde o primeiro olhar: o tomar do alvo: o bote como um salto a espiral refeita a cabeça na entrada úmida e o primeiro espasmo: a mesma cena no mesmo palco do mesmo teatro: um devorar a si naquele que é devorado: uma espiral que se desenrola por entre a dobra de seu próprio nó infinito porque perfeito e inacabado: é um espetáculo digno de silêncio e aplauso uma cobra devorando um lagarto: um sátiro engolido por uma ninfa seria um belo mito oferecido como prato

*fecha os olhos fecha os olhos agora criatura miserável porque a partir de agora todos os teus sonhos serão nítidos de uma nitidez de faca porque os vivos e os mortos os amigos e os inimigos estarão todos juntos e todos falarão ao mesmo tempo e calarão ao mesmo tempo e tua angústia e tua alegria serão o centro de cada sonho e cada um te acordará em certo ponto da madrugada ora com o alívio dos que escapam da morte ora com a angústia dos que continuam vivos e foi tudo um sonho dentro do impossível real que todo sonho é: tudo será exatamente como é agora e nada será o mesmo: nem tua voz nem teu olhar nem o amor ou a infâmia os corredores e janelas e fotografias: tudo estará no mesmo fluxo imóvel e cada sonho será um vórtice só visto por fora

no momento de acordar: teu suor ao acordar às vezes terá o cheiro que a saudade deixa e para o que nenhum deus inventou remédio: às vezes trará na boca o final de uma frase que ficou entre o sonho e a vigília meio viva meio morta atravessada em tua garganta como serpente: ficará a teu critério engolir ou vomitar: as paredes te atravessarão com os ventos as quedas serão quilométricas e às vezes voar te será dado sem muita compaixão: toma cuidado com os espelhos: ver a si mesmo dentro de um espelho dentro de um sonho ainda não foi calculado: qual dos dois sonha o que é sonhado? o que está dormindo do outro lado e sonhando o espelho diante dele se coloca ou o reverso da equação: teu sonho teu espelho tua imagem e teu reflexo infinitamente duplicado? o olho de quem olha ou o lago? de qualquer modo toma cuidado: tudo no sonho também pode estar sonhando que está acordado: por isso fecha os olhos fecha bem os olhos agora criatura miserável para que estejam bem abertos para dentro numa dobra entre a luz e a luz que só no escuro se penetra: só a quem o inferno atravessa é dado o dom de sonhar assim: não que valha muito a pena: fica como marca de renascença uma cicatriz por dentro do olho um certo jeito de andar em silêncio: nunca mais nada mais ninguém mais dentro e fora de ti serão o mesmo: por isso aproveito para me despedir assim entre as margens brancas que estavam depois do sonho um pouco além do espelho

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