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FLÁVIO CAAMANÃ

É um trabalhador braçal e poeta nascido em Tamboril, desertão do Ceará. Vivenciou o auge da ditadura, a infâmia e a injustiça. No início dos anos noventa participou como voluntário em campanhas de apoio às vítimas da Aids. Primeiro lugar no XVI Prêmio Ideal Clube De Literatura, participou de coletâneas em livros e revistas literárias virtuais. É autor do livro de poemas Aquedutos (Patuá, 2016).

FugalaÇa

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vamos supor que um homem conheça outro homem e juntos eles construam uma casa e projetem móveis para resistirem aos arrastões de espermas e riscos de lápis em coxas torneadas de correrem por esquinas

vamos supor que dois homens criem um gato e o gato não tenha o rabo e uma das patas

são tantas bichas bonitas no mundo são tantos pés sujos esperando serem lavados com água morna saliva boa e sal são tantas pérolas se perdendo pelas rotas de uma orgia clandestina e os cílios curtos

vamos supor que um homem engole outro homem e guarde a fumaça do hálito dentro da gaveta e quebre as duchas dos bares lotados e a sudorese que não caberá nos colchões amarfanhados

vamos supor que dois homens queimem as sandálias e decidam que suas respirações serão como rastros

vamos supor que pelas ruas homens quadrados rotundos sejam enfermeiros fotografando um poema num buraco

vamos supor que haja homens como jogadores a traficarem sangue de narcisos entre pensões em são paulo canindé campo belo paragominas homens negros brancos índios arrochados apanhados de surpresa na ereção das santidades mágicos ladrões vendedores hipnotizadores mendigos

vamos supor que um homem conheça outro homem numa cidade subterrânea ou num asilo psiquiátrico nos subúrbios nos cubículos noturnos nas guerrilhas nas filas de distribuição de drogas injetáveis e inaláveis vamos supor que em algum momento naquele momento uma luz acenda nos rostos a madrugada

narCisos pingados

é cedo e um menino brinca de ser rio brinca de tapar o sol com a ponta dos dedos e o sol desconhece o menino o sol por inteiro rasga o cetim dos olhos do menino descolore da beira um fio de areia movediça uma areia pisada levemente pisada antes da possibilidade de haver um menino

qualquer menino sabe que é morte o fundo do rio sabe onde nenhum peixe borra na cauda uma lança de cor indefinida ou qualquer cor sem referência nos olhos do menino e o menino existe pelo que nele morre o menino morre porque nele vive um ninho de areia movediça e um minguante rio

a CaBeÇa é a parte mais pesada do Corpo

a cabeça é a parte mais pesada do corpo nela podemos guardar frigoríferos e geleias cem quilômetros de paisagem e preconceito sendo possível espirrar cuspir engolir sorrir e sustentar cerca de 150.000 fios de cabelo

ela acomoda um cérebro de um quilo e meio queima dúvida e certeza por nada de cinzas abre-se nela uma boca e salta pelos olhos um punhado de riqueza num dente de ouro uma pobreza um desprezo num duro murro

entende o que é lentilha e o que é gordura administra vinte e dois ossos extremamente em harmonia com as orelhas que só ouvem compactua com a língua e o apuro obsceno capaz de cortar desaforo e computar gozo

a cabeça é a parte mais pesada do corpo nela o café é fervido a carne é amaciada nela aniquilada a bondade e a simetria nela um barco de água é muito dinheiro e da cabeça ao peito se abre um buraco

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