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daniel francoy

1979, nascido em Ribeirão Preto. Em Portugal, publicou os livros Em Cidade Estranha (Edições Artefacto, 2010) e Calendário (Edições Artefacto, 2015). No Brasil, publicou Identidade (Editora Urutau, 2016), um dos vencedores do Prêmio Jabuti na categoria poesia, A Invenção dos Subúrbios (Edições Jabuticaba, 2018) e O Ganges Represado (Editora Urutau, 2019). Teve poemas publicados nas revistas eletrônicas Escamandro, Enfermaria 6, mallarmargens, entre outras. Participou da plaquete Vozes Versos (Martelo Editorial, 2019). Alguns de seus poemas foram traduzidos para o inglês e publicados na revista eletrônica Saccades (2019)

em torno de ana flor

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1.

Eis o que habitualmente sou aos domingos: um abutre que sonhou ser um flamingo até que desperto e o ácido do dia cai sobre as retinas ainda tenras de realidade e as corrói.

Então me lembro de você com um vestido amarelo com bordados de flores.

Dizer que é um lírio é permitir outras definições pois um lírio é um flamingo e um flamingo é um girassol de asas com franjas de sangue e de ouro.

E isso é tudo o que somos no domingo — você com um vestido amarelo florido e eu o eco incendiado de todas as suas metamorfoses.

2.

Uma jabuticaba é um beija-flor um beija-flor é um beijo seu um beijo seu é uma jabuticaba.

3.

Às cinco horas, na praça central, o sol transita entre estações no suor dos seus cabelos sobre a curva do pescoço.

Calafrio ardido, arpejo de sal.

Eu tenho flores e vestidos queimando em meus olhos até que as pupilas sejam o fundo de uma urna funerária.

4.

Às cinco horas na praça central eu tenho uma alegria insubordinada e elétrica e o seu beijo é uma cicatriz que em sonhos é estrela.

poeta do semáforo

Vou lançar a teoria do poeta do semáforo. Poeta do semáforo: aquele em cuja poesia há o desprezo bruto da vida. Vai um homem sórdido, sai um homem sórdido da concessionária com um novíssimo [Mercedes-Benz e no primeiro sinal vermelho vem um aleijado [vendendo panos de prato berrando em seus ouvidos. É o poeta do semáforo e o seu poema é gritar para o próprio rosto refletido no vidro escuro do carro do indiferente homem sórdido. Sei que há esquinas sem aleijados em lindas cidades do mundo mas estas ficam para os homens-bomba e para os poetas ciclistas [que envelheceram sem nunca ter atropelado um cachorro.

van gogh

Para alguns homens a lucidez é branca, mas não para mim. Aqui, dentro dos olhos-fornalhas, a lucidez é uma cor por inventar e que não existe senão incendiada. Tudo agora está pleno e alucinado e me dói como se eu fosse o órfão de estrelas impossivelmente próximas.

antiverdades

Não percebe o que acontece? Estou tentando não contar uma história. Nada disso é verdade. Nenhuma destas pessoas está morta. Ainda que falem um dialeto de sangue e poeira, não percebe que conversam enquanto estamos aqui? Não percebe que se movem dentro da tarde e dentro da noite? De um jeito estranho, admito, mas se movem, e por isso estão vivas. Não percebe que é uma mentira tudo o que escrevo? No sábado passado, eu não arranquei sete dentes para melhorar a minha mordida. Não existe este país no qual agonizo como algo tombado no chão. Não é verdade que há criaturas com corações trocados como um lobo com coração de beija-flor e um beija-flor com um coração de lobo. Nunca restou provado que os urubus são tristes e que as hienas riem porque comem carniça. O céu azul rajado de nuvens brancas não é o esqueleto da baleia que engoliu um profeta e o céu cinzento ferido de vermelho não é a baleia branca com um arpão cravado na carne. É absolutamente inútil definir as coisas pelo seu avesso. Não há qualquer beleza na ausência de sentido e se minto é porque não compreendo os fatos. Se deus nos fez indivisíveis, por que a cabeça se separa tão facilmente do resto do corpo? A vida é calma, bárbara, os meus olhos doem e há muita coisa que digo ter visto mas que nunca vi, como por exemplo uma borboleta com as asas sujas de sangue, o pólen dourado disperso no ar de manhã ou a sombra de uma mulher pegando fogo.

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