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roberto piva

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claudio willer

claudio willer

[Autobiografia escrita em outubro de 1979]

Nasci em São Paulo na maternidade Pro Matre há quarenta e dois anos. Raramente saio de São Paulo, não por amor fati porém por absoluta falta de grana. Como não sou um intelectual de esquerda nem pertenço ao Rebanho-que-saca, estou sempre às voltas com o problema do dinheiro. As oportunidades que tive de deixar o Brasil, desperdicei-as por alguma paixão momentânea que atravessou minha vida nesta cidade. Gostaria de morar na ilha de Capri, na ilha de Marajó ou na ilha de Manhattan. Minha poesia só é possível quando estou apaixonado. Leio Dante, Artaud, Leopardi, Virgilio, Nietzsche, Rimbaud, Vico & Trakl desde os 16 anos. Prefiro ser um mendigo no reino vivo da poesia, do que um príncipe no reino morto do beletrismo & da crítica literária. Nunca levei a sério nada a não ser o instante. Minha pátria é onde não estou.

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[apresentação por Ibriela Bianca Sevilla]

Nos idos de 2012, ano do Hierofante no tarô de Crowley, segundo sua numerologia, ano próspero de intuição, regido pela Lua, me deparei (talvez por indicação do destino ou acaso, já que “um lance de dados nunca abolirá o acaso”) em pesquisas aos arquivos do poeta Roberto Piva no Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro, com uma preciosidade que não pude manter à sombra: trata-se de um livro inédito intitulado Corações de hot-dog. Se tivesse vindo a público teria fechado a tríade da poesia marcadamente erótica de Piva com os livros Coxas (1975) e 20 poemas com brócolis (1981), mas esse ménage à trois nunca aconteceu; ainda estamos na expectativa que a potência dessa tríade se materialize.

Por ora o leitor terá o prazer (literalmente e literariamente) de ler quatro (não por acaso) poemas desse hot-dog cheio de corações, se é que me entendem. Advirto-lhes já de início, que ler esses poemas só será possível sob a ótica delirante da paixão. Não há explicação filosófica nem aproximação acadêmica capaz de dar conta dos sentidos ativados pelas composições que encerra, pelas imagens que transbordam (e toda tentativa, inclusive a minha, se resume a onanismo). São poemas que falam diretamente ao corpo, com o corpo, nas batidas aceleradas de uma paixão.

O ineditíssimo “Poema de Amor Desesperado de Alegria” traz um fusão intensa do eu poético com a paisagem, com o tempo e no limite, com seu amante. Há uma impressão de tempo que transborda no presente, no agora; é um tempo parado no tempo do poema, e o sentido último do erotismo em Piva é o prazer, a fruição com a linguagem e seus limites, com os limites das suas imagens.

“Antes da Tempestade, cabelos ao vento... (ópera-samba)” é um longo poema, nem tanto para uma ópera, mas na medida para um samba, que fala de uma “noite de Mormaço Crime & Ciúme” permeado por imagens insólitas que destilam conquista, prazer e dor. O poema não é composto como um gênero literário “nobre”, entretanto, um tipo de linguagem sublime permanece, ainda que impossível de ser precisamente determinada, e justamente por isso, subsiste no campo das sensações desviantes, necessariamente paradoxais, como o êxtase, neste caso. Um trecho desse poema foi lido no documentário Antes que eu me esqueça de Jairo Ferreira, filmado no lançamento do livro homônimo de Roberto Bicelli em 1977.

“Queima Supermercado, Queima” pode ser considerado uma das pepitas de Piva; é de uma beleza singular, observada na primeira juventude dos corpos. Os garotos tornam-se a questão e toda a estética do poema gira em torno deles e é composto para eles. Os adolescentes aparecem como imagem privilegiada em todo o Corações de hot-dog, mas aqui, os garotos delinquentes da Febem tomam o lugar da musa que inspira o poeta delirante. “Queima Supermercado, Queima” já pôde ser apreciado em duas publicações, na revista Ímã em 1982 e em 2012 em livro organizado por Sergio Cohn para a coleção Ciranda da Poesia da editora da Uerj.

E, como um Gran Finale, apresentamos ao leitor o “Poema elétrico do Cu”! Apareceu publicamente primeiro no blog do poeta Claudio Willer e saiu então na revista Polichinelo, n. 15 de janeiro de 2014. É um poema do êxtase corporal, da liberdade e da libertinagem, além de uma apologia ao sexo anal; pode ser lido como uma tentativa de quebra de tabus mostrando, através de suas metáforas compostas por termos baixos e elevados, o cu como fonte de prazer e não somente a zona do interdito. Através da constante exaltação, Piva compõe um ideal selvagem (violento e indomesticado) em sua imagem privilegiada, o cu. Mostra o conflito da libertação sexual com os costumes morais que a proíbem, sustentados pela noção de pecado. O sexo como voluptuosidade é colocado em questão no poema, pois privilegia o dispêndio da energia vital, cujo único objetivo é o prazer e o êxtase do corpo. Aqui não há procriação, mas a afirmação de uma vida baseada no ócio e na alegria. Na impossibilidade de uma felicidade profunda encontrada somente na voluptuosidade, desemboca a transgressão, campo de limites onde a poesia de Piva se desenvolve.

Que o leitor se entregue ao gozo, e boa leitura.

[Ibriela Bianca Berlanda Sevilla]

Atualmente professora de português e literatura no IFC Campus Concórdia - SC. É integrante do coletivo Abrasabarca de mulheres poetas (abrasabarca.wordpress.com). Lê mais do que escreve, aprende muito mais do que ensina. É convicta de que as palavras têm poder, e que saber ler o texto velado de um poema é (poder) desvendar os enigmas da vida cotidiana. Acabou por se (de)formar como mestre e doutora em literatura pela UFSC em 2015 quando defendeu a tese “Todos os pivetes têm meu nome”: imagens da subjetividade nos arquivos de Roberto Piva. Publicou com o coletivo o livro de poemas Abrasabarca em 2018.

corações de hot-dog

Poema de amor desesperado de alegria

Meu amor me perdoe por não estar triste mas o mar pétala pré-histórica leva meu coração gelatina ferida até você através dos sinais dos petroleiros ao largo vistos da praia de Guaiúba & seus Mosquitos vorazes ao crepúsculo você que me vê viver dançando na estrela que desponta & desaba seus gritos de peixe-espada pelos longes não me deixe morrer tão feliz sem ter visto seu corpo adolescente correndo para o mar com um girassol entre os dentes distâncias consomem o que sobra do dia findo mais um nenúfar rodopiando nas rochas onde eu estou sentado reclamando dos deuses minha fatia de oceano silencioso com minhas mãos na névoa rosa do céu repousando no imenso rosto do mundo torres de avelã entram pelos meus olhos tainhas loucas entram em seu coração & o sol escorrega na paisagem metade luz metade sombra pássaro albatroz levando no bico minha mensagem: amor, aqui começa o Tempo

Praia do Guaiúba – Outubro de 1977.

Antes da tempestade, cabelos ao vento... (ópera-samba)

“Seja o teu amor o mais profano delator bendigo porque vem do amor” — Pixinguinha

“Nós apreciamos isto melhor na agonia dos outros” — T.S. Eliot

Trombadinha de bom coração apenas incendiou a alma do camelô deitando suas raízes amorosas neste vendedor de miçangas o azul conta como suas vidas marginais corrompidas lumpem puderam ser atrapalhadas pelo pobre marinheiro canadense cheio de estrelas nos olhos & corpo de cometas risonhos no seu nascimento de cartilagens sonoras & como as bocas se fecham uma sobre a outra noite & dia atravessadas pela ferida elétrica do amor no quarto de pensão à beira do cais de Santos terracinho de samambaias cheirosas prateadas pela Lua de Verão quando o trombadinha de 15 anos abria a margarida erótica do cu & oferecia essa flor vencida ao marinheiro canadense quando o camelô estava fora profetizando suas miçangas nas portas dos cinemas depois de ter sido boxeur lavador de pratos motorista de caminhão bombeiro & agora um infeliz franchona traído pela aura da mitologia marítima do marinheiro as tapeçarias do céu enrolam a tempestade que irá desabar nesta noite de Mormaço Crime & Ciúme os esqualos os infanticidas as chapas gigantescas dos navios ancorados ao largo os albatrozes devoradores de serpentes as focas amestradas & hidrófobas as carmelitas descalças o navegador de musgo os rebanhos de zebras do apocalipse os ciganos os pardais de cânfora as fuinhas de algodão os roucos de tanto peidar os hemorroidários de tanto falar as bichas paradas nos mictórios dos jardins públicos os cavalos de corrida eletrocutados os planetas de magnésio as uvas de Berlim as constelações dos amores novos paralisaram seu Curso prenderam a Respiração & aguardaram hipnotizadas o destino seguir sua lógica de ouro

oh baobás frenéticos na invisível floresta das horas sinfonia clássica cidade portuária coberta pelas asas do ANJO MENTIROSO bêbado do maná do Limbo das Áfricas do céu investidas no destino humano com lanças & tambores danças de dardos de Kansas City comida goiana apimentada entre 200 batidas de tamarindo o mundo gargalhado no meio das taças de sangue o trombadinha cruzou as pernas coxas douradas gostosas na cintura do marinheiro canadense & começou a dar de frango-assado a piroca do marinheiro hélice de torpedeiros dos pampas de Quebec entrando & saindo daquele túnel de veludo uma asa de alegria na garganta vaselina Sidepal siderando a foda mais gostosa foda de despedida adeus marinheiro sailor tomorrow Quebec me triste triste oh dear enfant mon pauvre enfant blond serei feliz fora das gesticulações da ostra serei feliz contra a essência da morte serei feliz contra os esgotos da Polícia mãos & pés bocas & lindos tornozelos que se cruzam na sombra gemidos entre o renascer & a correnteza próxima da pequena morte orgasmo oh orgasmo linha de convulsões dos olhos até as nuvens que passam ligeiras feito um tiro BUMMM que atira a carcaça convexa do outro lado BUMMM fatal oh fatalidade lágrima na pupila doce caindo num BUMMM mais caricato que uma foda num quarto pobre de verão loiro no país moreno noites absolutamente negras estreladas com Melaço & Gemidos o trombadinha se torceu na cama com um filete de sangue no olho esquerdo o camelô apontou seu segundo BUMMM na cabeça louca orgasmada do quebequeano rugido BUMMM a folha morta do crânio tombando no assoalho lambuzado com parquetina (pobre quarto ninho provisório daquele tráfico de pétalas) chorando lágrimas de veneno chorando vísceras de búfalo chorando duas almas de aço & canções tristes o camelô se entrou soluçando quebrado o coração rangendo rangendo rangendo torcido de dor coração lençol machucado respingando dor dor dor até a derradeira SOLIDÃO

Queima supermercado, queima

eles estavam estirados na grama recobertos de samambaias eles estavam lá no meio do tambor do dia com exus adolescentes cantando em suas orelhas & sexos em semi-ereção confundidos com caules tenros eles se abriam ao sol com olhos semi-cerrados & sangue acorrentado eles repartiam as facas da luz lascas de tesão fios de náilon do orvalho & ninhos de andorinha corações em tumulto estrelas futuristas do cometa da anarquia para os garotos da

FEBEM

Poema elétrico do cu

músculo de veludo na boca de todos os feirantes torpedeiros meninas de internato negociantes padeiros farofeiros torcidas exércitos de humanocultura onde você habita alucinante como promessa derradeira cu boquiaberta entrada franca dos demônios pesadelo dos adolescentes fogueira da solteirona em férias árvore genealógica da Cloaca Mater onde foi chocado o ovo humano numa temperatura de 300 sóis cu fonte de energia kundalini hóstia dos grandes libertinos fornalha dos cocainômanos boca azulada da verdade corpórea diagramada no infinito do desejo cu grande iniciador de tempestades amorosas vertigem verdadeira onde os amantes deslizam cu vaporizador da Idade Média do corpo onda bioenergética de metais coloridos omoplatas carregadas de hidrogênio leopardos alucinados de tanto veludo cu de cabelos negros loiros ruivos castanhos cipoal de intrigas onde o caralho se perde se desnorteia desmaia de gozo na contração do espasmo da alegria erótica cu selvagem assaltante noturno diurno trombadinha espadachim das estradas que levam ao Grande Precipício anunciador de Paixões cu das penugens suaves & sumarentas flor carnívora labareda policiada pela civilização ave louca solitária perdida bêbada amorosa cu proletário do corpo grande escorpião revoltado teu vôo de liberdade começa acontecer

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